sábado, 20 de março de 2010

Breve sopro anímico para um site moribundo. Achegas para a história da Palhaça: o toque dos sinos


Durante a Primeira República muitas polémicas foram ateadas por causa do toque dos sinos, mesmo em freguesias mais recônditas e nos lugares mais pacatos. O badalo era o constante pomo de discórdia entre católicos e não católicos.

Em tempos de eriçado anticlericalismo o toque dos sinos era considerado, por muitos, como a mais ruidosa das manifestações do culto externo. Outros, cujas vidas eram ritmadas por esse toque, teimavam em manter a tradição, já que na sabedoria popular a voz dos sinos era a voz de Deus. Havia mesmo quem acreditasse que afugentava os diabos e as trovoadas.

O curioso episódio que a seguir se relata passou-se na Palhaça e não deixou de ser aproveitado na campanha anti-religiosa que grassava um pouco por todo o lado.

No lugar de Vila Nova, quando foi conhecida a notícia da morte do Papa Pio X, o sacristão Joaquim Francisco Caniçais Júnior subiu à torre e começou a tocar os sinos, em sinal de sentimento. Como estava só, tinha de deixar um para tocar o outro. Isso obrigava-o a passar repetidas vezes por um buraco profundo, situado no centro da torre e que permitia o movimento dos pesos do relógio. Lá se foi equilibrando durante algum tempo, fazendo nos sinos uma “barulheira infrene”.

A certa altura, porém, foi colhido pelo bordo de um dos sinos que o atirou para o tal buraco, onde ficou como morto, de cabeça para baixo. Quando dali foi retirado apresentava uma profunda brecha na cabeça. O mais grave é que terá ficado privado das suas capacidades mentais. Ao comentar jocosamente esta notícia, o correspondente do jornal de Anadia Bairrada Livre acrescentava: “E assim teve a recompensa do seu piedoso acto! Ou o papa não era santo ou a ingratidão não é defeito exclusivo dos pobres mortais” (1)

(1) “Um desastre”, Bairrada Livre, n.º 195, 25.09.1914, p. 3. Ver também Nuno Rosmaninho, “O anticlericalismo na província: um ferreiro da Bairrada”, Actas do Colóquio O Anticlericalismo Português: História e Discurso, Aveiro, Universidade de Aveiro, 2002, pp. 307-326. Publicado também em Aqua Nativa, Anadia, n.º 21, Dezembro de 2001, pp. 27-38.

6 comentários:

Arsénio Mota disse...

Ainda «respira»? Óptimo. E oxalá que não morra! Portanto, viva o blogue vivo, jamais moribundo.
Sobre o tema do post, creio que os republicanos anticlericais reagiam vendo no toque dos sinos propaganda das igrejas, que assim se «anunciavam» ao povo. Lembre-se que ainda hoje há pessoas que se manifestam contra as badaladas sonoras dos relógios das torres, protestando contra a barulheira. Têm alguma razão, não têm?
Saudações cordiais.

Carlos Braga disse...

Amigo Arsénio:
Bem sei que existe um direito ao silêncio, ao sossego e ao repouso, e que tal até está consagrado constitucionalmente. Por isso mesmo é que alguns sinos são silenciados entre as 22 horas e as 7 da manhã.
Esta situação não é pacífica. É certo que se deve respeitar o direito ao silêncio dos outros; mas não é menos importante respeitar também as tradições e a cultura que herdámos dos nossos antepassados. Muitas vezes são os forasteiros que vêm residir para certas localidades os primeiros a insurgir-se contra o toque dos sinos. Será porque é gente mais esclarecida? A mim parece-me que quem vem de fora tem de fazer algum esforço para se adaptar e não agir ao arrepio das tradições de quem os acolhe. Integra-se melhor num meio quem é capaz de lhe aceitar as limitações.
Não podemos esquecer que muitas vidas foram ritmadas pelo toque dos sinos. Esse som pautou todo o viver quotidiano: anunciava à comunidade horas de júbilo (nascimentos) ou de consternação (mortes); era a voz da revolta quando tocava a rebate (para acudir aos agravos feitos à comunidade), ou a voz solidária que apelava à colaboração para combater um incêndio.
Sempre que houve confisco, proibição ou regulamentação dos sinos, houve sentimentos de perda muito profundos. O problema, durante a I República, é que até o toque dos sinos foi politizado. Quanto mais republicano se era mais o som massacrava os tímpanos de tais criaturas. Se tocavam para comemorar um aniversário do 5 de Outubro, eram sinos progressistas; se badalavam para a missa logo passavam a sinos reaccionários e, naturalmente, muito incómodos. Para os ouvidos mais sensíveis até o simples toque das trindades perturbava o descanso. Viria também a ser abolido durante a República.
Umas pitadas de bom senso nos que são a favor e contra o toque dos sinos ajudaria a sanar conflitos desagradáveis, como aconteceu há poucos anos no Silveiro e em Oliveira do Bairro, segundo creio.
E já agora: quem vive perto de aeroportos e linhas de comboio, como é? Será que não reclamam porque não há religião acantonada por detrás do barulho que têm que aguentar?...
Receba, caro amigo, o abraço apertado e o afecto confiado do
Carlos.

Anónimo disse...

Muitíssimo interessante, Carlos. Além da oportunidade (estamos a comemorar o centenário da implantação da república), a discussão em torno da ostentação de sinais exteriores de uma qualquer expressão religiosa está na ordem do dia. Ao laicismo ainda hoje bandeira em França, prefiro a convivênia de símbolos e crenças nos EUA. Se bem que nada disto seja simples... São problemas que serão, num futuro próximo, um sério desafio à maturidade democrática e ao verdadeiro laicismo das nossas sociedades.
E haverá mais histórias destas da 1ª República?
Abraço
Helena V.

Arsénio Mota disse...

Conversa interessante, sem dúvida. Como já esperava, comentando o post do amigo Carlos! É pessoa estimável e do maior apreço intelectual e humano. Logo, nada (havendo «tudo») a admirar!
Mas deixem-me dizer, pois é só a isto que venho, que escrevi o comentário ao correr das teclas, sem qualquer pretensão de equacionar tão a sério os sininhos. Por extenso, entendam-me: não quis tomar posição no assunto, para mim perfeitamente pacífico.
Abraço e votos renovados para que o blogue continue vivo!

Carlos Braga disse...

Amigo Arsénio:
Obrigado pelos 2 comentários. É sempre gratificante lê-lo, mesmo quando escreve apenas pela delicadeza da atenção que presta aos outros, para marcar presença, ou para nos dar um incentivo.

Amiga Lena.
Obrigado também pelo eco e pela reflexão sobre o post. Perguntas se há mais histórias destas na I República. Direi que os jornais da época estão enxameados delas. Para lá dos sinos, há conflitos por causa das procissões, dos funerais e enterramentos, das visitas pascais, das festas com carácter mais sagrado ou profano, do celibato dos padres, do arrolamento dos bens da igreja e outras coisas mais. Ando a recensear isso há uns tempos, na imprensa periódica da Bairrada. Se a saúde não me atraiçoar e o tempo disponível - cada vez mais escasso... - o permitir, espero dar conta dessas recolhas lá para Outubro, pela altura do centenário da República.

Abraço apertado para ambos.

Carlos Braga disse...
Este comentário foi removido pelo autor.