domingo, 26 de dezembro de 2010

PRENDAS DE NATAL PARA PALHAÇA CÍVICA (II)



DIA DE NATAL


Hoje é dia de ser bom.

É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,

de falar e de ouvir com mavioso tom,

de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.


É dia de pensar nos outros - coitadinhos - nos que padecem,

de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,

de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,

de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.


Comove tanta fraternidade universal.

É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,

como se de anjos fosse,

numa toada doce,

de violas e banjos,

entoa gravemente um hino ao Criador.

E mal se extinguem os clamores plangentes,

a voz do locutor

anuncia o melhor dos detergentes.


De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu

e as vozes crescem num fervor patético.

(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?

Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)


Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.

Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziantes.

Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas

e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distantes.


Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,

com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,

cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,

as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.


Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,

ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.

É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,

Como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.


A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.

Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.

E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento

e compra - louvado seja o Senhor! - o que nunca tinha pensado comprar.


Mas a maior felicidade é a da gente pequena.

Naquela véspera santa

a sua comoção é tanta, tanta, tanta,

que nem dorme serena.


Cada menino

abre um olhinho

na noite incerta

para ver se a aurora

já está desperta.

De manhãzinha

salta da cama,

corre à cozinha

mesmo em pijama.


Ah!!!!!!!!!!


Na branda macieza

da matutina luz

aguarda-o a surpresa

do Menino Jesus.


Jesus,

o doce Jesus,

o mesmo que nasceu na manjedoura,

veio pôr no sapinho

do Pedrinho

uma metralhadora.


Que alegria

reinou naquela casa em todo o santo dia!

O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,

fuzilava tudo com devastadoras rajadas

e obrigava as criada

a caírem no chão como se fossem mortas:

Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

Já está!

E fazia-as erguer para de novo matá-las.

E até mesmo a mamã e o sisudo papá

fingiam

que caíam

crivados de balas.


Dia de Confraternização Universal,

dia de Amor, de Paz, de Felicidade,

de Sonhos e Venturas.

É dia de Natal.

Paz na terra aos Homens de Boa Vontade.

Glória a Deus nas Alturas.



ANTÓNIO GEDEÃO


(Poesias Completas)



PRENDAS DE NATAL PARA PALHAÇA CÍVICA (I)

Apesar de moribundo, merece que nos lembremos dele uma vez por outra. No Natal ficamos menos empedernidos. Menos tresmalhados e mais disponíveis para voltar ao calor do redil. Mais comovidos com tudo o que nos rodeia. Mais humanos, portanto. Pena que seja apenas a horas certas, em dias assinalados no calendário. Apesar dos apelos, não somos capazes de viver o espírito de Natal todos os dias, tornar o amor mais íntimo e duradouro.


É assim que, animado por infâncias que se bifurcam na imaginação, resolvo deixar no sapatinho de Palhaça Cívica um conto de Natal publicado no já longínquo ano de 1986 no jornal Litoral, de Aveiro.


É a minha memória difusa da véspera de Natal no final dos anos 50, na Palhaça do século passado.



Era o lugar ameno, a fonte clara. O coradouro, ladeado de vergueiros e os tanques de água fresca. Eram os cômoros altos. Era o regato manso. E o pinhal mais acima, bordando o horizonte. O pinhal onde Tiago apanhava tufos de musgo, verde-claros, para o presépio.


Era isso que fazia todos os anos. Sempre no dia vinte e quatro. E logo pela manhã, indiferente aos rigores certos de Dezembro. A tarde era o tempo de que dispunha para fazer o presépio. Uma tarde especial que o fazia arder de impaciência, à espera da noite que a sua imaginação fértil povoava de segredos e mistérios.


Para merecer os favores do Pai Natal, Tiago recriava o presépio com todos os elementos, manjedoura e tudo, tal como aprendera na catequese. Às vezes faltava um rei mago, um pastor ou uma ovelha, partidos em traquinices cúmplices com outros meninos de riso largo. Devolvia-lhos a mãe, na feira que antecedia o Natal, para que na altura própria nada faltasse. Figuras toscas e ingénuas, um tanto garridas, a exalar aquele cheiro forte, característico, que se desprende das argilas bafejadas.


A noite, fria e espessa, reunia a família no ritual da ceia farta. Era o bacalhau tradicional, com couves e batatas. Era a broa quente, o vinho novo. Eram os figos, as nozes, rabanadas e castanhas no borralho. E a fogueira de labaredas altas, amornando os corpos, inundando tudo de luz e aconchego.


As conversas à mesa, arrastadas e suaves, não as entendia o Tiago. Mas nem por isso deixava de estar feliz. O presépio, obra inteiramente sua, lá estava, acabado a tempo e lindo de se ver. O que era preciso era manter-se acordado. Largando a mesa, irrequieto e agitado, apartou-se dos demais indo sentar-se ao canto da lareira. Para se distrair brincava com as agulhas dos pinheiros, construindo arcos e flechas a que logo chegava o lume. Ou então separava, com a tenaz, as castanhas da fogueira.


Lá fora um vento gélido e agreste soprava forte, acentuando a sonolência que se desprendia da lareira. Com o avançar das horas as vozes pareciam chegar até Tiago vindas de longe, distantes, sumidas e imperceptíveis. A dada altura deixou de as ouvir e adormeceu, adiando por mais um ano a conversa aprazada com o Pai Natal. Ainda não era meia-noite, hora a que começava a missa do galo.


Sem o saber, iria falar com ele a noite toda. Em sonhos e fantasias se realizou o desejo de Tiago, adiado com a experiência falhada da noite anterior. Bem pela manhã, ainda o relógio da torre não havia badalado as sete e já ele se levantava de um pulo, descendo dois a dois os degraus da escada de madeira que terminava junto à cozinha.



Ao entrar, puxaram-se-lhe os olhos para a lareira. Qualquer coisa cintilou dentro dele! Lá estavam, a transbordar dos sapatos pequenos, os brinquedos que em sonhos pedira ao Pai Natal. Esses e outros. Embrulhados no celofane garrido do contentamento. Atados com o laçarote seguro do amor verdadeiro, que Tiago julgava distribuído em iguais rações de afecto por todos os meninos do mundo.


Julgava. Hoje vai na casa dos trinta e sabe que não é assim. Já não vê as coisas com as lentes finas da fantasia. Usa as lentes mais grossas e mais inestéticas da maioridade. Com elas vê crianças de existência curta mas já viúva de alegrias. Meninos sem riso largo, que o não são na altura certa, colando o narizito às montras e os olhos magoados a ilusórias abundâncias. E sabe de homens sem ceia farta e sem ceia escassa, comendo em pratos de nada e de coisa nenhuma. Conhece outros que arrotam em hossanas de gozo caridade por todos os poros. Sempre a horas certas no ritual da hipocrisia anualmente renovada.


Sabe disso tudo. E às vezes apetece-lhe, numa raiva surda, dizer a todos os meninos que o Pai Natal não existe. Ou que existe só para alguns, fingindo os que sabem disso que ele existe para todos.


Apetece-lhe dizer mas não diz. Aprendeu até que talvez não exista nisso a mais leve ponta de hipocrisia. Gente que escreve para crianças afirma a pés juntos que fazer tal coisa seria brutalizá-las. Não se pode cortar o fio do sonho…


Talvez Miguel de Unamuno tenha mesmo razão quando diz que mentir por amor é que é falar verdade.


Era o lugar ameno, a fonte clara. Era o regato manso. Era.


Era o Pai Natal.


É!