É assim que, animado por infâncias que se bifurcam na imaginação, resolvo deixar no sapatinho de Palhaça Cívica um conto de Natal publicado no já longínquo ano de 1986 no jornal Litoral, de Aveiro.
É a minha memória difusa da véspera de Natal no final dos anos 50, na Palhaça do século passado.
Era o lugar ameno, a fonte clara. O coradouro, ladeado de vergueiros e os tanques de água fresca. Eram os cômoros altos. Era o regato manso. E o pinhal mais acima, bordando o horizonte. O pinhal onde Tiago apanhava tufos de musgo, verde-claros, para o presépio.
Era isso que fazia todos os anos. Sempre no dia vinte e quatro. E logo pela manhã, indiferente aos rigores certos de Dezembro. A tarde era o tempo de que dispunha para fazer o presépio. Uma tarde especial que o fazia arder de impaciência, à espera da noite que a sua imaginação fértil povoava de segredos e mistérios.
Para merecer os favores do Pai Natal, Tiago recriava o presépio com todos os elementos, manjedoura e tudo, tal como aprendera na catequese. Às vezes faltava um rei mago, um pastor ou uma ovelha, partidos em traquinices cúmplices com outros meninos de riso largo. Devolvia-lhos a mãe, na feira que antecedia o Natal, para que na altura própria nada faltasse. Figuras toscas e ingénuas, um tanto garridas, a exalar aquele cheiro forte, característico, que se desprende das argilas bafejadas.
A noite, fria e espessa, reunia a família no ritual da ceia farta. Era o bacalhau tradicional, com couves e batatas. Era a broa quente, o vinho novo. Eram os figos, as nozes, rabanadas e castanhas no borralho. E a fogueira de labaredas altas, amornando os corpos, inundando tudo de luz e aconchego.
As conversas à mesa, arrastadas e suaves, não as entendia o Tiago. Mas nem por isso deixava de estar feliz. O presépio, obra inteiramente sua, lá estava, acabado a tempo e lindo de se ver. O que era preciso era manter-se acordado. Largando a mesa, irrequieto e agitado, apartou-se dos demais indo sentar-se ao canto da lareira. Para se distrair brincava com as agulhas dos pinheiros, construindo arcos e flechas a que logo chegava o lume. Ou então separava, com a tenaz, as castanhas da fogueira.
Lá fora um vento gélido e agreste soprava forte, acentuando a sonolência que se desprendia da lareira. Com o avançar das horas as vozes pareciam chegar até Tiago vindas de longe, distantes, sumidas e imperceptíveis. A dada altura deixou de as ouvir e adormeceu, adiando por mais um ano a conversa aprazada com o Pai Natal. Ainda não era meia-noite, hora a que começava a missa do galo.
Sem o saber, iria falar com ele a noite toda. Em sonhos e fantasias se realizou o desejo de Tiago, adiado com a experiência falhada da noite anterior. Bem pela manhã, ainda o relógio da torre não havia badalado as sete e já ele se levantava de um pulo, descendo dois a dois os degraus da escada de madeira que terminava junto à cozinha.
Ao entrar, puxaram-se-lhe os olhos para a lareira. Qualquer coisa cintilou dentro dele! Lá estavam, a transbordar dos sapatos pequenos, os brinquedos que em sonhos pedira ao Pai Natal. Esses e outros. Embrulhados no celofane garrido do contentamento. Atados com o laçarote seguro do amor verdadeiro, que Tiago julgava distribuído em iguais rações de afecto por todos os meninos do mundo.
Julgava. Hoje vai na casa dos trinta e sabe que não é assim. Já não vê as coisas com as lentes finas da fantasia. Usa as lentes mais grossas e mais inestéticas da maioridade. Com elas vê crianças de existência curta mas já viúva de alegrias. Meninos sem riso largo, que o não são na altura certa, colando o narizito às montras e os olhos magoados a ilusórias abundâncias. E sabe de homens sem ceia farta e sem ceia escassa, comendo em pratos de nada e de coisa nenhuma. Conhece outros que arrotam em hossanas de gozo caridade por todos os poros. Sempre a horas certas no ritual da hipocrisia anualmente renovada.
Sabe disso tudo. E às vezes apetece-lhe, numa raiva surda, dizer a todos os meninos que o Pai Natal não existe. Ou que existe só para alguns, fingindo os que sabem disso que ele existe para todos.
Apetece-lhe dizer mas não diz. Aprendeu até que talvez não exista nisso a mais leve ponta de hipocrisia. Gente que escreve para crianças afirma a pés juntos que fazer tal coisa seria brutalizá-las. Não se pode cortar o fio do sonho…
Talvez Miguel de Unamuno tenha mesmo razão quando diz que mentir por amor é que é falar verdade.
Era o lugar ameno, a fonte clara. Era o regato manso. Era.
Era o Pai Natal.
É!
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