1. Li recentemente, pela lavra duma pena bustuense, um estimulante texto com propostas de agregação de freguesias para o nosso concelho (ver aqui). Entre outros méritos o autor ousa arriscar, assume uma posição, avança com cenários concretos. João Nuno Pedreiras (JNP) é notoriamente pedagógico quando alerta para a necessidade de evitar “exacerbadas paixões bairristas”, quando lembra que “as fronteiras estão nas nossas cabeças”, ou quando refere que “os termos agregado-agregador são inapropriados pois sugerem a superioridade de uma freguesia em relação às demais”. É certo que não subscrevo tudo o que pensa ou diz, da mesma forma que ele próprio ou outros não estarão de acordo com o que tenho escrito sobre este assunto. São discordâncias normais em democracia, até porque se sabe que mesmo no interior dos partidos políticos há opiniões contraditórias sobre a utilidade de executar esta “reforma”.
A minha dificuldade em aderir a esta reorganização do território assenta no facto de não acreditar que ela possa ter êxito sem uma verdadeira reforma dos municípios. E também por me parecer que é perfeitamente voluntarista, já que os critérios técnicos convocados para reduzir ou agregar freguesias são quantitativos, assentam em valores puramente aritméticos. São estes critérios como poderiam ser outros, o que por si só transforma esta lei numa reforma falhada. Além do mais, sou contra formas de pensamento territorial produzidas centralmente, de cima para baixo. Acredito no envolvimento ativo dos agentes económicos e da sociedade civil, na partilha de responsabilidades e na contratualização entre atores públicos, privados e associativos.
Por isso mesmo não avancei com nenhum cenário de agregação. Discordo de uma lei que prevê, sem qualquer imposição – ao contrário do que faz para as freguesias – a fusão de municípios (artigo 16.º, da Lei 22/2012). Como prémio de fusão é-lhes garantido um tratamento preferencial no acesso a linhas de crédito asseguradas pelo Estado, bem como a projetos de natureza diversa. Até o Fundo de Garantia Municipal é aumentado em 15% no município criado por fusão! Assim se premeia, na iniciativa dos outros, a “coragem” que o governo não teve para aplicar aos municípios a mesma receita coerciva que impõe às freguesias. É desta maneira que o governo se propõe tapar, com a altura moral que não tem, a pequenez da estatura que o vem caraterizando na condução deste processo. Como a vida nos ensina, é própria dos tíbios a subserviência para com os mais poderosos (neste caso os municípios) ao mesmo tempo que se lança mão da prepotência para com os mais frágeis (as freguesias).
Não é certamente por acaso que esta lei não é apadrinhada pela Associação Nacional dos Municípios Portugueses nem pela Associação Nacional de Freguesias. Por alguma razão as duas entidades não morrem de amores por esta reforma. Fazendo orelhas moucas a tudo isso e utilizando uma expressão em que os argumentos genuinamente democráticos são os que lá não estão, disse o ministro Miguel Relvas que “as freguesias ou caem a bem ou caem a mal”. Para as freguesias não há liberdade de escolha. Já sobre as Câmaras Municipais – a joia da coroa do seu partido - não derramou o ministro a mesma catilinária. Pudera! Como certeiramente escreve o historiador Rui Ramos, “extinguir câmaras municipais é a mesma coisa que extinguir distritais e concelhias de partidos”.
Discordo pois de JNP – esperando não deturpar o seu pensamento - sobretudo quando refere que esta “é uma realidade que temos que aceitar” ou quando diz que “a lei existe, é preciso refletir sobre a melhor forma de a aplicar”, acrescentando logo a seguir que “temos de aproveitar o problema que nos é colocado como gerador de novas oportunidades”. Parece-me uma posição demasiado conformista, não deixando espaço à contestação ou revisão de uma lei que ele próprio considera conter alguns aspetos negativos.
2. Embora ainda ninguém tenha provado que as freguesias de maior dimensão territorial e mais populosas estão mais aptas a prestar aos cidadãos os serviços de que estes efetivamente precisam, voltemos ao essencial, que são as sugestões de agregação que JNP esboça para o nosso concelho. Num primeiro momento e apoiado no princípio do equilíbrio, sugere a criação de uma freguesia “de dimensão considerável” no extremo poente do concelho, deixando de lado Oliveira do Bairro e Oiã que no seu entender “vivem bem com o seu tamanho”. E avança com três hipóteses: I) A união de Palhaça-Bustos-Mamarrosa (que deixa de fora o Troviscal); II) A união de Mamarrosa-Bustos-Troviscal (que deixa de fora a Palhaça); III) A união de Troviscal-Bustos-Palhaça (que deixa de fora a Mamarrosa).
Curioso é notar que nesta análise combinatória Bustos aparece sempre no meio das outras duas freguesia e assume perante elas uma efetiva centralidade. Nos cenários que nos são sugeridos Bustos é a única freguesia que nunca fica excluída. A proposta parece conter algumas fragilidades. Seguindo o raciocínio de JNP, estes arranjos convergem para a criação de uma freguesia de dimensão considerável, agregando freguesias pequenas para lhes dar escala. Mas se é assim, como se compreende que fique sempre uma freguesia de fora, com exceção de Bustos? A vingar qualquer destas propostas que destino estaria reservado à freguesia excluída? Seria agregada a Oiã ou a Oliveira do Bairro? Ou estaria condenada a definhar, a ficar isolada e sem hipótese de qualquer tipo de desenvolvimento? Para mim os resultados duma hipotética agregação devem assentar numa visão estratégica para o concelho que seja capaz de garantir a coesão territorial, situação que estas propostas parecem não contemplar ao não incluir na agregação uma das quatro freguesias mais pequenas do concelho.
É certo que JNP avança com um quarto cenário que tem o mérito de não excluir nenhuma das freguesias mais pequenas. Acrescento que caso a agregação se torne inevitável este é porventura o que mais colhe a minha simpatia. Teríamos assim a união de Bustos-Palhaça-Troviscal-Mamarrosa. JNP aponta para que a sede seja em Bustos, o que só lhe fica bem, ou não fosse ele membro da respetiva Assembleia de Freguesia. Não nego que os argumentos que invoca tenham uma poderosa lógica interna, sobretudo no que se refere à centralidade geográfica e, no caso dos equipamentos, à existência e influência do IPSB.
Há no entanto um outro cenário de agregação possível para as quatro freguesias mais pequenas e que também não deixa de fora nenhuma delas: seria a união da Palhaça com Bustos e a do Troviscal com a Mamarrosa. Desconheço as razões pelas quais JNP não aflora esta possibilidade, não acreditando sequer que tal omissão tenha a ver com a perda da centralidade de Bustos. Este cenário permitiria manter o concelho de Oliveira do Bairro com quatro freguesias e não apenas com três. Temo que um concelho com dimensão territorial tão diminuta (87 K2) e com apenas três ou mesmo quatro freguesias possa no futuro vir a ser extinto ou agregado a outro.
Convém ainda referir que para lá da centralidade geográfica há outros critérios a ter em conta, previstos na alínea b), artigo 8.º, da Lei 22/2012. São eles: um índice de desenvolvimento económico-social mais elevado; o maior número de habitantes e a maior concentração de equipamentos coletivos. Todos eles se devem assumir como critérios preferenciais para selecionar freguesias que funcionam como pólos de atração e por isso mesmo são indutoras do desenvolvimento de todas as outras. De todo o modo, o poder de regulação e de decisão duma eventual agregação de freguesias deve resultar de soluções organizacionais flexíveis e estar sintonizado com a aplicação do princípio da subsidiariedade entre diferentes entidades e serviços.
Diria que é na forma de determinar a localização da sede da junta de freguesia obtida por agregação que reside a questão mais polémica. Uma espécie de problema-tabú em que ninguém toca. As freguesias agregadas que ficarem sem Presidente de Junta verão os seus habitantes deslocar-se ao local onde passará a funcionar a sede da nova freguesia criada por agregação para obterem um simples atestado de residência. São coisas destas que os cidadãos não conseguem engolir de ânimo leve. Vão ser confrontados com uma solução que cava um fosso ainda maior com os anteriores serviços de proximidade que lhes eram prestados, diminuindo-lhes o grau de autonomia e de independência a que se foram habituando ao longo dos anos. De algum modo esta lei configura uma violação do princípio de autonomia das autarquias e degrada a qualidade de vida das populações. Veremos também se a par do desaparecimento de muitas freguesias, sobretudo as mais desertificadas do interior e com população mais envelhecida, não vamos assistir igualmente à extinção de serviços públicos como os CTT, a GNR, as Escolas ou as Extensões de Saúde, que serão sempre motivo de protesto e de descontentamento.
3. Evitar a guerra de todos contra todos
Não é pecado gostarmos da nossa terra. Nem falar com emoção do lugar onde nascemos, onde aprendemos as primeiras letras, onde fizemos a comunhão solene, onde nasceram e cresceram os nossos filhos, onde vivemos e tencionamos morrer. Ter uma aldeia é ter sido moldado por ela e proclamar para todo o sempre que a ela pertencemos.
Mas ao valorizar o que é nosso – como aconteceu nas sessões de esclarecimento promovidas pela Comissão Permanente da Assembleia Municipal - ao identificar o que nos carateriza e distingue dos demais, convém não chocalhar autoelogios desnecessários. É preciso evitar o excesso de devoção que pode conduzir à tentação de considerar as outras freguesias inferiores quando falamos da nossa. É um preconceito que não respeita os méritos alheios e tende a considerar como inferior aquilo que apenas é diferente. As nossas freguesias não podem evoluir apenas voltadas para si próprias, como se a porosidade das “fronteiras” não constituísse um apelo à convivência fraterna com os nossos vizinhos (longe vão os tempos, como acontecia no império romano, em que tudo o que estava para lá dos seus limites geográficos era considerado “bárbaro” ou hostil). Enriquecemo-nos quando respeitamos a diversidade. É a criar laços e a estabelecer ligação com as outras freguesias do concelho, ou a compreender e a integrar as suas preocupações e não apenas as nossas, que verdadeiramente crescemos.
Vivemos num tempo em que a regra é a coexistência num mesmo território de grupos étnicos e culturais distintos, onde se pratica a convivência e a fusão de culturas e não a sua segregação. O momento que atravessamos é pois de unir e não de dividir. Dividir para reinar é a divisa do poder, não a dos cidadãos. O pior que nos pode acontecer é que sob a capa da democracia e do direito à livre expressão e opinião se manipulem as pessoas atirando-as umas contra as outras ou arrumando-as entre “boas” e “más”. Em vez de causarem estranheza os espaços de vizinhança devem ser cada vez mais lugares de cooperação e enriquecimento e não de exclusão.
Não há grandes disparidades de povoamento, de economia e de sociedade, ou mesmo dos comportamentos e práticas culturais (crenças e valores) entre as freguesias do nosso concelho. O que faz um concelho não é tanto o espaço geográfico mas sobretudo o tempo e a história que o caraterizam. Assim sendo, o que verdadeiramente está em causa não pode ser a conversão de umas freguesias a outras, mas a concretização de sucessivas plataformas de entendimento em que todos caibam sem atropelos, abdicações ou exclusões. Temos que olhar para aquilo que nos liga e aproxima, evitando a apologia do “único”, do “só nosso”, elementos que usualmente salpicam a valoração constante do lugar matricial e são próprias duma visão paroquializada dos nossos interesses. A proposta de agregação de freguesias só pode traduzir-se na necessidade de maior compreensão da proximidade.
Eis por que tanto apreciei o texto de João Nuno Pedreiras, para lá de uma ou outra discordância pontual. Não quis deixar de o dizer, ao encerrar esta série de textos sobre a reorganização administrativa territorial autárquica.