terça-feira, 18 de dezembro de 2012

"NÓS NÃO SOMOS A GRÉCIA"?

 
 
 















Bastas vezes, há já vários meses, vou ouvindo, sobretudo da coligação que governa o país, mas também de ilustres "fazedores de opinião" mui aperaltados, que Portugal não é a Grécia. A coisa [um soundbyte catita] até rendeu, inicialmente, umas manchetes giras, quando a ideia ainda não tinha sido repetida ad nauseam.
 
Talvez a coisa fosse revestida inicialmente de boa intenção, qual psicologia das massas, frase-colete, statement-protecção, mantra guardião da sanidade mental dos cidadãos portugueses. Do género "se repetirmos muitas vezes PORTUGAL NÃO É A GRÉCIA, talvez seja verdade, talvez o eco deste slogan nos dê força para descolarmos dessa associação e nos ajude a reerguermo-nos". E se repetissemos, vezes sem conta, "Nós somos a nova Noruega"? Que efeito teria?
 
Voltando à tal frase. Podemos até brincar e dizer que é uma "LaPalissada" afirmar coisas destas. De facto, não somos a Grécia, para o bem e para o mal, dentro e fora da krísis (palavra, na origem, muito grega, de facto). De facto, cada país, a sua sentença. Não há nações iguais. Adiante.
 
O que intriga é o modo como o caso da Grécia acaba por ser instrumentalizado e legitimado no/pelo discurso político. Afinal, até parece dar jeito haver uma Grécia, em piores condições do que Portugal, para poder-se comparar o mau com o menos mau, ou mesmo, do outro lado da barricada, dizer que a Grécia de hoje é o Portugal de um futuro relativamente próximo.
 
Deve fazer menos mal à moral de certos sectores, que vou ouvindo, saber que há um povo (supostamente) ainda mais "irresponsável" e "despesista" do que o português (os termos não são meus). Não sei o que isso tem de bom, na verdade. Nesse caso, parece que o princípio solidário da União Europeia poderá valer perto de zero. Afinal, este mantra sempre vai dando para desviar as atenções por algum tempo de certos tabus. Mas isto não é senão um estado de negação, uma forma de fuga?
 
Haverá alguma conveniência em que os media ocidentais se foquem mais na Grécia do que em Portugal? O New York Times já fotografou e mostrou o lado mais sombrio da nossa crise através de imagens e números no seu site.

A questão é: E se não houvesse uma Grécia, em piores condições do que Portugal, para comparar?

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Há teatro na Palhaça - Frei Luís de Sousa

A tradição do teatro na Palhaça é antiga, assunto abordado neste blog aquando na inauguração da exposição "Teatro - imagens e memórias".
Passados vinte e oito anos o Grupo Cénico da ADREP vai levar à cena novamente “Frei Luís de Sousa” - , onde alguns intérpretes serão os mesmos de há vinte e oito anos. A  representação é neste sábado e domingo. Mais informações para a compra de bilhetes  aqui ou pelo número 962838980.



Nota: Onde se lê 20.30h deverá ser lido 21.00h.

Resumo da Obra

"Esta obra de Almeida Garrett aconteceu no decorrer do século XVI, retrata a vida de Manuel Luís de Sousa Coutinho e da sua esposa D. Madalena de Vilhena, uma mulher muito supersticiosa, que acredita que qualquer sinal que achasse fora do normal era uma chamada de atenção para acções futuras, um presságio. Enquanto que Manuel, um homem corajoso, patriota, provado historicamente que era possuidor de um grande amor por Madalena, não se importa com o passado da sua esposa, esta vive com muitos receios em relação ao facto do seu primeiro marido, D. João de Portugal, que, apesar de se pensar que terá sido morto na batalha de Alcácer Quibir, está ainda vivo e regressa a Portugal tornando ilegítimo o casamento de Manuel.

Este facto valoriza o amor, mesmo contra os ideais sociais da época. O dramatismo desta obra é mais acentuado quando o autor concede ao casal uma filha, D. Maria de Noronha, uma jovem que sofre de tuberculose. Pura, ingénua, curiosa, corajosa, perfeitamente inocente dos actos dos seus pais, é a personificação da própria beleza e pureza que se consegue originar mesmo num casamento condenável. É-lhes concedido também um aio, Telmo Pais, que ainda é leal ao seu antigo amo, D. João de Portugal, para além de ser contra o segundo casamento de D. Madalena. Conselheiro atencioso e prestativo que tem um carinho enorme por D. Maria de Noronha.

O desfecho da obra é originado por Manuel de Sousa que incendeia a sua casa a fim de não alojar os governadores. Ao perceber que Manuel destruíra a sua própria casa, onde residia o quadro de D. Manuel de Sousa Coutinho, Madalena toma esta situação como um presságio, pressentindo que iria perder Manuel tal como perdeu a sua casa e o seu quadro. Consequentemente, Manuel vê-se forçado a habitar na residência que dantes fora de D. João de Portugal. Este regressa à sua antiga habitação, como romeiro, e frisa as apreensões de Madalena ao identificar o quadro de D. João.

Com esta revelação, o casal decide ingressar na vida religiosa adoptando novos nomes: Frei Luís de Sousa e Sóror Madalena. O conflito desenvolve-se num crescente até ao clímax, provocando um sofrimento (pathos) cada vez mais cruel e doloroso. Esta obra está tão bem organizada, ou seja, os acontecimentos estão tão bem organizados, que nada se pode suprimir sem que se altere o conflito e o respectivo desenlace. Considera-se um drama romântico embora possua algumas características de um clássico: o nacionalismo, o patriotismo, a crença em agoiros e superstições, o amor pela liberdade (elementos românticos); indícios de uma catástrofe, o sofrimento crescente, o reduzido número de personagens, peripécias, o coro (elementos clássicos)". Retirado daqui.




sábado, 17 de novembro de 2012

Memória de António Capão (1930-2012)


Acaba de desaparecer do nosso convívio um dos nomes mais respeitados no panorama cultural bairradino e na própria região de Aveiro. Nunca o tive como professor, mas quem foi tocado por esse dom costuma resumir o seu labor em duas ou três palavras: dedicação, honestidade e competência. Ingredientes que se refletem na obra de quem sempre permaneceu fiel ao chão que o viu nascer. Inestimável património que nos legou e que continua à espera de quem o valorize como merece. Lendo-o, acarinhando-o e discutindo-o como contributo vivo que é.

António Capão conhecia de sobejo a vida dura do povo da sua aldeia: “O antes foi pobre, foi triste e apagado; a nossa geração foi uma geração de sacrificados, de idealistas e de lutadores por alguma coisa nova, fosse o que fosse”(1).  Mas essa aldeia, como tantas outras, para quem está atento e não lança sobre ela o olhar superficial e tantas vezes sobranceiro, é um inesgotável reservatório de lendas e velhas tradições, onde a harmonia com a mãe natureza humaniza as relações de quem não vive ainda sufocado pelos ditames da razão técnica. Pela Palhaça nutria um amor entranhado, profundo e orgânico. Entre outros assinaláveis serviços, está indelevelmente ligado à investigação histórica da sua terra, de que foi, conjuntamente com Manuel Simões Alberto, um dos cabouqueiros e um extremado guardião dos seus valores e das suas gentes.

Nasceu, viveu e foi influenciado por um tempo que praticamente já não existe. Tempo de outra convivência social, de diferentes formas de religiosidade. De curandeiros, mezinhas e superstições. Da chiadeira dos carros de bois e do trabalho árduo nas terras de pão. Dos crimes por causa dos marcos na disputa por um palmo de terra. Das tecedeiras e dos teares, das atafonas e das azenhas, das tremoceiras, tanoeiros, ferradores e moleiros. Dos fornos de cal. Da rega dos campos, com a nora a gemer vergada ao peso dos alcatruzes. Dos pipos cheios e do cheiro a mosto nas adegas. Tempo também de usos e costumes que ajudavam a sacudir o marasmo de um ambiente puramente rural: a “serração da velha”, os bailes da “mi-careme”, a prova do vinho novo a onze de novembro, pelo S. Martinho, a festa do galo, o folar da Páscoa, a massa a levedar na gamela, a cruz na massa para proteger do mau olhado, a broa a sair do forno, a lareira a crepitar amornando corpos e  almas.

De muitas destas coisas me falou o Dr. Capão nas três únicas mas demoradas visitas que fiz a sua casa, a partir de 2003. E também falou de raspão sobre coleções de moedas, conchas marinhas e selos que eu trocava com o filho José Armando, na camioneta da carreira que nos conduzia até Aveiro. Muitas tradições populares e levantamentos etnográficos e linguísticos foram por ele amorosamente registados para memória futura, para que todo esse rico património não se esboroasse.

Alguns desses trabalhos ajudam a manter ou a recriar o espírito do lugar, a sua atmosfera própria e a história das suas gentes. Para dar alguns exemplos, e só no que diz respeito à terra que o viu nascer, basta citar o extenso texto “Memórias da Palhaça”, (2) o jogo do Bichoiro, que praticou em menino e posteriormente registou por lhe reconhecer “grande valor sob o ponto de vista da motricidade, da destreza e da habilidade”(3). Ou os costumes familiares do seu tempo, em que os pais, para lá das orações, ensinavam às crianças as primeiras habilidades de apreensão mais fácil (4). Ou ainda o minucioso estudo elaborado a partir do manuscrito sobre o Auto dos Reis Magos, que Manuel Simões da Silva (Manuel Tomé) em boa hora registou. Sobre o cortejo dos Reis, espetáculo fortemente entranhado na cultura popular local e que se realizou pela primeira vez na freguesia da Palhaça em 6 de janeiro de 1925 (5)  diria António Capão: “Não perde a terra a originalidade se os seus usos, costumes e tradições forem publicadas, antes ganha, pois que passa a ser mais conhecida”(6)

Para lá da Palhaça, António Capão também fez incidir as suas preocupações filológicas, etnográficas e históricas no concelho de Oliveira do Bairro, a quem dedicou a Carta de Foral, um estudo das leis antigas de outorga de direitos e deveres, bem como um Roteiro Religioso e Cultural onde desfilam as relíquias que a população do concelho acarinha (igrejas, imagens icónicas, capelas públicas e particulares, ermidas, alminhas e cruzeiros). 



À região dos pâmpanos dedicou Relance histórico-linguístico sobre a região da Bairrada – Influências Arábicas, onde procura mostrar que os árabes e a cultura muçulmana deixaram marcas no território e no vocabulário do nosso quotidiano, um legado que continua vivo. Deu também à estampa Os Moinhos da nossa Região. Sua vida e decadência, um meticuloso trabalho de campo sobre os instrumento e maquinismos de moagem dos cereais, muitos deles praticamente desativados ou em ruina lenta apesar da importante função social que cumpriram em tempos mais recuados. Sendo uma revisitação da infância e um marco na memória coletiva, o livro é também “um belo poema com que a Bairrada poderá, desde agora, adornar-se, como se de mais uma joia o seu dote fosse acrescido”(7)


Ao distrito de Aveiro, em cuja cidade exerceu funções docentes e chegou a residir quando regressou de Moçambique, ofereceu Relíquias da Tecelagem, estudo de  etnografia de uma atividade artesanal com os dias contados. Havia quem chegasse a demorar dias para pôr um tear a funcionar, o que levava os antigos a dizer que um tear aparelhado é como um burro albardado. 

Publicou também Cultura Popular em Terras de Aveiro (Etnografia e Literatura), onde disserta sobre literatura e cultura popular, aborda os trabalhos agrícolas, dá conta dos processos de moagem, explica os meios de transporte na atividade do campo, analisa os divertimentos, costumes e crendices da população. Fá-lo com a vantagem de quem parte para a investigação “de bornal já bastante bem aviado, porque nascido com as mãos na eira, com os pés no quintal, com os olhos nos moinhos, nas atafonas, em tanta coisa [pois] não admira que alguém o vá encontrar ainda hoje com as mãos na eira a debulhar uns feijões, com os pés nas árvores a chegar a fruta, com a enxada na mão a guiar a água”(8)


Num tempo em que as elites de um Portugal acentuadamente rural manifestavam indiferença ou até desprezo pelas formas de vida rústica, António Capão soube intuir que as tradições seculares se perderiam de forma irremediável se tal património não fosse defendido, registado e colocado à disposição das gerações futuras. Esse um dos seus méritos. A forma como acarinhou o Museu de S. Pedro da Palhaça, de que foi diretor, e o conhecimento seguro com que explicava, com evidente deleite, a utilidade dos arados e das charruas, dos moinhos e das azenhas, atestam bem o saber e a dedicação próprias do especialista do património e da sua luta permanente contra a incúria e a ignorância.

Para António Capão o que sempre foi estável e firme foi a crença em valores imutáveis como a religião, que tenderia a considerar um dos meios mais poderosos de garantir a ordem e a coesão social, erigindo-a como uma espécie de barreira contra a imoralidade. A dissolução dos valores morais conduziria à degenerescência e à anarquia. A política pura e dura pouco o interessava e por isso dela se distanciou sempre: “De política, só o que consideramos importante, como resposta aos valores do homem cristão projectados na própria família e aos verdadeiros valores da Pátria, nos interessa”(9)

É em nome desses valores que no primeiro texto com que no remoto ano de 1952 inicia a colaboração no Jornal da Bairrada denuncia o desajustamento entre o mundo material e moral dos habitantes da sua aldeia: “Por vezes, um ou outro, que a fortuna acarinhou, vai afirmando que o dinheiro é que vai dando o polimento (…). E nota-se um absoluto contraste entre a vida mundana e a vida religiosa (…). A Palhaça é uma freguesia essencialmente católica; e disto a conclusão é péssima: muita gente à missa com hipocrisia; muita gente a comungar em sacrilégio; muita gente a confessar-se dos erros dos outros, deixando os seus em atraso"(10). Verdadeiras pedradas no charco da hipocrisia reinante. Palavras avisadas as deste então jovem estudante liceal, frontais e desassombradas, como que a dizer-nos que o homem não vale pelo que tem mas sobretudo pelo que é e pelo esforço que faz para se tornar naquilo que será.

Terá sido ainda em coerência com esses valores que quando conclui a licenciatura em Filologia Românica, em 1959, recusa qualquer tipo de festejos – como era habitual nessa época, com toda a aldeia a participar -  por se encontrar de luto recente devido ao falecimento do pai. Apenas algum tempo depois assentiu que um grupo de amigos lhe oferecesse um jantar no salão da Junta de Freguesia. Manifestação ainda assim singela, a pedido do homenageado, precedida de missa em ação de graças (11).

António Capão amou e divulgou tão entranhadamente a sua terra e a própria Bairrada que estas não deixarão, mais cedo ou mais tarde,  através dos seus poderes públicos, de o homenagear como merece. Para que o seu nome honrado não desapareça da memória coletiva. Podem dar-lhe um nome de rua, de uma escola, biblioteca ou até de um Museu da Região, que defendeu em 1989 e do qual traçou as linhas orientadoras no 2.º Encontro de Escritores e Jornalistas da Bairrada. 

Eis o seu plano: “Cada aldeia deveria possuir um pequeno museu englobando todas as atividades que lhe são inerentes e cujas peças nele guardadas deveriam ser estudadas e devidamente catalogadas; cada sede de Concelho deveria possuir também um museu, mas representativo de todas as aldeias que lhe pertencem e de acordo com os vectores incidentes sobre as suas actividades características; em zona a estudar, dentro da própria região, com características próprias bem definidas, surgiria então o Museu da Região onde estariam representados todos os Concelhos dentro dos aspectos considerados mais representativos, em estreita ligação com todas as suas povoações”(12)


O Dr. Capão sentia necessidade de apartar-se dos tumultos da vida social e do que sentia ser a sua crescente desumanização, sem contudo cortar as amarras que o ligavam ao mundo. Recolhia-se em casa (para dizer melhor: no lar, que é coisa bem diferente) envolto nalguma solidão, sobretudo após o desaparecimento físico de D. Armanda, a sua esposa. Era aí que como uma harpa sensível – um pouco à semelhança da harpa eólica que os gregos penduravam nas árvores – ia  registando as próprias emoções e também o sentir e o viver dos outros, porque ver os outros com os olhos da imaginação é também, de certo modo, um dom do poeta.

Tal como acontece com muitos homens de cultura, o Dr. Capão sentia não ser profeta na sua terra, o que aliado a algum sentimento de injustiça o tornava uma natureza com propensão para o melindre. Talvez por isso mostrasse em público um semblante carregado e por vezes um ar sisudo. Mas em privado, no espaço acolhedor da sua casa, como que se transfigurava: era afável e cordato, de uma forma quase tocante. Abria-se como um livro vivo, sempre pronto a mostrar as pérolas de cultura que ciosamente ia acumulando e lhe aqueciam a alma sensível.

É longa a folha de serviços prestados à cultura da região e do país. Fica mais pobre a cultura quando um homem com estes méritos parte do mundo dos vivos. Bem merecia estar ainda entre nós quem, há pouco mais de um ano, prometia – ultrapassado já o batente dos oitenta – continuar “a contribuir para o prestígio da Academia” (referia-se à Academia Portuguesa de História, para a qual foi eleito membro em Junho de 2011). A ceifeira impiedosa não permitiu que nos desse a conhecer o muito que ainda tinha para legar. Escrever e registar sempre – pouco ou muito – era essa a sua divisa.

Em 2010, de forma algo premonitória, o Dr. Capão fala-nos do destino a dar ao “variadíssimo espólio” da sua biblioteca particular, que pacientemente foi construindo e considera “precioso”, por ter obedecido a “critérios muito próprios de selecção”. E deixa no ar a pergunta, num tom grave e que se adivinha angustiado: “Que vai ser de todo este papel, cheio de belíssimas lições, pleno de riquíssimos ensinamentos, quando o nosso sangue arrefecer, quando os nossos neurónios deixarem de trabalhar e nós passarmos desta vida para o Além que nos espera inexoravelmente?”(13)

Que eu saiba ninguém respondeu a tão tocante gemido cultural. Onde a resposta da Câmara Municipal do nosso concelho? Onde a de qualquer outra instituição com pretensões de divulgação cultural? Quem respondeu com afeto confiado ao seu apelo? Será que todo esse espólio, com eventuais manuscritos inéditos, vai perder a unidade essencial que o deve caraterizar e fragmentar-se nas mãos dos seus descendentes? Ou vai, por incúria nossa, ser depositado fora do concelho como aconteceu ao de padre Acúrcio Correia da Silva?

Mudaram os tempos e os hábitos. Cronos é poderoso e implacável, ao ponto de criar e devorar os próprios filhos. Mas o empenho de António Capão em preservar os valores do passado, por ver neles o cimento aglutinador do presente, foi decisivo para resistir ao processo de descaraterização de lugares e culturas ancestrais. A fidelidade a esses princípios prolongou-se na entrega radical aos trabalhos que produziu e nos deu a conhecer.

Ignoro se as pessoas da minha terra estão conscientes de que o Dr. António Capão foi até hoje – por tudo aquilo que publicou e pelas palestras e conferências que produziu – o seu mais genuíno representante cultural, o filho mais dotado que o ventre campestre e acentuadamente rural da Palhaça do seu tempo gerou até hoje. Se há quem considere excessivo este realce, que diga então: que outra figura da sua geração merece na Palhaça maior destaque? Quem, melhor do que ele, soube promover o diálogo entre tradição (transmissão, dádiva, herança recebida do passado) e modernidade (o que se acrescenta à herança recebida, o que criamos de novo, inovando e acrescentado)?

António Capão é um archote da cultura bairradina que não podemos deixar extinguir. Agora que a morte o obrigou a pagar-lhe o seu tributo, é imperativo que a marcha inexorável do tempo não cale a voz de um homem ouro de lei, cujo nome honrado a Palhaça, o concelho de Oliveira do Bairro e a região da Bairrada devem registar para todo o sempre. Não deixemos que uma hera de silêncio comece a enroscar-se dolorosamente em torno do seu nome.



[1] Armor Pires Mota, “Entrevista com António Capão”, Terra Verde – Suplemento mensal do Jornal da Bairrada, n.º 3, 05.07.1991.
[2] António Capão, “Memórias da Palhaça”, in Freguesia da Palhaça. Contribuição para a sua monografia. Publicação do Centro Paroquial da Palhaça, 1977, pp. 7-31.
[3] Idem, “A propedêutica infantil e o jogo do Bichoiro”, Boletim da ADERAV, n.º 5, 1981.
4] Idem, “”A família aldeã e a cultura infantil”, Boletim da ADERAV, n.º 23, 1984.
[5] O Democrata, 17.01.1925.
[6] António Tavares Simões Capão, “As ‘Janeiras’, as ‘Pastoras’ e os ‘Reis’”, in Aveiro e o seu Distrito, n.º 4, 1967, p. 60.
[7] Idália Sá Chaves, a propósito do livro ”Os Moinhos na Nossa Região”, Jornal da Bairrada, 13.09.1995, p. 10.
[8] Armor Pires Mota, “António Capão: Cultura Popular em Terras de Aveiro”, Jornal da Bairrada, 08.09.1993, p. 8.
[9] Carta de Foral de Oliveira do Bairro, 1991, p. 10.
[10] António Capão, “Avante com o progresso moral”, Jornal da Bairrada, n.º 39, 15.08.1952.
[11] Jornal da Bairrada, n.º 226, 02.01.1960.
[12] Armor Pires Mota, “Entrevista com António Capão”, Terra Verde – Suplemento mensal do Jornal da Bairrada, n.º 3, 05.07.1991.
[13] António Capão, “Livros Velhos”, Jornal da Bairrada, 29.07.2010, p.28.


quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O DR. ANTÓNIO CAPÃO REGRESSOU A CASA

A voz que saída do telemóvel deixava-me transtornado: «acabo de saber pelo facebook que o Dr. Capão morreu».

Foi ontem à tarde. Pouco depois, haveria de saber que o que fora o seu corpo jazia já sob a terra e que, para além dos familiares e das entidades públicas, o féretro tinha sido emoldurado apenas por um punhado de palhacenses. Fiquei triste. Pode ter sido, como justificava o meu interlocutor, por falta de informação, pode ter-se devido à precipitação das nuvens e dos acontecimentos, pode ter sido muita coisa.

Não se compreende. O Dr. Capão foi sem dúvida o mais ilustre dos palhacenses dos últimos decénios, ainda que nunca tenha sido suficientemente reconhecido como tal pelos seus conterrâneos. Guardava uma certa mágoa por isso. E não por presunção, estou convencido. Recentemente, numa das últimas visitas que lhe fiz, ele apontara o diploma pendurado na parede do escritório que testemunhava a distinção que a Academia Portuguesa de História (julgo que era esta a instituição) lhe concedera em 2011, ao atribuir-lhe o grau de Doutor Honoris Causa (estou certo que o facto é uma surpresa para alguns dos que eventualmente venham a ler este texto). Citou, a propósito, a célebre apóstrofe do Eclesiastes: «vaidade das vaidades, tudo é vaidade». Lembrei-lhe que os seus pares o haviam reconhecido. Repudiou o cumprimento. Claro que estava ciente do seu valor intelectual, mas mostrava-se um pouco desencantado com tudo. Acabara de lhe falecer a esposa, não ia para novo, sentia a ingratidão. Mas o que sobretudo lhe doía era não aproveitarem os seus dons. E, embora o tentasse animar com as minhas palavras, intimamente eu sentia que a mágoa se justificava e eu próprio lamentava a perda que isso constituía para todos e a injustiça irreparável que lhe fazíamos, nós os palhacenses.

Estava ali aquele tesouro cultural vivo (andara pelas Áfricas, fora professor no Magistério Primário, professor de Português, era um apaixonado de Camilo Castelo Branco, investigador de História com várias monografias nesse âmbito, quando o deixavam era um católico activo na sua paróquia, era coleccionador, e tantas outras coisas de que nem sequer cheguei a ter conhecimento…), estava ali, diante de mim, aquele homem de biografia riquíssima, e tudo o que recebia era a reverência distante dos simples e a indiferença daqueles que tinham o poder e o dever de o chamarem para o palco dos acontecimentos. E agora, por mais homenagens que lhe venham a fazer, nada reparará a injustiça da omissão. A morte nada conciliará neste particular.


Egoisticamente, nas visitas que lhe fazia quando ia à terra, lamentava não poder frequentar mais assiduamente a sua casa para beber do seu imenso saber, como lamentava a minha fraca memória que me impedia de fixar as migalhas de ouro que oferecia nas nossas conversas. Para mim, contudo, o Dr. Capão foi (e é!) muito mais que um insigne palhacense. Tinha por ele uma grande estima como pessoa e cidadão e, quando penso na afabilidade com que me recebia sempre, sei que me retribuía essa estima. A nossa relação vinha do tempo em que fora meu professor de Português no Seminário Santa Joana Princesa de Aveiro. Desse tempo recordo o amor pela língua portuguesa e pelos autores portugueses, o rigor que punha em tudo o fazia, a seriedade que nos exigia… e sobretudo o dia da entrega dos testes. Nesse dia, tínhamos um Dr. Capão diferente: um homem que sofria com o falhanço dos seus alunos, quase como um pai. Era-lhe tão penoso ver que um aluno não aprendera, por dificuldade ou preguiça! Quando entrava com o semblante carregado, sabíamos que íamos assistir no seu rosto a uma luta contra a mediocridade, na qual não se limitava a responsabilizar o aluno, mas se metia ele próprio ao barulho, como se os erros do aluno fossem os seus. Acreditava sempre que podíamos ir mais além e sofria genuinamente se ficávamos pelo suficiente. Numa dessas situações, chegou a acontecer ser o próprio aluno visado a tentar animá-lo, um condiscípulo nosso com sentido de humor apurado. E o Dr. Capão sorriu. Com aquele sorriso grande que lhe conheciam os mais próximos.
Foi um mestre. E foi como tal que me referi a ele ainda há poucos dias em conversa, antes de saber desta triste notícia, quando alguém me perguntava que professores me marcaram mais. Um mestre com o qual nem sempre estive de acordo, claro, com as idiossincrasias próprias de qualquer ser humano, mas alguém que respeitava muito. E respeitava-o, antes de mais, pela sua humanidade e ternura, ternura que podia passar despercebida por detrás do seu fácies grave. Lembro-me da sua simplicidade, das conversas bem-humoradas que travava com os alunos no claustro do seminário nos intervalos das aulas, nas quais quase se despia do papel de professor e se tornava um rapaz connosco; lembro-me das pequenas confissões, como a de que os amigos lhe reconheciam mais perícia nos versos livres do que nos versos rimados, embora se sentisse mais à vontade com as rimas. Chegava a ter esta candura e descontracção.

Não era um santo, mas era um santo que lhe orientava a vida: S. Francisco de Assis. Ainda numa das nossas últimas conversas referira o Cântico das Criaturas, mostrando uma reprodução do mesmo, «escrita em dialecto úmbrico, como no original». Esse amor pela vida simples que tinha S. Francisco como modelo, levou-o um dia a confessar-nos, a nós, alunos do seminário, que, se tivesse sido outra a sua vida (era pai de muitos filhos), teria sido franciscano. Reafirmou-mo posteriormente várias vezes. Esse amor pela simplicidade e pela natureza de resto acompanhou-o até ao fim, pois, ao que parece, nas exéquias, uma filha leu o poema que destinara ao dia da própria morte: aí, uma vez mais voltava a fazer referência à comunhão com a natureza, como o seu santo de eleição. E é assim que consigo suportar a sua morte com um sorriso sereno: o Dr. Capão despediu-se dos que o amavam humanamente, mas voltou a casa para se juntar aos seus irmãos Vento, Ar, Nuvens, Água, Terra. Regressou: vivo enquanto memória viva no espírito dos vivos, vivo na revolução constante da Matéria Viva.

Paulo Carvalho

domingo, 14 de outubro de 2012

Extinção de freguesias na hora da verdade (ou a coerência do Presidente da Unidade Técnica pelas ruas da amargura)


Não deixa de causar alguma estranheza verificarmos que quem ocupa em simultâneo vários cargos públicos defenda, sobre o mesmo assunto, num lugar um determinado ponto de vista e no outro uma posição diametralmente oposta. Um pouco como quem defende um dia uma coisa e no dia seguinte o seu contrário. A esses o povo deu-lhes um nome: troca-tintas.

Será que quem simpatiza com um clube de futebol, milita num partido político, professa uma religião, está impedido de ter voz própria? A fidelidade a um ideal pode impedir-nos de pensar pela nossa cabeça? Quem gosta mesmo da verdade das palavras enquanto expressão do pensamento não procura amaciá-las de acordo com as conveniências do momento.

Andam envoltas em polémica as declarações do presidente da Unidade Técnica da Assembleia da República para a reorganização administrativa do território. Manuel Porto, de seu nome. Figura emblemática do PSD, reputado professor universitário de Direito que entre muitos outros cargos já foi presidente da Comissão de Cordenação de Desenvolvimento Regional do Centro e deputado ao Parlamento Europeu.

Acontece que Manuel Porto, além de responsável pela Unidade Técnica que há-de tratar da saúde às freguesias, é também presidente da Assembleia Municipal de Coimbra. Foi nesta qualidade que disse, por mais de uma vez, ser contra a extinção ou fusão de freguesias e em coerência votou mesmo contra esse processo. O problema é que na qualidade de presidente da Unidade Técnica se apresta para fazer o contrário do que diz. Isto é: em público mostra-se solidário com as freguesias mas em privado vai efetuar os cortes que não foi capaz de propor à Assembleia Municipal de Coimbra. Eis a quadratura do círculo ao seu melhor nível. Quem preza a coerência gostaria naturalmente de vê-lo demitir-se de um desses dois cargos que ocupa.

Pode o presidente da Unidade Técnica alegar que se mantém em funções para “minimizar os estragos”  desta reforma. Pode até dizer que continua a ser coerente e não vê na acumulação simultânea desses cargos qualquer contradição ou incompatibilidade. Pois seja. Mas não lhe ficaria mal um estremecimento ético que o levasse a questionar se esse comportamento não estará a macular o mandato de autarca conimbricense. O cidadão comum é que não consegue atingir a complexidade do seu raciocínio e pasma com toda esta apregoada coerência.

Tudo isto mostra bem o quanto é difícil ficar imune ao canto de sereia dos títulos e honrarias. Sem que muitos o saibam, são coisas destas que causam sérios danos à saúde da democracia, que a atolam cada vez mais no lodaçal da política videirinha e nos afastam do futuro decente com que um dia sonhámos, esse dia inicial, inteiro e limpo, como lhe chamou Sophia.

No concelho de Oliveira do Bairro, à semelhança do que acontece noutros concelhos, o parecer da Câmara aponta no sentido de todas as freguesias se manterem como estão. Resta saber se diz o que pensa ou pensa o que não diz, pois sabe que dificilmente as coisas vão ficar na mesma.

É que o secretário de Estado da Administração Local e da Reforma Administrativa continua a dizer que cerca de mil juntas de freguesia vão desaparecer “sem dúvida nenhuma” até ao final do ano. Depois das estruturas da pesca e da agricultura, das maternidades, centros de saúde e escolas, chegou a vez das freguesias. E talvez logo a seguir dos concelhos. Tudo cabe na goela hiante do desconcerto governativo dos últimos anos.

Manuel Porto vai pois ajudar a cortar nas freguesias. Pode bem acontecer que quem verdadeiramente ama a sua freguesia, ao vê-la irremediavelmente extinta ou agregada a outra, queira também cortar qualquer coisa a Manuel Porto...

Era bem feito.









quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Coligação à deriva (reatualizando uma fábula de Esopo)



Era fatal. A refrega entre a geração dos políticos herdeiros – os que de forma calculista vão fazendo carreira no aparelho partidário e aguardam com paciência beneditina a sua vez – e a dos políticos tradicionais – os que estavam habituados a pugnar por verdadeiras alternativas de poder – teria que irromper a qualquer momento. Somos aquilo que resulta das nossas opções e do exercício da nossa liberdade. Mas também somos muito aquilo que herdamos e que para sempre fica inscrito nos nossos genes.

Por isso o escorpião voltou a fazer das suas. De olho esgazeado, espreitou o momento oportuno para erguer a cauda, usar o esporão e inocular a peçonha. As pouco edificantes trocas de galhardetes entre os parceiros da coligação a propósito da Taxa Social Única remetem de forma irresistível para a conhecida fábula de Esopo, cujos intervenientes são a rã e o escorpião. Os clamores de protesto que incendiaram o país fizeram soar no governo as campainhas de alarme. O povo ergueu-se numa onda gigante de indignação como há muito não se via em Portugal. À rã e ao escorpião nada mais restou senão tentar minimizar os estragos. Só que em vez de resguardarem a irmandade do poder que ambos partilham, resolveram tentar salvar apenas os particulares interesses das suas confrarias políticas.

Acossado pelo incêndio que já lhe mordia a cauda, o escorpião deslocou-se para a beira do rio. O problema é que não sabe nadar, apenas se movimenta bem em terreno firme, portanto o mais longe possível dos fogos que cada vez mais cercam a irmandade. Atravessar o rio é a solução. Mas precisa da rã para o fazer.

Esta escusa-se uma e outra vez, refila, diz que não. Conhece o escorpião de ginjeira. Não deixaria de lhe dar a picada mortal, iriam os dois para o fundo do rio. Nada de mais errado, riposta o escorpião. Quero sobreviver a qualquer preço e fico-te para sempre grato se me deixares no terreno firme e seguro da outra margem. Bem intencionada, a rã anuiu e lá empreenderam a viagem.

Já tinham percorrido mais de metade do tapete líquido que ligava as duas margens quando de repente, de forma imprevista e traiçoeira, o escorpião prega uma valente e dolorosa ferroada na rã imprevidente. Aturdida e perplexa, ela pergunta: então não cumpriste o prometido? Assim vamos os dois ao fundo, já nada nos pode salvar. O escorpião, resignado à sua sorte, retorquiu: bem sei que tens razão, rã. Sei que vamos morrer. Mas que queres? Está-me na massa do sangue. Ferrar é da minha natureza…

Não se sabe bem se esta coligação no poder vai acabar como a história da fábula. Tudo depende da forma como a família da rã vai responder à família do escorpião. A rã até pode continuar a viver na panela de água fria que é a governação do país. Mas não será por muito tempo. Incauta como é, a rã não dará conta que a água vai aquecer a pouco e pouco, no lume brando que alguém sorrateiramente ateou. A rã só vai despertar desse torpor, dessa vã glória de mandar num povo que julga amestrado e dócil, quando já for tarde de mais.

Vamos saber daqui a pouco se o Conselho de Estado vai dar mais calor à rã ou deixar tudo como dantes. De qualquer modo a rã não tem hipóteses. É uma questão de tempo. Quando der por ela… está cozida! 

Quanto ao escorpião, é capaz de continuar à tona e ganhar novo fôlego, a avaliar pela capacidade de sobrevivência a que nos vem habituando. É bem provável que franqueie de novo outras portas escancaradas da hospitalidade que lhe vão conceder.

Antes que pregue nova ferroada, o melhor é mesmo colocar já umas meias solas bem grossas nas botas, à falta de melhor antídoto para lhe fazer frente.


quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Reorganização Administrativa Territorial Autárquica – IV (sobre as propostas de agregação de João Nuno Pedreiras)


1. Li recentemente, pela lavra duma pena bustuense, um estimulante texto com propostas de agregação de freguesias para o nosso concelho (ver aqui). Entre outros méritos o autor ousa arriscar, assume uma posição, avança com cenários concretos. João Nuno Pedreiras (JNP) é notoriamente pedagógico quando alerta para a necessidade de evitar “exacerbadas paixões bairristas”, quando lembra que “as fronteiras estão nas nossas cabeças”, ou quando refere que “os termos agregado-agregador são inapropriados pois sugerem a superioridade de uma freguesia em relação às demais”. É certo que não subscrevo tudo o que pensa ou diz, da mesma forma que ele próprio ou outros não estarão de acordo com o que tenho escrito sobre este assunto. São discordâncias normais em democracia, até porque se sabe que mesmo no interior dos partidos políticos há opiniões contraditórias sobre a utilidade de executar esta “reforma”.  

A minha dificuldade em aderir a esta reorganização do território assenta no facto de não acreditar que ela possa ter êxito sem uma verdadeira reforma dos municípios. E também por me parecer que é perfeitamente voluntarista, já que os critérios técnicos convocados para reduzir ou agregar freguesias são quantitativos, assentam em valores puramente aritméticos. São estes critérios como poderiam ser outros, o que por si só transforma esta lei numa reforma falhada. Além do mais, sou contra formas de pensamento territorial produzidas centralmente, de cima para baixo. Acredito no envolvimento ativo dos agentes económicos e da sociedade civil, na partilha de responsabilidades e na contratualização entre atores públicos, privados e associativos. 

Por isso mesmo não avancei com nenhum cenário de agregação. Discordo de uma lei que prevê, sem qualquer imposição – ao contrário do que faz para as freguesias – a fusão de municípios (artigo 16.º, da Lei 22/2012).  Como prémio de fusão é-lhes garantido um tratamento preferencial no acesso a linhas de crédito asseguradas pelo Estado, bem como a projetos de natureza diversa. Até o Fundo de Garantia Municipal é aumentado em 15% no município criado por fusão! Assim se premeia, na iniciativa dos outros, a “coragem” que o governo não teve para aplicar aos municípios a mesma receita coerciva que impõe às freguesias. É desta maneira que o governo se propõe tapar, com a altura moral que não tem, a pequenez da estatura que o vem caraterizando na condução deste processo. Como a vida nos ensina, é própria dos tíbios a subserviência para com os mais poderosos (neste caso os municípios) ao mesmo tempo que se lança mão da prepotência para com os mais frágeis (as freguesias).

Não é certamente por acaso que esta lei não é apadrinhada pela Associação Nacional dos Municípios Portugueses nem pela Associação Nacional de Freguesias. Por alguma razão as duas entidades não morrem de amores por esta reforma. Fazendo orelhas moucas a tudo isso e utilizando uma expressão em que os argumentos genuinamente democráticos são os que lá não estão, disse o ministro Miguel Relvas que “as freguesias ou caem a bem ou caem a mal”.  Para as freguesias não há liberdade de escolha. Já sobre as Câmaras Municipais – a joia da coroa do seu partido - não derramou o ministro a mesma catilinária. Pudera! Como certeiramente escreve o historiador Rui Ramos, “extinguir câmaras municipais é a mesma coisa que extinguir distritais e concelhias de partidos”.

 Discordo pois de JNP – esperando não deturpar o seu pensamento -  sobretudo quando refere que esta “é uma realidade que temos que aceitar” ou quando diz que “a lei existe, é preciso refletir sobre a melhor forma de a aplicar”, acrescentando logo a seguir que “temos de aproveitar o problema que nos é colocado como gerador de novas oportunidades”. Parece-me uma posição demasiado conformista, não deixando espaço à contestação ou revisão de uma lei que ele próprio considera conter alguns aspetos negativos. 

2.  Embora ainda ninguém tenha provado que as freguesias de maior dimensão territorial e mais populosas estão mais aptas a prestar aos cidadãos os serviços de que estes efetivamente precisam, voltemos ao essencial,  que são as sugestões de agregação que JNP esboça para o nosso concelho. Num primeiro momento e apoiado no princípio do equilíbrio, sugere a criação de uma freguesia “de dimensão considerável” no extremo poente do concelho, deixando de lado Oliveira do Bairro e Oiã que no seu entender “vivem bem com o seu tamanho”. E avança com três hipóteses: I) A união de Palhaça-Bustos-Mamarrosa (que deixa de fora o Troviscal); II) A união de Mamarrosa-Bustos-Troviscal (que deixa de fora a Palhaça); III) A união de Troviscal-Bustos-Palhaça (que deixa de fora a Mamarrosa).

Curioso é notar que nesta análise combinatória Bustos aparece sempre no meio das outras duas freguesia e assume perante elas uma efetiva centralidade. Nos cenários que nos são sugeridos Bustos é a única freguesia que nunca fica excluída. A proposta parece conter algumas fragilidades. Seguindo o raciocínio de JNP, estes arranjos convergem para a criação de uma freguesia de dimensão considerável, agregando freguesias pequenas para lhes dar escala. Mas se é assim, como se compreende que fique sempre uma freguesia de fora, com exceção de Bustos? A vingar qualquer destas propostas que destino estaria reservado à freguesia excluída? Seria agregada a Oiã ou a Oliveira do Bairro? Ou estaria condenada a definhar, a ficar isolada e sem hipótese de qualquer tipo de desenvolvimento? Para mim os resultados duma hipotética agregação devem assentar numa visão estratégica para o concelho que seja capaz de garantir a coesão territorial, situação que estas propostas parecem não contemplar ao não incluir na agregação uma das quatro freguesias mais pequenas do concelho.

É certo que JNP avança com um quarto cenário que tem o mérito de não excluir nenhuma das freguesias mais pequenas. Acrescento que caso a agregação se torne inevitável este é porventura o que mais colhe a minha simpatia. Teríamos assim a união de Bustos-Palhaça-Troviscal-Mamarrosa. JNP aponta para que a sede seja em Bustos, o que só lhe fica bem, ou não fosse ele membro da respetiva Assembleia de Freguesia. Não nego que os argumentos que invoca tenham uma poderosa lógica interna, sobretudo no que se refere à centralidade geográfica e, no caso dos equipamentos, à existência e influência do IPSB.

Há no entanto um outro cenário de agregação possível para as quatro freguesias mais pequenas e que também não deixa de fora nenhuma delas: seria a união da Palhaça com Bustos e a do Troviscal com a Mamarrosa. Desconheço as razões pelas quais JNP não aflora esta possibilidade, não acreditando sequer que tal omissão  tenha a ver com a perda da centralidade de Bustos. Este cenário permitiria manter o concelho de Oliveira do Bairro com quatro freguesias e não apenas com três. Temo que um concelho com dimensão territorial tão diminuta (87 K2) e com apenas três ou mesmo quatro freguesias possa no futuro vir a ser extinto ou agregado a outro.

Convém ainda referir que para lá da centralidade geográfica há outros critérios a ter em conta, previstos na alínea b), artigo 8.º, da Lei 22/2012. São eles: um índice de desenvolvimento económico-social mais elevado; o maior número de habitantes e a maior concentração de equipamentos coletivos. Todos eles se devem assumir como critérios preferenciais para selecionar freguesias que funcionam como pólos de atração e por isso mesmo são indutoras do desenvolvimento de todas as outras. De todo o modo, o poder de regulação e de decisão duma eventual agregação de freguesias deve resultar de soluções organizacionais flexíveis e estar sintonizado com a aplicação do princípio da subsidiariedade entre diferentes entidades e serviços.

Diria que é na forma de determinar a localização da sede da junta de freguesia obtida por agregação que reside a questão mais polémica. Uma espécie de problema-tabú em que ninguém toca. As freguesias agregadas que ficarem sem Presidente de Junta verão os seus habitantes deslocar-se ao local onde passará a funcionar a sede da nova freguesia criada por agregação para obterem um simples atestado de residência. São coisas destas que os cidadãos não conseguem engolir de ânimo leve. Vão ser confrontados com uma solução que cava um fosso ainda maior com os anteriores serviços de proximidade que lhes eram prestados, diminuindo-lhes o grau de autonomia e de independência a que se foram habituando ao longo dos anos. De algum modo esta lei configura uma violação do princípio de autonomia das autarquias e degrada a qualidade de vida das populações. Veremos também se a par do desaparecimento de muitas freguesias, sobretudo as mais desertificadas do interior e com população mais envelhecida, não vamos assistir igualmente à extinção de serviços públicos como os CTT, a GNR, as Escolas ou as Extensões de Saúde, que serão sempre motivo de protesto e de descontentamento.

 3. Evitar a guerra de todos contra todos

Não é pecado gostarmos da nossa terra. Nem falar com emoção do lugar onde nascemos, onde aprendemos as primeiras letras, onde fizemos a comunhão solene, onde nasceram e cresceram os nossos filhos, onde vivemos e tencionamos morrer. Ter uma aldeia é ter sido moldado por ela e proclamar para todo o sempre que a ela pertencemos.

Mas ao valorizar o que é nosso – como aconteceu nas sessões de esclarecimento promovidas pela Comissão Permanente da Assembleia Municipal -  ao identificar  o que nos carateriza e distingue dos demais, convém não chocalhar autoelogios desnecessários. É preciso evitar o excesso de devoção que pode conduzir à tentação de considerar as outras freguesias inferiores quando falamos da nossa. É um preconceito que não respeita os méritos alheios e tende a considerar como inferior aquilo que apenas é diferente. As nossas freguesias não podem evoluir apenas voltadas para si próprias, como se a porosidade das “fronteiras” não constituísse um apelo à convivência fraterna com os nossos vizinhos (longe vão os tempos, como acontecia no império romano, em que tudo o que estava para lá dos seus limites geográficos era considerado “bárbaro” ou hostil). Enriquecemo-nos quando respeitamos a diversidade. É a criar laços e a estabelecer ligação com as outras freguesias do concelho, ou a compreender e a integrar as suas preocupações e não apenas as nossas, que verdadeiramente crescemos.

Vivemos num tempo em que a regra é a coexistência num mesmo território de grupos étnicos e culturais distintos, onde se pratica a convivência e a fusão de culturas e não a sua segregação. O momento que atravessamos é pois de unir e não de dividir. Dividir para reinar é a divisa do poder, não a dos cidadãos. O pior que nos pode acontecer é que sob a capa da democracia e do direito à livre expressão e opinião se manipulem as pessoas atirando-as umas contra as outras ou arrumando-as entre “boas” e “más”.  Em vez de causarem estranheza os espaços de vizinhança devem ser cada vez mais lugares de cooperação e enriquecimento e não de exclusão.

Não há grandes disparidades de povoamento, de economia e de sociedade, ou mesmo dos comportamentos e práticas culturais (crenças e valores) entre as freguesias do nosso concelho. O que faz um concelho não é tanto o espaço geográfico mas sobretudo o tempo e a história que o caraterizam. Assim sendo, o que verdadeiramente está em causa não pode ser a conversão de umas freguesias a outras, mas a concretização de sucessivas plataformas de entendimento em que todos caibam sem atropelos, abdicações ou exclusões.  Temos que olhar para aquilo que nos liga e aproxima, evitando a apologia do “único”, do “só nosso”, elementos que usualmente salpicam a valoração constante do lugar matricial e são próprias duma visão paroquializada dos nossos interesses. A proposta de agregação de freguesias só pode traduzir-se na necessidade de maior compreensão da proximidade.

Eis por que tanto apreciei o texto de João Nuno Pedreiras, para lá de uma ou outra discordância pontual. Não quis deixar de o dizer, ao encerrar esta série de textos sobre a reorganização administrativa territorial autárquica.