Não deixa de causar alguma estranheza verificarmos que quem ocupa em simultâneo vários cargos públicos defenda, sobre o mesmo assunto, num lugar um determinado ponto de vista e no outro uma posição diametralmente oposta. Um pouco como quem defende um dia uma coisa e no dia seguinte o seu contrário. A esses o povo deu-lhes um nome: troca-tintas.
Será que quem simpatiza com um clube de futebol, milita num partido político, professa uma religião, está impedido de ter voz própria? A fidelidade a um ideal pode impedir-nos de pensar pela nossa cabeça? Quem gosta mesmo da verdade das palavras enquanto expressão do pensamento não procura amaciá-las de acordo com as conveniências do momento.
Andam envoltas em polémica as declarações do presidente da Unidade Técnica da Assembleia da República para a reorganização administrativa do território. Manuel Porto, de seu nome. Figura emblemática do PSD, reputado professor universitário de Direito que entre muitos outros cargos já foi presidente da Comissão de Cordenação de Desenvolvimento Regional do Centro e deputado ao Parlamento Europeu.
Acontece que Manuel Porto, além de responsável pela Unidade Técnica que há-de tratar da saúde às freguesias, é também presidente da Assembleia Municipal de Coimbra. Foi nesta qualidade que disse, por mais de uma vez, ser contra a extinção ou fusão de freguesias e em coerência votou mesmo contra esse processo. O problema é que na qualidade de presidente da Unidade Técnica se apresta para fazer o contrário do que diz. Isto é: em público mostra-se solidário com as freguesias mas em privado vai efetuar os cortes que não foi capaz de propor à Assembleia Municipal de Coimbra. Eis a quadratura do círculo ao seu melhor nível. Quem preza a coerência gostaria naturalmente de vê-lo demitir-se de um desses dois cargos que ocupa.
Pode o presidente da Unidade Técnica alegar que se mantém em funções para “minimizar os estragos” desta reforma. Pode até dizer que continua a ser coerente e não vê na acumulação simultânea desses cargos qualquer contradição ou incompatibilidade. Pois seja. Mas não lhe ficaria mal um estremecimento ético que o levasse a questionar se esse comportamento não estará a macular o mandato de autarca conimbricense. O cidadão comum é que não consegue atingir a complexidade do seu raciocínio e pasma com toda esta apregoada coerência.
Tudo isto mostra bem o quanto é difícil ficar imune ao canto de sereia dos títulos e honrarias. Sem que muitos o saibam, são coisas destas que causam sérios danos à saúde da democracia, que a atolam cada vez mais no lodaçal da política videirinha e nos afastam do futuro decente com que um dia sonhámos, esse dia inicial, inteiro e limpo, como lhe chamou Sophia.
No concelho de Oliveira do Bairro, à semelhança do que acontece noutros concelhos, o parecer da Câmara aponta no sentido de todas as freguesias se manterem como estão. Resta saber se diz o que pensa ou pensa o que não diz, pois sabe que dificilmente as coisas vão ficar na mesma.
É que o secretário de Estado da Administração Local e da Reforma Administrativa continua a dizer que cerca de mil juntas de freguesia vão desaparecer “sem dúvida nenhuma” até ao final do ano. Depois das estruturas da pesca e da agricultura, das maternidades, centros de saúde e escolas, chegou a vez das freguesias. E talvez logo a seguir dos concelhos. Tudo cabe na goela hiante do desconcerto governativo dos últimos anos.
Manuel Porto vai pois ajudar a cortar nas freguesias. Pode bem acontecer que quem verdadeiramente ama a sua freguesia, ao vê-la irremediavelmente extinta ou agregada a outra, queira também cortar qualquer coisa a Manuel Porto...
Era bem feito.