Na
reunião de esclarecimento que teve lugar no Troviscal disse o Senhor Presidente
da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro ter a perceção de que “a lei é para
cumprir e tudo o que se possa dizer é retórica”. E para legitimar a sua opinião
acrescentou ter sido o próprio secretário de Estado a transmitir-lhe que “vai
cumprir o que foi negociado com a Troika”.[1]
Começo por discordar desta visão restritiva da democracia que se preocupa mais em
cultivar a obediência do que em exercitar a liberdade. Além disso, tais
palavras podem ser entendidas como uma forma de pressão sobre os órgãos do
próprio partido que o elegeu, de condicionamento do debate político e de
limitação do direito de opinião.
Felizmente que o secretário de Estado da
Administração Local, num tom bem mais prudente de estímulo à cidadania e à
participação, nos descansa um pouco quando contraria as palavras do Senhor
Presidente da Câmara. São dele estas afirmações: “O exercício da política
pressupõe anunciar, debater, ouvir, incorporar contributos e decidir”.[2]
Em democracia a forma de consolidar a legitimidade das decisões passa por
tornar público o conhecimento que se detém, evitando os truques, as manhas e os
ardis que tantas vezes caraterizam os segredos do poder. Então tudo o que se
possa dizer para lá do estrito cumprimento da lei é retórica, Senhor
Presidente? Foi isso que andou a fazer a comissão permanente da Assembleia
Municipal, a espalhar retórica pelas freguesias? É assim que classifica os
muitos contributos dos munícipes sobre a reforma da administração local?
Cumprir a lei e calar, sem debate, marginalizando a vontade dos cidadãos? É esta
a forma como entende o exercício do poder democrático?
Mais do que submeterem-se ao império da lei os
cidadãos exigem um estilo de política que os sirva e responda às suas
preocupações, necessidades e anseios. A melhor reforma autárquica possível será
aquela que assenta em motivos sociais e humanos e não exclusivamente em
argumentos ou estandartes políticos, o que implica ouvir as populações e não
apenas os aparelhos partidários. Os partidos não podem tender a usurpar o
exclusivo da intervenção e do poder social. A genuína integração de todos os
munícipes no espaço geográfico concelhio está associada não à imposição pura e
dura da lei mas à construção de consensos, os quais se ligam a fenómenos como
as tradições, os rituais e o próprio poder. Muitos desses costumes e tradições
encerram uma sabedoria e desempenham funções latentes, não expressas, que
escapam às evidências de senso comum. Não perscrutar este peso das tradições e
dos rituais em nome do acatamento cego da lei significa abdicar de entender as
coordenadas que assinalam a via da identidade das populações das freguesias do
nosso concelho. Não ter isso em conta é enveredar por um caminho armadilhado, é
não atender a estas palavras avisadas do legado intelectual de Edmund Burke: os
povos que não olham para trás, para os seus antepassados, não serão capazes de
olhar para a frente, para a posteridade.
A História ensina que se as leis fossem sempre
cumpridas nunca haveria motins, revoltas ou revoluções. Nunca teria sido
derrubada a Monarquia em Portugal e por isso não viveríamos hoje em República.
Não teria caído o Estado Novo e talvez hoje não andássemos a saborear a
liberdade. Com Locke aprendemos que quando as leis não são feitas para o bem do
povo se torna legítimo o direito de resistência. Vejamos então alguns exemplos concretos de
reclamações populares contra as medidas intervencionistas dos governos
centrais.
No tempo da Monarquia absoluta a interferência
régia na vida municipal por parte dos corregedores e juízes de fora gerou
resistências locais muito fortes. Já no constitucionalismo liberal monárquico,
quando a pena reformadora de Mouzinho da Silveira, ministro de D. Pedro IV,
produziu uma obra legislativa que é hoje considerada um importante marco
jurídico e institucional da primeira metade do século XIX, os protestos não se
fizeram esperar. Assim que foi publicado o célebre decreto n.º 23, de 16 de
maio de 1832, considerado centralizador e portanto anti-municipal, logo as
Câmaras fazem chegar às Cortes as suas exigências de alteração ou mesmo
revogação do diploma legal. E foi precisamente a força dos protestos e o fogo
cruzado das críticas que levaram a que o diploma viesse a sofrer uma alteração
significativa em abril de 1935.
Na década de 90 do século XIX a grave crise
financeira do país levou alguns políticos a equacionar uma nova vaga de
anexação de concelhos, iniciada em 1836 com a reforma administrativa de Passos
Manuel que extinguiu 475 dos 826 então existentes. O receio dos grupos de
pressão locais e de perturbações sociais mais que previsíveis acabou por fazer
gorar essa iniciativa. Embora não se exija que os nossos deputados e políticos
concelhios saibam história das instituições, é bom que se tenham em conta os
ensinamentos do passado. Os conflitos gerados pela reorganização do território
na primeira metade do século XIX são o resultado inevitável duma centralização
administrativa executada à revelia dos órgãos municipais, onde a imposição dos
magistrados prevaleceu sobre a produção dos consensos.
Mas não é preciso recuar tanto no tempo para
encontrar exemplos de resistência das populações a medidas que consideram
atentar contra os seus direitos. Basta não ter memória curta e recordar o que
se passou há cerca de vinte anos com a
tentativa de instalar unidades de incineração e aterros de resíduos tóxicos em
Portugal.
Não cabe aqui discutir a bondade dessas medidas.
Mas a propósito do cumprimento da lei, ou da imposição da vontade de quem
governa, convém lembrar que as estações de incineração são hoje de tal modo
contestadas e boicotadas pelos cidadãos que muitos países já não conseguem pôr
a funcionar mais nenhuma. E quem não se lembra da enorme contestação popular que
por essa altura varreu os concelhos de Oliveira do Bairro e Vagos? A tentativa
de instalar um aterro de resíduos industriais no Cardal/Azurveira colocou as
populações locais em pé de guerra com o ministério do Ambiente, deu lugar a
reuniões em Lisboa e Aveiro e à criação de um grupo dinamizador do processo,
alimentou revoltas e manifestações um pouco por todo o lado, gerou comunicados
dos partidos políticos na imprensa e contrarrespostas de cidadãos, além de
provocar fraturas entre militantes políticos de base e o poder central da mesma
cor política.
Poderá sempre argumentar-se que a Lei n.º
22/2012 foi aprovada por maioria. Mas convém recordar que o respeito pelos
direitos da minoria é também, ao lado do critério maioritário, um dos elementos
chave da essência da democracia contemporânea.
Uma assembleia popular encarregada de gerir os destinos da Grécia
decidiu por voto democrático condenar à morte o mais importante filósofo do seu
tempo. Condenar Sócrates a beber a cicuta foi uma decisão “democrática” se
tivermos em conta o conceito de democracia que vigorava quatro séculos antes de
Cristo. Mas não foi certamente uma decisão justa, humana ou pelo menos liberal
à luz do conceito de democracia do nosso tempo, por ser incompatível com o
ideal de cidadania universal herdado do Iluminismo. Foi uma decisão que se
mostrou incapaz de compreender o outro e preferiu anular as divergências com
ele, roubando a vida a um dos seus melhores cidadãos.
Neste momento ainda não sabemos se a dimensão das
resistências à Lei n.º 22/2012 é uniforme em todo o País. Mas não é difícil perceber
que a opinião geral dos munícipes de Oliveira do Bairro também é contrária à
lei. Já todos viram que não se trata de um instrumento jurídico objetivo e
rigoroso, no qual possam descortinar qualquer utilidade. Se a reorganização
administrativa vier a ser executada à margem do sentir das populações, as
labaredas do descontentamento podem irromper um pouco por todo o lado. A
prudência aconselha a que não se recuse o diálogo com todos os que se dispõem a
dialogar, pois a população do concelho não é propriamente um rebanho de
basbaques.
Cá estaremos para ver como se comportam nos
próximos capítulos desta novela os nossos políticos locais e concelhios. Veremos
se são políticos a sério ou pequenos agentes de campanário para quem a
fidelidade partidária se sobrepõe ao sentir das populações. Agora que tanto se
fala em agregar freguesias para “dar escala”, será que cada época tem os
políticos à escala que merece?...
O problema da reorganização do território deve
ser resolvido. Como deve ser
resolvido, eis a questão do momento. Quando a vontade popular se alicerça na
força da razão, cabe a quem legisla estar atento e saber dar a resposta
adequada, o mesmo é dizer melhorar uma lei que parece ter sido concebida à
medida e por encomenda. Ignorar isso é não perceber que as populações começam a
dar-se conta que não vencem todas as vezes que lutam, mas que seguramente
perdem todas as vezes que deixam de lutar. Daí ao sobressalto cívico vai um
passo muito curto.
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