O
dia 6 de Abril de 2014 assinala os 500 anos da Carta de Foral de Oliveira do
Bairro, cuja interpretação pertence ao ilustre bairradino António Tavares
Simões Capão, um particular interessado no conhecimento da História Local e um
homem preocupado com a fixação da memória num tempo em que se caminha para a
desmemoriação total. A capacidade para descodificar a linguagem e a estrutura
dos textos da carta de foral não está ao alcance de qualquer um. Interpretar
fontes documentais ajustadas a uma realidade local tão distinta da actual exige
grande perícia e conhecimento. É tudo isto – e isto não é tudo – que lhe
devemos.
Para
se perceber a importância dos forais atente-se ao que refere Marcelo Caetano: “Não
basta num Estado a existência do governo supremo com seus órgãos centrais: é
necessário que as decisões desse governo possam ser conhecidas e impostas em
todas as partes do território e que as necessidades peculiares de cada localidade
sejam atendidas e possam chegar ao conhecimento dos governantes”.[1]
Dito de outro modo: não bastava legislar. Para realizar a justiça, que era uma
das obrigações, se não a principal, de um rei do passado, era necessário que a
legislação fosse conhecida de todos e por todos usada correctamente.[2]
Hoje,
qualquer cidadão conhece a área geográfica onde reside, identifica a pertença a
uma freguesia que está inserida num concelho, o qual, por sua vez, se integra
num distrito. Pois bem, na Idade Média esse enquadramento era bem mais difuso:
além de não existirem distritos, a realidade medieval projectava-se para lá dos
concelhos, devendo atender-se também às “dinâmicas sectoriais que de perto
conviviam com as autoridades municipais e se plasmavam no texto dos próprios
forais, na medida em que consubstanciavam relações de difícil concorrência e
que precisavam de memória escrita para as clarificar e fixar no horizonte
social do grupo comunitário a que diziam respeito [...]. É pois de crer que o homem medieval teria
dificuldade em conseguir representar mentalmente a geografia do território em
que estava integrado”.[3]
A
estes obstáculos deve somar-se a diversidade e a complexidade de cada
território em particular, acentuada pela sobreposição de distintas esferas de actuação,
que vão desde o poder real, ao local, passando pelo senhorial. Várias áreas
geográficas estavam sob a jurisdição de um núcleo de senhores que partilhavam
com a coroa alguns atributos do poder público. Daí a preocupação crescente dos
monarcas em restringir os poderes senhoriais - assentes em títulos e na
propriedade fundiária - o que não se fazia sem conflitos.
Os
poderes senhoriais representavam uma significativa perda de receitas para a
coroa. A intervenção régia nos concelhos era bem mais fácil, assumida por
oficiais (corregedores ou juízes de fora) que asseguravam localmente a tutela
do monarca. Assim se compreende que um dos primeiros objectivos da reforma
manuelina consistiu em tentar clarificar as diferentes esferas do poder local.
Também
nestas matérias os forais se assumem como fontes de direito indispensáveis para
ajudar a perceber como é que estas dinâmicas se articulavam no terreno.[4]
Eram frequentes as animosidades, conflitos e resistências das comunidades
locais perante os abusos dos poderes senhoriais – clero e nobreza - mais
presentes a nível local. A gestão do equilíbrio entre os diferentes poderes era
difícil.
As
mais antigas cartas de foral tinham como principal objectivo o povoamento do
território, assumindo-se como contratos agrários que estão na base da formação
de núcleos populacionais autónomos. Fazia-se um apelo a quem quisesse fixar-se
em determinada localidade, bastando-lhe acatar as disposições contidas no
diploma. Era comum, ao conceder-se foral a uma localidade, adoptar o modelo de
outro anterior. Reproduzindo-o integralmente ou com ligeiras alterações. O
concelho brindado com a outorga do foral via-se livre do controlo feudal. O
poder mudava de sede e passava para um concelho de vizinhos. A população ficava
a depender directamente da Coroa.
A
temática foraleira está assim associada ao estudo dos municípios portugueses e
ao próprio poder local. Interessa às actuais Câmaras Municipais, herdeiras da
tradição concelhia medieval, uma vez que os forais espelham os poderes régios,
senhoriais e municipais de uma determinada área territorial específica. Em
termos gerais os forais preceituavam o seguinte: liberdades e garantias de
pessoas e bens dos povoadores; impostos e tributos; multas resultantes de
delitos e contravenções; imunidades e serviço militar; encargos e privilégios,
ou aproveitamento de terrenos comuns. Muitas outras matérias, nomeadamente de
direito privado – e que por isso ocupavam um plano muito secundário nas cartas
de foral – continuavam a ser reguladas pelo costume.
No
século XV os forais antigos eram motivo de controvérsia. Estavam redigidos em
latim bárbaro e por isso afastados do conhecimento da maioria duma população
vergada ao peso da terra e manietada pelo flagelo do analfabetismo. É sabido,
também, que a Idade Média fabrica sem má consciência – sobretudo nos seus
primórdios - falsos diplomas, falsas
cartas e falsos textos canónicos. O facto de muitas cartas se encontrarem
delidas pelo tempo ou até, nalguns casos, o seu carácter opressivo, levaram os
procuradores dos concelhos a pedir a sua reforma. Eram frequentes os abusos dos
donatários. A interpretação dos documentos servia apenas o interesse de alguns.
Atente-se só neste exemplo: os nobres chegavam com a sua comitiva a uma
qualquer localidade e, fazendo uso do direito
de aposentadoria, instalavam-se, assentavam arraiais e exigiam alimentação
e outras comodidades. Finalmente, há que dizer que havia também conflitos que
resultavam da assinalada disparidade entre regiões relativamente aos pesos e
medidas.[5]
A
reforma viria a acontecer no reinado de D. Manuel I (1495-1521). Não para
fortalecer a autonomia dos municípios mas essencialmente para registar encargos
e isenções locais, já que o poder real estava cada vez mais empenhado em
estender as disposições legislativas gerais a todo o território. À medida que
essas lei gerais iam sendo implantadas, assiste-se ao “enfraquecimento do poder
estabelecido nos forais e daqueles que nele se pretendiam firmar”.[6]
Os forais novos são apenas uma das várias
emanações das diferentes reformas manuelinas. Eram precedidos de inquirições
feitas aos “homens livres” e concedidos aos representantes dos lugares.
Estabeleciam as regras a seguir pelos habitantes entre si e em relação à
entidade outorgante. A sua análise devolve-nos um retrato da sociedade
quinhentista, particularmente no campo do direito e da economia. Eram
concedidos pelo rei ou por um senhor laico ou eclesiástico, dependendo a
outorga de quem detinha o poder fundiário. Estes forais novos consagram um
vasto conjunto de direitos a pagar ao rei, a par de obrigações para com outras
esferas de poder. Estamos a falar de uma sociedade em que o privilégio se
sobrepunha à lei geral.
A preocupação dominante em “certificar a
natureza e o quantitativo dos direitos reais” ajuda a explicar a razão pela
qual estes novos diplomas mantêm intocados os órgãos concelhios e as suas
atribuições.[7] Convém referir que a
reforma manuelina dos forais é encetada em simultâneo com a reforma das Ordenações: “Muitas das disposições
relativas à justiça, assim como as de âmbito económico, estavam já consagradas
nas leis gerais do reino”.[8]
É o que acontece com o direito de portagem, um direito real inscrito nas Ordenações Manuelinas que passa a ser
cobrado de maneira tendencialmente uniforme nas diferentes terras.
Para
a coroa o municipalismo representava uma importante fonte de receitas e até de
recursos económicos e militares que podia fornecer ao país, ajudando a
fortalecer o poder real. Ao longo do século XVI esse fortalecimento acentuava o
declínio das instituições concelhias. Paralelamente, a importância dos forais
também diminui, quando se transformam em “meros registos de tributos dos
municípios”.[9] Esta reforma promovida
pelos forais novos foi tudo menos pacífica: eram frequentes as reclamações dos
concelhos e dos senhorios, a quem não agradava a versão final dos documentos
que lhes chegavam às mãos.
Feito
este enquadramento, vejamos então aquilo que o foral de Oliveira do Bairro nos
dá a conhecer de mais relevante sobre o pulsar das terras por ele abrangidas no
período quinhentista, nomeadamente na esfera social e da economia. Segundo o
Dr. António Capão, os forais novos manuelinos só aludem ao vinho de permeio com
outros produtos, como o pão, a cal e o sal, quando se trata de fixar os preços
de portagem e passagem. A chamada “regra do relego” (privilégio de que gozavam
os senhores de algumas terras para venderem o seu vinho aos pequenos
proprietários, proibindo a venda de vinho avulso durante os três primeiros
meses do ano, período em que só o seu podia ser vendido) aparece inscrita em
algumas cartas de foral da Idade Média. Só que não aparece no foral de Oliveira
do Bairro.
Este
tempo de relego era pois um atentado sério ao livre comércio. Trata-se de um
direito mencionado nas Ordenações
Manuelinas, que incidia igualmente sobre a venda do vinho régio, proibindo
a venda deste produto a particulares sem que primeiro se escoasse o vinho que
pertencia ao Rei.[10]
Infere
assim o autor bairradino a forte probabilidade de estarmos em presença da diminuta
importância da cultura da vinha durante o século XVI, nos locais abrangidos
pela carta de foral: Oliveira, Cercal, Repolão, Pedela (Vila Verde), Montelongo,
Lavandeira, Amoreira (do Reploão) e
Bairro do Mogo. Em seu entender, “a produção vinícola até ao século XVI não
explicava ainda a necessidade dessa lei específica [pois] o cultivo da vinha no
século XVI não teria, na nossa região, a importância que então lhe é dada
noutras partes do país”.[11]
O
cultivo da vinha na Bairrada parece datar do período romano: “Pode afirmar-se
que as vinhas da Bairrada são mais antigas do que a própria Nação Portuguesa,
como os numerosíssimos documentos das chancelarias comprovam”.[12]
Em 1137 “receberam os monges de Santa Cruz toda uma vastíssima herdade, no
coração da Bairrada, com autorização para plantar vinha”.[13]
Já a importância da produção do vinho na região terá acontecido bem mais tarde,
em plena Idade Média. Pelo menos a partir do século XI o vinho serviria não
apenas para consumo e comercialização, mas também como forma de pagamento das
rendas e dos impostos.[14]
Era no vinho que os senhores da terra encontravam a maior fonte dos seus
impostos.
O
certo é que as conclusões extraídas pelo Dr. António Capão, a partir da leitura
que fez da carta de foral, colocam em causa – pelo menos no que se refere a
Oliveira do Bairro – a possibilidade de a viticultura ter sido sempre a actividade
predominante na área em estudo, sobrepondo-se, entre outras, à cultura da
oliveira. Também Armor Pires Mota se pronuncia sobre o assunto ao constatar que
na carta de foral de Oliveira do Bairro o vinho não surge como “moeda”
extraindo a conclusão de que, “embora já cultivado, o fosse em pequena escala,
ao contrário de outras terras, como Soza e Ouca que, nesses tempos remotos, já
produziam bastante, de tal modo que aparece como elemento de pagamento nas
obrigações dos casais”.[15]
Este
escritor e autor bairradino mostra também alguma perplexidade pelo facto do
foral de Oliveira do Bairro não aludir expressamente à produção de cal. Na
verdade a cal aparece no documento ao lado do vinho, do pão e do sal, produtos
sujeitos ao pagamento de direitos de compra e venda. O certo é que no capítulo
que dedica à indústria da cal (páginas 307 a 310) alude a vários locais “onde
fumegavam fornos e estoiravam chãos de pedra” mas em nenhum momento os faz
remontar a inícios do século XVI, ou seja, à data da outorga do foral. Tudo
leva pois a crer que o florescimento desta actividade tenha ocorrido alguns
séculos depois.
Anota
também o Dr. António Capão, como curiosidade, que no foral “os escravos são
colocados ao lado ou em pé de igualdade com as bestas e vendidos ou comprados
como tais”.[16] Estamos a falar de servos
da gleba que pertenciam à terra do senhor, normalmente fidalgos, ou seja
“filhos de algo” que deviam ao nascimento a posição privilegiada que ocupavam
na hierarquia social. Os servos pertenciam às suas quintas da mesma forma que
as aves de capoeira, o gado ou os cães de guarda e de caça. Quando a herdade
mudava de mãos – por transação ou herança – os servos da gleba iam com ela e
tornavam-se propriedade do novo senhor. Estamos a falar de reminiscências de
tempos bem mais recuados, quando em plena sociedade esclavagista romana Marco
Terêncio Varrão, ao aludir aos meios de trabalhar a terra, chamava aos escravos
“instrumentos falantes”, para os distinguir dos instrumentos que emitem sons
não articulados (animais de tracção) e dos instrumentos mudos (utensílios
agrícolas).
Digna
de registo é também a importância do sal para a população, sobretudo para a conservação
dos alimentos. O foral dá-nos conta disso: além de outros produtos como os ovos
ou o pão cozido, também o leite e seus derivados sem sal não pagavam portagem. Enfim, deixa-se ao leitor o prazer de
descobrir outras curiosidades que a carta de foral encerra. Que produtos se
transacionavam, que tributos pagavam, que pesos e medidas eram usados. E também
lá pode encontrar o que era a pena de
arma, o gado de vento, o direito de fogaça e de montado e tantas outras curiosidades.
O
Decreto de 13 de Agosto de 1832 (Mouzinho da Silveira) extinguiu por completo
os forais, vistos como “um peso intolerável” em certas regiões de Portugal, por
constituírem um sério travão ao desenvolvimento da agricultura. Na verdade e
por efeito do sistema legislativo e fiscal desses tempos recuados, muita gente
da nobreza e do clero usufruía de “fartos proventos que o povo ia pagando, nuns
casos, para salvação da alma, noutros, para salvaguarda do coiro”.[17]
Os
forais são documentos valiosíssimos enquanto repositórios de memórias que podem
e devem ser transmitidas às gerações actuais e futuras. Para Jacques Le Goff, o
historiador recentemente desaparecido que nos legou trabalhos notáveis como O Nascimento do Purgatório – o
nascimento de uma crença, de um espaço construído que corresponde, no século
XII, a uma necessidade de espacialização do Além - estes documentos são também monumentos
na medida em que estão ligados ao poder de perpetuação, voluntária ou
involuntária, das sociedades históricas.[18]
Assim sendo, a Carta de Foral de Oliveira do Bairro não é apenas um documento
do passado: assumindo-se como um produto da sociedade que o fabricou segundo as
relações de força de quem à época detinha o poder, é também um monumento, enquanto testemunho escrito
legado à memória colectiva que assim se institui em património cultural.
Seria
gratificante que a população do concelho de Oliveira do Bairro e por maioria de
razão a comunidade escolar pudessem reflectir, um pouco que fosse, sobre
algumas questões relacionadas com a atribuição do foral. Por exemplo: há
quinhentos anos terá o povo recebido a notícia com o mesmo entusiasmo com que
agora se comemora a data? Não houve reclamações ou protestos? Dar a conhecer um
pouco como funcionava a sociedade quinhentista e qual o perfil do monarca que
empreendeu a reforma dos forais (D. Manuel I foi um rei centralizador, inovador
e reformador) ajudaria a distanciar estas comemorações da pior das inculturas:
a que faz da cultura uma convenção e não uma convicção.
Espera-se,
pois, que para lá do divertimento – cuja programação parece incluir evidentes
preocupações culturais – irrompam também momentos de reflexão. O pior que nos
podia acontecer é que tudo se resumisse a umas tantas festarolas habilmente
confundidas com actos culturais, “pão e circo” para entreter os incautos do costume.
[1] Marcelo Caetano, História do Direito Português (1140-1495),
Lisboa, Editorial Verbo, 1992, p. 215.
[2] João José Alves Dias, Ordenações Manuelinas 500 anos depois. Os dois
primeiros sistemas (1512-1519),
Catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal, Centro de Estudos
Históricos-Universidade Nova de Lisboa, 2012, p. 15.
[3] Filipa Maria Ferreira da
Silva, Os Forais Manuelinos de Entre
Douro e Minho (1511-1520): Direito e Economia. Dissertação de mestrado em
História Medieval e do Renascimento, Faculdade de Letras da Universidade do
Porto, 20012, p. 13. Vamos seguir de perto a obra citada, na elaboração deste
texto.
[6] Maria Alegria Fernandes Marques, Os
Forais Manuelinos de Soza e de Vagos (Nota introdutória), edição da Câmara
Municipal de Vagos, s/d, p. 20.
[9] Mário Júlio de Almeida Costa, “Forais”, in Dicionário de História de Portugal (Joel Serrão, dir.), Porto,
Livraria Figueirinhas, pp. 55-56.
[10] Ordenações
Manuelinas, Livro II, Título
XXXIV, p. 159, segundo Filipa Maria Ferreira da Silva, obra citada, p. 52, nota
213.
[11]
António Capão, Carta de Foral de Oliveira
do Bairro, Edição da CMOB (2.ª edição corrigida e aumentada), 2001, p. 28.
[12] J. Branquinho de Carvalho, “Síntese das
vicissitudes das Vinhas e dos Vinhos”, Jornal
da Bairrada (Suplemento Bairrada Vitivinícola), 26.12.2002, p. 7.
[13] Amaro Neves, “Pantar vinhas...na Bairrada”, Boletim da Associação para o Estudo e Defesa
do Património Natural e Cultural da Região de Aveiro (ADERAV), n.º 11, Maio
1984, p. 11.
[15] Armor Pires Mota, Oliveira do Bairro. Alma e Memória, edição da Câmara Municipal de
Oliveira do Bairro, 2002, p. 38.
[17]
Carlos Alegre, “Os centenários dos forais”, Jornal
da Bairrada, 30.01.2014, p. 3. Sobre o 5.º centenário dos forais
manuelinos, ver, no mesmo jornal, Eva Neves Dias, “Os Centenários dos Forais”
(edição de 20.02.2014, p. 50) e Acílio Gala, “A comemoração dos 500 anos da
Carta de Foral de Oliveira do Bairro” (edição de 27.03.2014, p. 3.).
[18] Jacques Le Goff, “Documento/Monumento”, Enciclopédia Einaudi (vol.1,
Memória-História), Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 95-104.