Foi ontem à tarde. Pouco depois, haveria de saber que o que fora o seu corpo jazia já sob a terra e que, para além dos familiares e das entidades públicas, o féretro tinha sido emoldurado apenas por um punhado de palhacenses. Fiquei triste. Pode ter sido, como justificava o meu interlocutor, por falta de informação, pode ter-se devido à precipitação das nuvens e dos acontecimentos, pode ter sido muita coisa.
Não se compreende. O Dr. Capão foi sem dúvida o mais ilustre dos palhacenses dos últimos decénios, ainda que nunca tenha sido suficientemente reconhecido como tal pelos seus conterrâneos. Guardava uma certa mágoa por isso. E não por presunção, estou convencido. Recentemente, numa das últimas visitas que lhe fiz, ele apontara o diploma pendurado na parede do escritório que testemunhava a distinção que a Academia Portuguesa de História (julgo que era esta a instituição) lhe concedera em 2011, ao atribuir-lhe o grau de Doutor Honoris Causa (estou certo que o facto é uma surpresa para alguns dos que eventualmente venham a ler este texto). Citou, a propósito, a célebre apóstrofe do Eclesiastes: «vaidade das vaidades, tudo é vaidade». Lembrei-lhe que os seus pares o haviam reconhecido. Repudiou o cumprimento. Claro que estava ciente do seu valor intelectual, mas mostrava-se um pouco desencantado com tudo. Acabara de lhe falecer a esposa, não ia para novo, sentia a ingratidão. Mas o que sobretudo lhe doía era não aproveitarem os seus dons. E, embora o tentasse animar com as minhas palavras, intimamente eu sentia que a mágoa se justificava e eu próprio lamentava a perda que isso constituía para todos e a injustiça irreparável que lhe fazíamos, nós os palhacenses.
Estava ali aquele tesouro cultural vivo (andara pelas Áfricas, fora professor no Magistério Primário, professor de Português, era um apaixonado de Camilo Castelo Branco, investigador de História com várias monografias nesse âmbito, quando o deixavam era um católico activo na sua paróquia, era coleccionador, e tantas outras coisas de que nem sequer cheguei a ter conhecimento…), estava ali, diante de mim, aquele homem de biografia riquíssima, e tudo o que recebia era a reverência distante dos simples e a indiferença daqueles que tinham o poder e o dever de o chamarem para o palco dos acontecimentos. E agora, por mais homenagens que lhe venham a fazer, nada reparará a injustiça da omissão. A morte nada conciliará neste particular.
Egoisticamente, nas visitas que
lhe fazia quando ia à terra, lamentava não poder frequentar mais assiduamente a
sua casa para beber do seu imenso saber, como lamentava a minha fraca memória que
me impedia de fixar as migalhas de ouro que oferecia nas nossas conversas. Para
mim, contudo, o Dr. Capão foi (e é!) muito mais que um insigne palhacense. Tinha
por ele uma grande estima como pessoa e cidadão e, quando penso na afabilidade
com que me recebia sempre, sei que me retribuía essa estima. A nossa relação
vinha do tempo em que fora meu professor de Português no Seminário Santa Joana
Princesa de Aveiro. Desse tempo recordo o amor pela língua portuguesa e pelos
autores portugueses, o rigor que punha em tudo o fazia, a seriedade que nos
exigia… e sobretudo o dia da entrega dos testes. Nesse dia, tínhamos um Dr.
Capão diferente: um homem que sofria com o falhanço dos seus alunos, quase como
um pai. Era-lhe tão penoso ver que um aluno não aprendera, por dificuldade ou
preguiça! Quando entrava com o semblante carregado, sabíamos que íamos assistir
no seu rosto a uma luta contra a mediocridade, na qual não se limitava a
responsabilizar o aluno, mas se metia ele próprio ao barulho, como se os erros
do aluno fossem os seus. Acreditava sempre que podíamos ir mais além e sofria
genuinamente se ficávamos pelo suficiente. Numa dessas situações, chegou a
acontecer ser o próprio aluno visado a tentar animá-lo, um condiscípulo nosso
com sentido de humor apurado. E o Dr. Capão sorriu. Com aquele sorriso grande
que lhe conheciam os mais próximos.
Foi um mestre. E foi como tal que
me referi a ele ainda há poucos dias em conversa, antes de saber desta triste
notícia, quando alguém me perguntava que professores me marcaram mais. Um
mestre com o qual nem sempre estive de acordo, claro, com as idiossincrasias
próprias de qualquer ser humano, mas alguém que respeitava muito. E
respeitava-o, antes de mais, pela sua humanidade e ternura, ternura que podia
passar despercebida por detrás do seu fácies grave. Lembro-me da sua
simplicidade, das conversas bem-humoradas que travava com os alunos no claustro
do seminário nos intervalos das aulas, nas quais quase se despia do papel de
professor e se tornava um rapaz connosco; lembro-me das pequenas confissões,
como a de que os amigos lhe reconheciam mais perícia nos versos livres do que
nos versos rimados, embora se sentisse mais à vontade com as rimas. Chegava a
ter esta candura e descontracção.
Não era um santo, mas era um santo que lhe orientava a vida: S. Francisco de Assis. Ainda numa das nossas últimas conversas referira o Cântico das Criaturas, mostrando uma reprodução do mesmo, «escrita em dialecto úmbrico, como no original». Esse amor pela vida simples que tinha S. Francisco como modelo, levou-o um dia a confessar-nos, a nós, alunos do seminário, que, se tivesse sido outra a sua vida (era pai de muitos filhos), teria sido franciscano. Reafirmou-mo posteriormente várias vezes. Esse amor pela simplicidade e pela natureza de resto acompanhou-o até ao fim, pois, ao que parece, nas exéquias, uma filha leu o poema que destinara ao dia da própria morte: aí, uma vez mais voltava a fazer referência à comunhão com a natureza, como o seu santo de eleição. E é assim que consigo suportar a sua morte com um sorriso sereno: o Dr. Capão despediu-se dos que o amavam humanamente, mas voltou a casa para se juntar aos seus irmãos Vento, Ar, Nuvens, Água, Terra. Regressou: vivo enquanto memória viva no espírito dos vivos, vivo na revolução constante da Matéria Viva.
Paulo Carvalho
1 comentário:
Meu caro Paulo: apreciei deveras o teu testemunho sentido sobre o Dr. Capão. Subscrevo tudo o que dizes, mormente quando aludes ao amor franciscano pela simplicidade (eu diria também o despojamento) e até pela natureza. E quando acrescentas que "voltou a casa para se juntar aos seus irmãos Vento, Ar, Nuvens, Água, Terra", isso remeteu-me logo para a filosofia da criação poética de Bachelard sobre o poder decisivo dos quatro elementos fundamentais da natureza - a água, a terra, o ar e o fogo - na orientação dos caminhos da sua realização artística. O teu texto precisa de "respirar" por mais algum tempo, merece ser apreciado devagar, como se de um bom vinho se tratasse. Só depois disso me atreverei a colocar também em Palhaça Cívica algumas singelas palavras de gratidão, com que tentarei honrar a memória de tão ilustre palhacense.
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