1. Introdução
Em boa hora a Assembleia Municipal de Oliveira do Bairro tomou a iniciativa de promover sessões de esclarecimento nas seis freguesias do concelho. A iniciativa vale ouro e é digna de registo, se tivermos em conta o fosso cavado entre as elites políticas e o resto duma população que pouco cultiva o exercício da cidadania.
O que aconteceu no dia 20 de julho na Palhaça – e, segundo foi dito, em todas as outras freguesias – pode considerar-se uma verdadeira festa da democracia. Houve participação cívica, vontade de clarificar, debate intenso mas sem picardias ou ofensas gratuitas. Ninguém quis ter razão a qualquer preço. Mais do que convencer, houve disponibilidade aberta para cada um se deixar convencer e não para chamar o outro aos seus pontos de vista. É isto que um verdadeiro diálogo tem de integrador. É assim que se ganha a confiança das populações numa matéria tão controversa e escaldante como esta. Não há entendimento mínimo onde não há confiança. E a confiança é o que a má-fé mais pretende roubar-nos.
Gratificante para as gentes da Palhaça foi ouvir dizer que esta reunião foi a que teve mais cidadãos a intervir. E aquela onde mais jovens deram o seu testemunho. Também aqui houve festa da democracia. A sua qualidade só pode melhorar com a participação dos mais novos. A eles cabe não permitir que a democracia fique esvaziada na sua componente de participação e intervenção popular nos assuntos públicos. Melhor que ninguém, os mais novos começam a perceber não há vitórias sem luta nem luta sem empenhamento ou até algum sofrimento. Por isso não desarmam nem dão tréguas a quem governa, porque sabem que sem movimento não se gera a mudança.
2. O papel das freguesias
As freguesias sempre desempenharam em Portugal um papel de grande relevo. Ao prestarem às populações serviços público de proximidade tornaram-se de há muito uma referência incontornável do poder local. São um património dos portugueses e não uma coutada de qualquer governo.
É nas eleições autárquicas que encontramos uma maior proximidade entre eleitores e eleitos. Nas pequenas freguesias até conhecemos os candidatos e, em muitos casos, mantemos com eles relações de amizade, proximidade e vizinhança. Quanto mais se enquadram em território do interior, mais pequenas, periféricas e distantes ficam da sedo do poder concelhio, tanto mais as populações dessas freguesias precisam de recorrer ao presidente de junta. Falamos de pessoas que muitas vezes apresentam níveis de instrução elementar, sem grande mobilidade geográfica e com um estatuto socioeconómico muito baixo, portanto com alguma dificuldade de integração social.
São sobretudo as pessoas idosas, as mais marcadas pelo passado e as de origem social mais modesta – de algum modo excluídas do crescimento económico e de outras dimensões do desenvolvimento – quem mais recorre e valoriza o papel do presidente de junta. Reconhecem-lhe ainda hoje uma importância idêntica, em termos de estatuto social, à que tinha um padre ou um professor nas sociedades predominantemente rurais que persistiam no início do século passado. O presidente da junta é, nestes casos concretos, “pau para toda a obra”: desbloqueia situações embaraçosas, estabelece contactos, ajuda a preencher documentos, enfim, funciona como elo de ligação entre os anseios das populações e os serviços de proximidade, encurta distâncias entre os centros de poder e as periferias. Por todo este esforço e dedicação recebem esses presidentes de junta uma contrapartida monetária que muitas vezes não chega para a gasolina que gastam nas andanças a resolver os problemas dos outros.
3. Efeitos da aplicação da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio
Através desta lei e sob o pretexto da reforma do poder local o governo definiu uma estratégia que assenta na extinção de freguesias e mantem inalterados os concelhos. Fê-lo “de régua e esquadro”, com base em critérios meramente quantitativos, sem obter consensos prévios, mandando às malvas a opinião dos autarcas. Quer cortar o mais possível e no prazo mais curto. Invoca, entre outros argumentos, o da diminuição das despesas. Nada de mais falacioso. Basta referir que o peso da despesa das freguesias no orçamento do estado é de 0,098%. Quanto se vai poupar, ninguém sabe. Veremos no futuro se os custos operacionais deste novo modelo de gestão autárquica diminuem ou não. E o pior de tudo isto é que uma genuína descentralização do poder raramente é compaginável com o declarado propósito governamental de controlo e consolidação das finanças públicas.
Não são portanto os critérios economicistas ou de base financeira que presidem ao reordenamento territorial. São critérios técnicos e administrativos – e, por que não dizê-lo? – de base política e vincadamente ideológicos. Ideológicos, sim, porque numa pura lógica de mercado se tende a valorizar tudo o que é média ou grande concentração urbana, por ser aí que confluem os fatores estratégicos de competitividade e decisão, sejam eles públicos ou privados. Ao invés, tudo o que é pequeno e singular tende a ser esquecido, desprezado ou rasgado do mapa. E assim se rasuram as freguesias de menor dimensão, precisamente aquelas que valorizam mais o património comum e as identidades socioculturais, numa luta constante contra o rolo compressor dum falso “progresso” que tudo esmaga e nivela à sua passagem, uma espécie de camartelo impiedoso que reduz a cacos as singularidades e a carga subjetiva e simbólica que esses pequenos agregados populacionais transportam. E conviria não esquecer que algumas dessas pequenas comunidades que a lei agora descarta entroncam as suas raízes nos primórdios da nacionalidade. São espaços onde habita gente “estranha” para um certo provincianismo bem pensante que desvaloriza – quando não ridiculariza – quem gosta de preservar as suas tradições e a sua religiosidade, quem pauta, ou ainda o fez até há bem pouco tempo, os ritmos de trabalho e descanso pelos sinos da igreja, gente que nunca teve uns dias de férias e ainda confia na honra da palavra dada, sem precisar de passar os compromissos a papel e competente assinatura.
Enumera a Lei 22/2012, no artigo 2.º, alguns objetivos de reorganização administrativa, entre os quais se contam a coesão territorial, a melhoria e desenvolvimento dos serviços públicos de proximidade prestados pelas freguesias às populações e o alargamento das atribuições e competências das juntas de freguesia.
Como diz? Pode repetir? – apetece perguntar. Nenhuma destas miríficas vantagens foi confirmada por qualquer dos participantes no encontro da Palhaça (e, presume-se, nos encontros anteriores). Ninguém sabe que atribuições e competências vão ser cometidas às novas freguesias, para lá das que já existem. Como ninguém sabe dizer o que significam os 15% que vão beneficiar as freguesias criadas por agregação. Dará esse dinheiro para construir um fontanário? Talvez sim. Mas em que espaço físico da nova freguesia agregada vai ser construído?
Embora nos preocupe sobremaneira o que se passa no nosso concelho, a dimensão dos problemas que a aplicação desta lei coloca lei tem repercussões à escala nacional. Afeta as relações de poder e de prestação de serviços de proximidade em todo o território, com consequências ainda mais gravosas nas pequenas freguesias do interior e do mundo rural. Extingue freguesias nos territórios em vias de desertificação e onde as populações mais precisam delas e dos seus presidentes de junta. Ao proceder deste modo, deixa de salvaguardar os direitos e garantias de muitos cidadãos, especialmente dos que se encontram em situação de particular vulnerabilidade. Ao promover a desertificação, em resultado do desaparecimento de alguns serviços essenciais, está a contribuir para um dos muitos fatores de perturbação da sociedade portuguesa contemporânea: o excesso de litoralização, com todo o seu cortejo de desempregados e multiplicação dos riscos e ameaças à coesão social.
A redefinição do território sempre foi matéria delicada e geradora de conflitos. As resistências locais ao reordenamento territorial não são de hoje. Se não deixa de ser legítimo que uma sociedade, no seu processo de evolução, procure redefinir o seu território, já não parece legítimo que o faça retirando importância a um corpo político – as juntas de freguesia – que por tradição sempre funcionou, a par dos municípios, como contraponto do poder central.
Não cabe nestas linhas tentar mostrar as razões pelas quais a verdadeira reforma – a dos municípios – fica por fazer. Mas se as juntas de freguesia, como afirmou recentemente o diretor do Jornal da Bairrada, já dependem hoje “mais das transferências de verba das câmaras e do governo central do que da vontade própria do seu presidente e fregueses” então porquê toda esta obstinação em as enfraquecer ainda mais, ao ponto de acabar com muitas delas?
Num tempo de recursos políticos escassos a reorganização administrativa torna-se mais premente. Todos concordam que é preciso gastar menos, mas ninguém acaba com algumas empresas municipais de utilidade pública duvidosa e que se diz à boca cheia funcionarem como agências de emprego para os correligionários políticos que as promovem. Um estudo recente mostra que a grande maioria dos municípios portugueses não é sustentável. Falta-lhe escala para ter racionalidade económica. A solução apontada passa pela fusão de municípios. Então por que não se avança por aí? Malhas que o império (do poder municipal) tece...
Não é nas juntas de freguesia – pobres delas – que se multiplicam os cargos e as prebendas do costume. Não é nelas que se esbanjam dinheiros públicos em equipamentos desproporcionados e não raras vezes de gosto duvidoso. Também não é nas juntas de freguesia que encontramos alguns responsáveis políticos a contas com a justiça. E não foram os presidentes de junta mas um presidente de câmara com responsabilidades acrescidas, por ser também presidente da Associação Nacional de Municípios, quem há anos atrás incitou outros autarcas a correr à pedrada os fiscais do ministério do Ambiente.
4. Da pronúncia da Assembleia Municipal
Segundo a Lei n.º 22/2012 cabe à Assembleia Municipal decidir quais as freguesias a agregar. Se o não fizer essa tarefa fica cometida a uma designada Unidade Técnica que funciona junto da Assembleia da República. Não é fácil, há que reconhecer, encontrar critérios que apontem para uma solução justa.
Uma primeira questão que pode colocar-se reside em saber que solução serve melhor os interesses do concelho de Oliveira do Bairro: a pronúncia da Assembleia Municipal ou a da Unidade Técnica? No pressuposto de que só se gere bem aquilo que se conhece faz sentido que nos inclinemos para a Assembleia Municipal. Pensemos na Unidade Técnica a agregar, a partir de Lisboa, as freguesias de Bustos e Mamarrosa sem atender aos antecedentes históricos que determinaram a desanexação da primeira da freguesia-mãe em 1920. Bem sabemos que as relações entre as duas populações são cordiais e amistosas. Mas imaginemos essa agregação, ainda que por hipótese académica e que as instalações da futura junta de freguesia eram deslocalizadas de Bustos para a Mamarrosa. Não poderia tal decisão despertar alguns demónios porventura ainda adormecidos?
Mas pressionar a Assembleia Municipal a decidir exige que se pense previamente no seguinte: ao ser reconhecido, em todas as reuniões de esclarecimento, que estamos perante uma Lei de contornos muito discutíveis e ainda por cima cozinhada à revelia dos autarcas, ao assumir essa responsabilidade não está a Assembleia a legitimar uma Lei de que discorda frontalmente?
Não se duvida que na sua heterogeneidade a Assembleia Municipal trata todas as freguesia do concelho por igual. Obrigá-la a decidir as agregações é um pouco como obrigar um pai a decidir relativamente ao futuro dos seus filhos, sabendo de antemão que essa decisão vai certamente beneficiar uns e prejudicar os outros. Em suma, tal decisão – e decidir é desagradar - não deixa de configurar algum grau de violência. E perante isso apetece dizer: que fique com o odioso e arque com as responsabilidades e a ira das populações quem patrocinou estas medidas. Assim mesmo.
De nada vale elogiar o papel das freguesias e enaltecer as suas virtudes em prol do bem comum e ao mesmo tempo propor-lhes casamentos de conveniência de utilidade mais que duvidosa. Do que foi possível ouvir na reunião da Palhaça fica a ideia de que esta reforma dificilmente vai melhorar o serviço aos cidadãos ou a coesão das populações. Não é fácil assistir de ânimo leve à mais que provável extinção de freguesias que nos habituámos a ver recuperar, cuidar e manter vivas práticas culturais diferenciadoras. Com esta organização territorial muitas freguesias são discriminadas negativamente, ao verem desprezados o seu património material e imaterial.
Será ainda possível alterar ou revogar esta lei? Seja qual for a resposta, esperemos ao menos que o marketing político não prevaleça sobre a racionalidade das escolhas.
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