quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Adeus a Milton Costa, o bustoense tranquilo



Carrego nos pedais da memória: o Milton, com quem nunca privei de perto, mas que conheci na juventude, no tempo em que marcava presença nas festas e romarias de Bustos e arredores, era um confesso amante dos bichos e da natureza. A discrição, com alguma timidez à mistura, deixavam na penumbra a faceta do investigador, do professor universitário e do microbiologista conceituado. Um quase apagamento voluntário, uma espécie de solidão essencial ao acto criativo, onde a obra comunica mas o autor que a gera se enrodilha em silêncio, como quem quer fazer do silêncio o seu único excesso.

Creio que a última vez que estive com ele foi em Julho de 2010, no restaurante “Dois Telheiros” (Sobreiro). Decorria o Fórum de Bustos que homenageou a República em ano de centenário, com apresentação do livro de Silas Granjo “Troviscal Republicano: Banda Excomungada, Clero Interdito” e também da publicação “Proclamação da República. De Lisboa a Oliveira do Bairro”.

O Milton, claro, não podia faltar. Ainda estou a vê-lo, com as suas tamancas, trajando a preceito, a imitar o “Zé Povinho”. Lembro-me bem: foi nesse preparo que deu um abraço emocionado ao Dr. Fernando Peixinho, amigo de seu pai, Hilário Costa, nessa altura já desaparecido do nosso convívio. Sempre aquele ar simples, aquela bonomia, aquele olhar de rio manso a desaguar num mar de ternura e de cumplicidade para quem dele se abeirava. Um ser humano estruturalmente bom, amigo do seu amigo: acima da inteligência e da curiosidade, era a sua bondade que cativava. Um homem raro, bissexto. Sem vaidades vãs.

Nenhuma idade é boa para morrer. Sem palavras para exprimir o indizível, mas acreditando na ressurreição das palavras, aqui ficam, dedicados ao Milton - que gostaria de ter conhecido mais de perto, e melhor - estes versos de Luis Serrano:

O gosto amargo
da viagem
que de súbito terminou
silêncio não mais 
do que a memória do vento
sobre a planície

E estes de Ruy Belo:

Na face dele havia risos vivos
que lhe escorriam da alma para a boca

Já cá não está já não pisa estes prados
nem sobre eles se desdobra rubro este céu
Não há para ele palavra possível
ele é como a camélia que morreu