sábado, 28 de julho de 2012

Reorganização Administrativa Territorial Autárquica - II (ou o muito que falta esclarecer...)



1. Quando se fala de extinção ou agregação de freguesias, com tudo o que isso implica de redução orçamental e de funcionários, é indisfarçável, à direita e à esquerda – mas sobretudo nos partidos do arco da governação - o mal-estar e uma evidente falta de consenso. É que esta reforma não deixará de ser acompanhada por uma recomposição do mapa político e por isso vai afetar todos os partidos. Cabe, pois, começar por perguntar: a quem interessa alterar a contabilidade político-partidária nas eleições locais? Por que é que nenhum governo, ao longo de mais de 150 anos, ousou reformar a administração local onde coexistem  municípios despovoados e freguesias maiores que municípios?

2. Convém, no debate em curso, não ter memória curta e relembrar algumas verdades elementares: o memorando de entendimento com a troika foi avalizado pelo PS, pelo PSD e pelo CDS. Mas dizer isto é apenas uma meia-verdade. É preciso acrescentar que a Lei n.º 22/2012 não foi votada favoravelmente pelo PS, PCP e Bloco de Esquerda e que uma das medidas acordadas com a troika foi a redução do número de municípios. Isto é: não apenas juntas de freguesia mas também câmaras municipais. Outra das medidas que constam do memorando aponta para a necessidade de reduzir em 15% os quadros dirigentes da administração local. Curioso foi ouvir na mesma altura o então secretário de estado da administração local – o socialista José Junqueiro – referir que seriam poucas as câmaras municipais extintas ou fundidas. Já nessa altura de governação socialista se apontava para a redução do número de executivos e assembleias de freguesia. Apontava-se para um número que rondava as 1500, praticamente um terço das existentes. E quanto á redução de dirigentes autárquicos logo sentenciou António Costa: “é um absurdo”. E Rui Rio afinou pelo mesmo diapasão: “ é uma imbecilidade técnica" (1).  Que dizer de tudo isto? Apenas uma coisa: que nenhum dos grandes partidos do arco da governação está vivamente interessado em reduzir executivos camarários.

3. Isto, apesar das evidências mostrarem que nos últimos anos a evolução dos recursos humanos das autarquias andou em contraciclo com a contenção nos serviços centrais do Estado. Enquanto estes, entre 2005 e 2009 (e a assimetria será, hoje, com toda a probabilidade ainda maior) reduziram em 8% o número de funcionários, o pessoal das câmaras aumentou 5,6% no mesmo período (2). Nada melhor, para iluminar esta questão, do que recuperar algumas ideias expressas pelo Eng.º Fernando Silva num lúcido e corajoso texto publicado há pouco mais de um ano no Jornal da Bairrada, a que deu o título Os Municípios e as Finanças do País. Entre outras verdades que ferem como punhais, afirma: “Para municípios com população entre 10.000 e 50.000 habitantes, os seus executivos camarários são compostos por 7 membros e as respetivas assembleias municipais terão em média cerca de 40 membros (...). Os membros dos executivos com pelouros atribuídos são remunerados e, após dois mandatos a tempo inteiro, têm assegurada uma reforma. O tempo de permanência em funções é também contado a dobrar para efeitos de reforma. Assim, ao fim de 37 anos de democracia temos várias dezenas de milhar de ex-autarcas com direito a reforma, e somas exorbitantes são gastas nos seus vencimentos”(3). A esta e a outras verdadeiras pedradas no charco dos interesses instalados ninguém ousou dizer nada. Apenas se lhe referiu, de raspão mas em tom concordante, o diretor do Jornal da Bairrada na edição de 19.05.2011. Tudo o resto ficou alagado em silêncio, que o caladinho é o melhor...

4. Relembre-se que o chamado “pacote autárquico” não se restringe apenas à controversa agregação de freguesias. Inclui também a legislação eleitoral autárquica e a da própria gestão municipal. A fazer fé no que vai sendo anunciado, o principal partido do governo terá já ultimado a sua proposta de lei eleitoral. Mas precisa de a negociar com o parceiro de coligação e em fase ulterior com o principal partido da oposição. Fala-se mesmo numa verdadeira revolução no poder local. No essencial essa proposta de lei contempla o seguinte: executivos homogéneos escolhidos pelo presidente da câmara – isto é: sem vereadores da oposição – como forma de se garantir a governabilidade; controlo político a cargo da assembleia municipal, que fica com poderes reforçados, entre os quais o de poder chumbar a lista de vereadores apresentada pelo presidente; os presidentes de junta (deputados municipais por inerência) não vão poder votar a composição do executivo municipal nem moções de censura aprovadas pela assembleia municipal; finalmente, a proposta de lei eleitoral aponta para uma forte redução no número de vereadores e de deputados municipais (4).

Que tem a dizer a isto a população do concelho? E os principais agentes políticos? Será que os presidentes de junta não se vão transformar em meras figuras decorativas se não puderem, pelo menos, votar em matérias que diretamente lhes dizem respeito, nos assuntos específicos da sua freguesia?  Concordam com a diminuição do número de vereadores e com as moções de censura autárquica, à semelhança do que acontece com o governo? Aprovam o reforço do poder das assembleias municipais e a constituição de executivos monocolores? Não serão estes incompatíveis com a filosofia do sistema proporcional que consagra a representação das minorias? Não funcionarão como uma espécie de maioria absoluta que tende a perpetuar os equilíbrios políticos atingidos? Com a proporcionalidade afetada, o que vai acontecer aos partidos com menor expressão eleitoral no concelho? É legítimo anular-se, assim de uma penada, a correspondência entre a percentagem de votos e a percentagem de deputados de cada partido? Subscrevem os cidadãos do concelho que o Presidente da Câmara possa escolher o seu executivo de entre todos os eleitos – incluindo os da oposição – e nessa medida possa igualmente destituí-los durante o mandato caso entenda – no que isso tem de subjetivo - não estarem a desempenhar bem o seu papel?

5 Regressemos à agregação de freguesias para perguntar: as que se situam no perímetro urbano devem acabar, transitando as respetivas competências para o município? E quanto aos concelhos: não seria de agregar alguns para lhes dar escala? Fará sentido continuar a existir um concelho como o de S. João da Madeira? E que dizer da limitação dos mandatos dos autarcas? Continua a fazer sentido, caso passem a ser controlados pelas moções de censura? E os autarcas condenados em processo: permanecem em funções ou devem ser pura e simplesmente demitidos e impedidos de se candidatar a novos mandatos? E por que não suspender o mandato, até à conclusão do processo, aos autarcas constituídos arguidos ou até acusados, substituindo-os pelo candidato posicionado imediatamente a seguir na lista vencedora? É que agregar freguesias deixando tudo o resto na mesma é um pouco o vira-o-disco-e-toca-o-mesmo de que já estamos a ficar cansados. Não é uma verdadeira reforma, mas sim uma caricatura distorcida dela própria. Tantas perguntas. Quantas respostas? Tudo isto ficou por dizer nas sessões de esclarecimento. Culpa da assembleia municipal? Não certamente. Culpa de todos nós, que parecemos distraídos e abstraídos do que se passa à nossa volta. O silêncio, que muitas vezes é uma forma de poder, pode ser também uma forma de consentimento.

6. Estas são algumas das questões urgentes e inadiáveis a que urge dar resposta. Não tanto por se encontrarem na ordem do dia, mas precisamente porque às vezes o não estão. Não se veja neste texto um libelo acusatório contra os partidos políticos, porque quem preza a democracia sabe que esta não existe sem eles. Nem uma rejeição liminar da reorganização administrativa territorial autárquica. Quando muito, assume-se contra “esta” reorganização. Acontece que se multiplicam os sinais de enfado para com a falta de qualidade da nossa democracia. Há sinais evidentes de descrédito e desconfiança. Por isso se exigem respostas claras e assertivas para problemas complexos.

Ninguém desconhece que nas estruturas partidárias a contestação interna é por vezes vista como uma forma de traição, sobretudo quando tornada pública. Como sublinhou o Eng.º Fernando Silva no texto já citado. Muitas vezes não há oposição interna “pois isso poderia ser razão suficiente para ser excluído das listas de candidatos (...). Poucos são aqueles que, na praça pública, realmente dizem o que lhes vai na alma e também não o fazem nos locais próprios por receio de retaliação sobre si, seus familiares ou empresas”. Elucidativo, por vir de quem vem, de quem sabe do que fala.

Também por isso se saúda, no debate que está a ser travado sobre a agregação de freguesias, a independência de espírito e até o desassombro de alguns conhecidos militantes políticos, nomeadamente dos mais próximos ideologicamente do atual governo. Em blogues ou até nas reuniões de esclarecimento sabem colocar os interesses da sua terra, ou das populações do concelho, acima dos particulares interesses do partido em que militam. Dizendo abertamente que a Lei n.º 22/2012 é má e foi gizada à revelia dos autarcas. Neles, há ponderação e respeito por direitos conflituantes. Batalham pela razão quando outros procuram excitar as emoções que transformam os cidadãos em súbditos. Para eles, um aceno de simpatia.

Voltarei ao tema, para (talvez) então concluir. Porque a pretexto da mudança o objetivo não pode ser abafar as vozes discordantes em nome do irrefragável cumprimento da lei. 

(1) Expresso, 07.05.2011, p. 4.
(2) Público, 08.05.2011, p. 3.
(3) Jornal da Bairrada, 05.05.2011, p. 2.
(4) Expresso, 21.07.2012.


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