Além de Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, Miguel França Martins, que usava o pseudónimo “Zil de França”, foi conservador do Registo Civil, presidente da União Nacional concelhia, Provedor da Misericórdia, jornalista e poeta da Plêiade Bairradina.
Colaborou com regularidade no Alma Popular, sobretudo com poesias, e no Jornal da Bairrada, onde assinava a rubrica Tempos Idos, versando temas oliveirenses. Dirigiu também o Correio de Cértima, um jornal regionalista lançado em Oliveira do Bairro em 1930, para atender aos interesses da região. Nele se assumia que a principal riqueza era o vinho, embora reconhecendo ser o mesmo, em geral, de “deficiente fabricação”.[1]
A nobre utopia ia ao ponto de idealizar que a Bairrada, mais cedo ou mais tarde, iria fatalmente apresentar no mercado mundial de vinhos “um tipo consagrado”. Curiosa, também, neste mesmo número do jornal, uma notícia sobre a Palhaça, cuja população queria ver desanexada a freguesia do concelho de Oliveira do Bairro. Tudo terá começado por causa da imposição camarária da cobrança a dinheiro do imposto braçal, medida que visava, segundo o jornal, “acabar com a bandalheira de pagar ao encarregado dos serviços camarários um dia de trabalho por um copo de vinho na adega”[2].
Como Miguel França Martins nunca publicou qualquer livro, quase ninguém conhece os saborosos textos que derramou na imprensa, sem esquecer os dedicados ao teatro popular e versos para cortejos populares, igualmente inéditos[3]. Viria a falecer prematuramente em 20 de Agosto de 1959, contava então 59 anos de idade. Era casado com Noémia Clementina Figueira, também ela conservadora do Registo Civil no nosso concelho[4].
Tenho em meu poder um número significativo de textos que Miguel França Martins publicou no Jornal da Bairrada. É prosa bem esgalhada, com ritmo, capaz de prender o leitor logo nas primeiras linhas. Uma escrita viva, atraente, que recolhe usos e costumes de tempos idos, evoca figuras típicas da região e narra episódios com laivos picarescos, de inegável cunho popular. Peças importantes, a meu ver, para uma sociologia dos costumes bairradinos. Estes textos mereciam ser reunidos em livro, para prazer e conhecimento de todos. Duvidam? Deixo aqui só um cheirinho dessa prosa fluente e saborosa, coberta ainda com o pó do esquecimento. Foi publicada no Jornal da Bairrada de 28 de Novembro de 1953 e tem por título PÃO E VINHO ... PÃO E VINHO...
“Na doce esperança de que no outro Mundo a Morte é Vida – Vita Mutatur, non tollitur – ainda, há pouco tempo, na nossa região, se festejava a Morte como um simples acontecimento transitório da Vida, para uma outra vida melhor. Sim, ainda há muito poucos anos que foi abolida, nos funerais da nossa região, a patuscada nos enterros, com que, lautamente, se banqueteavam à custa do morto todos aqueles que acompanhavam o féretro ao cemitério. E, misturados com coroas, em cujas dedicatórias se liam, a letras doiradas, saudades eternas e últimos beijos, se conduziam à cabeça das mulheres, de luto, canastras de pão alvo da Ti Joana Padeira, que regalava os olhos e abria o apetite. Canastras de pão e almudes de vinho e, às vezes, até queijo amanteigado da serra a esbarrondar-se da casca, ante os olhos ávidos do acompanhamento, que seguia, no silêncio das grandes dores.
Estas iguarias eram conduzidas para um estabelecimento da vila e ali se estabelecia, então, o Festim Post Mortem que, às vezes, até acabava com pancadaria, muito principalmente se metesse queijo e se alguns dos assistentes o fossem distribuindo pelos bolsos.
Ficou tradicional a interpretação dos sons que provinham das torres que tinham três sinos. Quando falecia um remediado, só tocavam dois, cujo som se assemelhava ou era interpretado com a letra da seguinte frase: “Pão e vinho ... Pão e Vinho ...”. Mas quando falecia, na terra, um rico lavrador, entrava, então, a tocar, também, o terceiro sino. Com som mais cavo, mais doloroso e mais profundo, que mais longe levava o som lúgrube dos seus gemidos e a ementa da merenda, completava-se a frase: “E... queijo.... e... queijo...”.
A patuscada nas lojas desapareceu para dar lugar à abertura da porta da adega, em casa do morto.
Quando faleceu a mulher do nosso engraçado Manuel João, o vizinho Marcos Vela foi apresentar, ao seu amigo enlutado, os sentimentos da sua dor e o Manuel João, em vez de agradecer as condolências sinceras que o Marcos lhe apresentava, diz:
- Olha, ó Marcos, vai abrir a porta da adega, bebe e dá de beber a essa gente.
Esta atitude é já uma última reminiscência dos velhos e apagados costumes do “Pão e Vinho... Pão e Vinho... e Queijo...”.
Estes costumes desapareceram, mas o que não desaparece, nos corações das pessoas bem formadas, é que, realmente – Vita mutatur, non tollitur”.
Colaborou com regularidade no Alma Popular, sobretudo com poesias, e no Jornal da Bairrada, onde assinava a rubrica Tempos Idos, versando temas oliveirenses. Dirigiu também o Correio de Cértima, um jornal regionalista lançado em Oliveira do Bairro em 1930, para atender aos interesses da região. Nele se assumia que a principal riqueza era o vinho, embora reconhecendo ser o mesmo, em geral, de “deficiente fabricação”.[1]
A nobre utopia ia ao ponto de idealizar que a Bairrada, mais cedo ou mais tarde, iria fatalmente apresentar no mercado mundial de vinhos “um tipo consagrado”. Curiosa, também, neste mesmo número do jornal, uma notícia sobre a Palhaça, cuja população queria ver desanexada a freguesia do concelho de Oliveira do Bairro. Tudo terá começado por causa da imposição camarária da cobrança a dinheiro do imposto braçal, medida que visava, segundo o jornal, “acabar com a bandalheira de pagar ao encarregado dos serviços camarários um dia de trabalho por um copo de vinho na adega”[2].
Como Miguel França Martins nunca publicou qualquer livro, quase ninguém conhece os saborosos textos que derramou na imprensa, sem esquecer os dedicados ao teatro popular e versos para cortejos populares, igualmente inéditos[3]. Viria a falecer prematuramente em 20 de Agosto de 1959, contava então 59 anos de idade. Era casado com Noémia Clementina Figueira, também ela conservadora do Registo Civil no nosso concelho[4].
Tenho em meu poder um número significativo de textos que Miguel França Martins publicou no Jornal da Bairrada. É prosa bem esgalhada, com ritmo, capaz de prender o leitor logo nas primeiras linhas. Uma escrita viva, atraente, que recolhe usos e costumes de tempos idos, evoca figuras típicas da região e narra episódios com laivos picarescos, de inegável cunho popular. Peças importantes, a meu ver, para uma sociologia dos costumes bairradinos. Estes textos mereciam ser reunidos em livro, para prazer e conhecimento de todos. Duvidam? Deixo aqui só um cheirinho dessa prosa fluente e saborosa, coberta ainda com o pó do esquecimento. Foi publicada no Jornal da Bairrada de 28 de Novembro de 1953 e tem por título PÃO E VINHO ... PÃO E VINHO...
“Na doce esperança de que no outro Mundo a Morte é Vida – Vita Mutatur, non tollitur – ainda, há pouco tempo, na nossa região, se festejava a Morte como um simples acontecimento transitório da Vida, para uma outra vida melhor. Sim, ainda há muito poucos anos que foi abolida, nos funerais da nossa região, a patuscada nos enterros, com que, lautamente, se banqueteavam à custa do morto todos aqueles que acompanhavam o féretro ao cemitério. E, misturados com coroas, em cujas dedicatórias se liam, a letras doiradas, saudades eternas e últimos beijos, se conduziam à cabeça das mulheres, de luto, canastras de pão alvo da Ti Joana Padeira, que regalava os olhos e abria o apetite. Canastras de pão e almudes de vinho e, às vezes, até queijo amanteigado da serra a esbarrondar-se da casca, ante os olhos ávidos do acompanhamento, que seguia, no silêncio das grandes dores.
Estas iguarias eram conduzidas para um estabelecimento da vila e ali se estabelecia, então, o Festim Post Mortem que, às vezes, até acabava com pancadaria, muito principalmente se metesse queijo e se alguns dos assistentes o fossem distribuindo pelos bolsos.
Ficou tradicional a interpretação dos sons que provinham das torres que tinham três sinos. Quando falecia um remediado, só tocavam dois, cujo som se assemelhava ou era interpretado com a letra da seguinte frase: “Pão e vinho ... Pão e Vinho ...”. Mas quando falecia, na terra, um rico lavrador, entrava, então, a tocar, também, o terceiro sino. Com som mais cavo, mais doloroso e mais profundo, que mais longe levava o som lúgrube dos seus gemidos e a ementa da merenda, completava-se a frase: “E... queijo.... e... queijo...”.
A patuscada nas lojas desapareceu para dar lugar à abertura da porta da adega, em casa do morto.
Quando faleceu a mulher do nosso engraçado Manuel João, o vizinho Marcos Vela foi apresentar, ao seu amigo enlutado, os sentimentos da sua dor e o Manuel João, em vez de agradecer as condolências sinceras que o Marcos lhe apresentava, diz:
- Olha, ó Marcos, vai abrir a porta da adega, bebe e dá de beber a essa gente.
Esta atitude é já uma última reminiscência dos velhos e apagados costumes do “Pão e Vinho... Pão e Vinho... e Queijo...”.
Estes costumes desapareceram, mas o que não desaparece, nos corações das pessoas bem formadas, é que, realmente – Vita mutatur, non tollitur”.
[1] Correio de Cértima, n.º 3, 30.08.1930.
[2] Idem, n.º 6, 25.10.1930.
[3] Arsénio Mota, Figuras das Letras e Artes na Bairrada, Porto, Campo das Letras, 2001, pp. 93-94.
[4] Jornal da Bairrada, Ano IX, n.º 217, 29.08.1959.
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