Era fatal. A refrega entre a geração dos políticos herdeiros – os que de forma calculista vão fazendo carreira no aparelho partidário e aguardam com paciência beneditina a sua vez – e a dos políticos tradicionais – os que estavam habituados a pugnar por verdadeiras alternativas de poder – teria que irromper a qualquer momento. Somos aquilo que resulta das nossas opções e do exercício da nossa liberdade. Mas também somos muito aquilo que herdamos e que para sempre fica inscrito nos nossos genes.
Por isso o escorpião voltou a fazer das suas. De olho esgazeado, espreitou o momento oportuno para erguer a cauda, usar o esporão e inocular a peçonha. As pouco edificantes trocas de galhardetes entre os parceiros da coligação a propósito da Taxa Social Única remetem de forma irresistível para a conhecida fábula de Esopo, cujos intervenientes são a rã e o escorpião. Os clamores de protesto que incendiaram o país fizeram soar no governo as campainhas de alarme. O povo ergueu-se numa onda gigante de indignação como há muito não se via em Portugal. À rã e ao escorpião nada mais restou senão tentar minimizar os estragos. Só que em vez de resguardarem a irmandade do poder que ambos partilham, resolveram tentar salvar apenas os particulares interesses das suas confrarias políticas.
Acossado pelo incêndio que já lhe mordia a cauda, o escorpião deslocou-se para a beira do rio. O problema é que não sabe nadar, apenas se movimenta bem em terreno firme, portanto o mais longe possível dos fogos que cada vez mais cercam a irmandade. Atravessar o rio é a solução. Mas precisa da rã para o fazer.
Esta escusa-se uma e outra vez, refila, diz que não. Conhece o escorpião de ginjeira. Não deixaria de lhe dar a picada mortal, iriam os dois para o fundo do rio. Nada de mais errado, riposta o escorpião. Quero sobreviver a qualquer preço e fico-te para sempre grato se me deixares no terreno firme e seguro da outra margem. Bem intencionada, a rã anuiu e lá empreenderam a viagem.
Já tinham percorrido mais de metade do tapete líquido que ligava as duas margens quando de repente, de forma imprevista e traiçoeira, o escorpião prega uma valente e dolorosa ferroada na rã imprevidente. Aturdida e perplexa, ela pergunta: então não cumpriste o prometido? Assim vamos os dois ao fundo, já nada nos pode salvar. O escorpião, resignado à sua sorte, retorquiu: bem sei que tens razão, rã. Sei que vamos morrer. Mas que queres? Está-me na massa do sangue. Ferrar é da minha natureza…
Não se sabe bem se esta coligação no poder vai acabar como a história da fábula. Tudo depende da forma como a família da rã vai responder à família do escorpião. A rã até pode continuar a viver na panela de água fria que é a governação do país. Mas não será por muito tempo. Incauta como é, a rã não dará conta que a água vai aquecer a pouco e pouco, no lume brando que alguém sorrateiramente ateou. A rã só vai despertar desse torpor, dessa vã glória de mandar num povo que julga amestrado e dócil, quando já for tarde de mais.
Vamos saber daqui a pouco se o Conselho de Estado vai dar mais calor à rã ou deixar tudo como dantes. De qualquer modo a rã não tem hipóteses. É uma questão de tempo. Quando der por ela… está cozida!
Quanto ao escorpião, é capaz de continuar à tona e ganhar novo fôlego, a avaliar pela capacidade de sobrevivência a que nos vem habituando. É bem provável que franqueie de novo outras portas escancaradas da hospitalidade que lhe vão conceder.
Antes que pregue nova ferroada, o melhor é mesmo colocar já umas meias solas bem grossas nas botas, à falta de melhor antídoto para lhe fazer frente.