sábado, 27 de dezembro de 2014

- Ó PAI, A TERRA É REDONDA!

A ceia de Natal em família é uma tradição secular, que principiou nos Judeus para solenizar os dias festivos e chegou aos nossos dias para festejar o nascimento de Jesus. Mas, enquanto no tempo dos Judeus se comia a carne do Cordeiro Pascal com pão ázimo e legumes, no nosso tempo a imolação do cordeiro assado no forno foi substituída pelo bacalhau pescado nas costas da Noruega ou nos Bancos da Terra Nova.

Esta ceia sempre foi uma refeição mais substancial que o normal quotidiano nas aldeias da nossa região. Há sempre nela aquele prato tradicional e indispensável do bacalhau cozido, cujas postas são escolhidas e cortadas ao longo da espinha dorsal dum alentado garnisé e que, bem demolhadas, constituem a delícia dos apreciadores do fiel amigo que tão raramente aparece, agora, são e escorreito nas mercearias do nosso apagado burgo.

Nas cidades, nas vilas e nas aldeias, sempre se festejou o Natal, com a ceia da véspera, em que a família se reúne em volta de uma fogueira acolhedora. Mas ao passo que nas cidades e vilas andam as criadas a servir os seus patrões, engalanadas em punhos de renda e alva crista bordada, nas aldeias, uma enorme travessa redonda, farta e recheada, é posta sobre a mesa da cozinha, de onde pais e filhos comem espetando o garfo nos alimentos que se encontram na linha recta da sua posição à mesa, sendo-lhes absolutamente proibido invadir a área ocupada por outrém, para não tercejarem lanças em posição diagonal que poderia produzir um conflito familiar de graves consequências, aleivosas para a paz santa da família que se ama em liberdade e respeito.

Conta-se com uma certa graça que numa dessas ceias de Natal, em casa de um dos mais abastados proprietários ali do nosso vizinho lugar do Cercal, se passou a cena seguinte: depois de todos estarem sentados à mesa aguardando o apetitoso bacalhau, as claras batatas arran-banner, as tenras couves da horta, cortadas momentos antes, foi colocada entre todos, ainda fumegante, uma rica travessa de postas de bacalhau com alguns centímetros de lombo.

Em frente do chefe de família ficou uma posta que luzia pelo seu tamanho e apetecia pela sua altura, em lascas sobrepostas, como as folhas de um livro que a gente anseia por abrir, na avidez da sua leitura. O filho mais velho do casal, que cursara oito anos de liceu, não tirava os olhos daquele naco apetício e, antes que a mãe distribuísse por todos os garfos para a luta, diz o Abel, em tom de mestre-escola:

- Ó pai, a terra é redonda! E acompanha os seus conhecimentos de cosmografia agarrando nos bordos da travessa e dando-lhe uma volta demonstrativa da configuração e movimentos do planeta em que habitamos, levando para o seu lado e colocando na sua frente a posta de bacalhau que "era de gritos". Mas o pai, inteligente e rábula, embora menos versado que o filho nos estudos dos filósofos gregos que explicaram a forma e os movimentos da Terra, mas tendo compreendido até onde queria chegar a atitude do seu filho, responde-lhe:

- Deves ter razão, meu filho, a Terra é redonda, tanto anda como desanda! E leva para o seu lado, novamente, o naco de bacalhau que deslumbrava a assistência, ante a passividade inquieta dos outros filhos que aguardavam, ansiosos, o fim do debate metafísico! Tinham caído por terra as conclusões a que chegaram Anaxímenes e Pitágoras, pois o velho Roças tinha demonstrado ao filho que a Terra tanto anda como desanda, isto é, tanto anda para a frente como anda para trás!

E nós, em face dos tempos que vão correndo e no desejo de imprimir um caminho recto e seguro aos nossos ideais e uma unidade clara a todos os nossos actos, talvez acabemos por dar razão ao velho Roças, do Cercal.

(Texto de Miguel França Martins, publicado no Jornal da Bairrada, n.º 52, de 14.02.1953).

domingo, 2 de novembro de 2014

ARSÉNIO MOTA HOMENAGEADO NO MUSEU DO NEO-REALISMO

Arsénio Mota, escritor, poeta, cronista e ensaísta da cultura portuguesa contemporânea, natural de Bustos, concelho de Oliveira do Bairro, está a ser homenageado em Vila Franca de Xira. A iniciativa é do Museu do Neo-Realismo e consta de uma exposição, inaugurada no dia 1 de Novembro e que vai decorrer até Fevereiro de 2015.

Nas palavras de António Pedro Pita, director científico do Museu, esta iniciativa procura restituir, na sua circunstância epocal, o sentido do itinerário cultural e cívico do escritor.

A exposição é enriquecida com um catálogo profusamente ilustrado e com várias colaborações. É dele que extraio o texto da minha autoria, publicado nas páginas 21 a 26.







ARSÉNIO MOTA – UM OLHAR CULTURAL E REGIONAL SOBRE A BAIRRADA

Para lá dos variados caminhos de expressão escrita (poesia, conto, crónica, ensaio e sobretudo literatura infanto-juvenil), a trajectória de vida de Arsénio Mota (AM) inclui também os estudos e antologias que dedicou à Bairrada e as monografias sobre a vila de Bustos,  a terra onde nasceu e que nela se insere.

Nascido em 1930, terá escutado os derradeiros gemidos culturais da Plêiade Bairradina, fundada em 1918. Terá ouvido falar, na adolescência, de padre Acúrcio Correia da Silva, que as gentes locais veneravam e que desapareceu de forma prematura em 1926. O mesmo não se dirá de António de Cértima, que rumou a Lisboa nos anos vinte, atraído pelas sereias do cosmopolitismo, pelo que a Bairrada desse tempo deixou de falar nele.

Foi já ausente da sua Bairrada que AM sentiu mais profundamente o apelo das raízes e o reavivar de algumas evocações e memórias ainda não delidas pelo tempo. Era preciso que alguém voltasse a reabilitar o espírito da Plêiade e a empunhar a bandeira cultural que esta desfraldara ao vento nos seus tempos áureos. O escritor bairradino viria a assumir, por sua conta e risco, esta ingente tarefa.

É desse incansável labor que se dá aqui testemunho. Esforços que passam pelo recuperar da visibilidade dos seus principais mentores – padre Acúrcio e António de Cértima – mas também de nomes mergulhados num esquecimento imerecido, como os poetas populares Manuel Alves, José Francisco Moreira e António Barata, o pintor Fausto Sampaio, o arquitecto Cipriano Maia, Feliciano Soares e França Martins, entre outros; pelos contributos que deu, sistematizando os já existentes, para a definição e delimitação da região da Bairrada; finalmente, pela insistência na importância duma análise regional capaz de libertar a região da imagem distorcida que dela temos, por simples associação redutora ao leitão assado e ao vinho maduro.

AM sempre intuiu que divulgar e promover a Bairrada requer o conhecimento prévio dos seus traços distintivos. Isso o fez procurar respostas para interrogações do tipo: como se define a nossa região em termos geográficos e culturais? Que trabalhos revelam e exaltam o espaço bairradino? Existirá, na Bairrada, um conjunto assinalável de obras que configure uma corrente literária regionalista? Tem a Bairrada aspectos paisagísticos, tipos humanos e linguísticos distintos dos de outras regiões portuguesas? Se tem, em que obras estão presentes? Até que ponto a psicologia do bairradino é moldada pela ambiência dos campos de milho e vinhedos, e pela corografia de horizontes, aqui e ali tapada pela mancha dos pinhais? A fala do bairradino é circunscrita a este espaço geográfico ou é comum à fala dos habitantes de outras regiões do país?

O escritor não foge a discutir estas questões e a dar-nos frontalmente o seu ponto de vista. Fá-lo em nome da defesa, valorização e divulgação de uma memória local e regional. O pontapé de saída acontece em 1987, na crónica “Bairrada sem Literatura”, publicada no Jornal de Notícias. Queria provar – e conseguiu – que a região tinha uma literatura que a exprimia, e que a Bairrada estava dentro da literatura. Em 1989, na Câmara de Anadia, participa no relançamento do livro «Versos do Campo», do poeta popular José Francisco Moreira. Nessa apresentação já falava «do desamor que vem condenando sistematicamente a cultura bairradina às urtigas».[1]

É também em 1989 que explica, com entusiasmo, como encontrou o Hino da Bairrada, logo vendo nele «outro elemento para desencantar a região adormecida». E acrescenta: «Eu gostava de ver esta música, com o poema, a correr na Bairrada de boca em boca».[2] Recordo, também, a alegria que sentiu quando finalmente conseguiu ter em mãos um livro de poesia que não aparecia em lado nenhum, as Seroadas Fulvas, de padre Acúrcio Correia da Silva.[3]

A ele se deve a organização dos três primeiros encontros de escritores e jornalistas da Bairrada, no quais via “a expressão mais flagrante de um movimento cultural-literário que pretendeu, e pretende, ir até às fronteiras da identidade regional”.[4] Entre as múltiplas iniciativas e propostas,  contam-se a organização de encontros e colóquios, a promoção de cursos de jornalismo, o apoio à edição de publicações, a instituição de prémios, a promoção de viagens de estudo, a aquisição da casa onde viveu Manuel Rodrigues Lapa, ou mesmo o reconhecimento do inegável interesse da imprensa regional como valor documental insubstituível.

A proposta para comemorar, em 1994, o centenário do nascimento de António de Cértima, avultava entre as restantes: pela figura do homenageado, pelas personalidades e entidades envolvidas, pelas iniciativas a empreender e por ter decorrido durante um período de tempo pouco habitual, praticamente seis meses. Para lá de organizar e ser o principal impulsionador das comemorações, AM profere a conferência “António de Cértima, a Bairrada e a Crítica” e realiza (com ideia e guião) o vídeo “António de Cértima” sobre a vida e obra deste escritor e diplomata bairradino.

Ao fundar, em 1990, a AJEB – Associação de Jornalistas e Escritores da Bairrada - a cuja direção presidiu durante quatro mandatos, a região adquire um dinamismo cultural e fervilha de entusiasmo como há muito não se via. Convocam-se reuniões, sucedem-se encontros, editam-se livros e antologias, cria-se o suplemento literário Terra Verde, instituem-se prémios literários e homenageiam-se escritores. Todas as iniciativas têm a participação activa e a marca inconfundível de AM. Para lá disso, organiza Letras Bairrradinas (1990), uma antologia de poetas e prosadores que cantaram ou deram testemunho da região; publica Estudos Regionais sobre a Bairrada (1993), o estudo biográfico António de Cértima – Vida, Obra e Inéditos (1994), organiza o livro António de Cértima - Colectânea de estudos no centenário do seu nascimento (1995) e publica ainda Pela Bairrada (1998) e Figuras das Letras e Artes na Bairrada (2001).


Num tempo de esbatimento acelerado das identidades, de choque cada vez mais agudo entre o velho e o novo, entre o passado e o futuro, entre tradição e inovação, ninguém como AM lançou sobre a Bairrada o olhar regional com que sempre a quis ver. Ninguém como ele mostrou um pensamento tão articulado e consistente, procurando isolar o que se encontra em crescente processo de integração ou diferenciar o que está submetido a processos de homogeneização. Acreditava que só uma vigorosa intervenção cultural de matriz regional seria capaz de travar o rolo compressor da massificação acelerada, que tudo esmaga à sua passagem. Por isso encetou uma luta sem tréguas contra as formulações localistas redutoras, contra os que “insistem em reduzir a região à escala mesquinha das suas terreolas”.[5]

Estimular a reivindicação regional significa “ver” e planificar para lá dos interesses e da vontade das elites locais, não reduzir a história e a geografia desses lugares ao folclorismo pitoresco, ou ao eruditismo balofo, conferindo importância acrescida a entidades com competência cultural específica, às maneiras de sentir, pensar e agir das populações em estudos integradores ou de síntese – sobre um determinado espaço enquanto condensação de múltiplas manifestações sociais – que nos devolvam, com nitidez, a coesão e a coerência interna de uma dada região. Só dessa forma nos será revelada uma região com contornos específicos e não reprodutíveis em qualquer outro espaço geográfico.

Entende também AM que a aspiração à universalidade se tem mostrado inimiga da análise regional: ao esquecer que todo o universal tem o seu chão, ela tende a remeter os estudos regionais para um lugar subalterno no quadro mais geral da cultura, sem se dar conta que a genuína universalidade não dispensa as marcas de tempo e de lugar. Uma obra que é digna desse nome “não dilui na vaguidade de intenção universalista as suas marcas de origem”, na exacta medida em que no universo da cultura estão presentes, necessariamente, “todas as culturas nacionais, regionais e locais existentes, cada uma delas imbuída da sua própria especificidade, isto é, com os respectivos traços de originalidade inconfundível e vazada numa peculiar expressão linguística”. [6]

Foram estes, em breve síntese, os inestimáveis contributos de AM para os estudos regionais sobre a Bairrada, pela qual nutre um acrisolado amor e à qual dedicaria ainda, em 2008, já depois de sair de cena, o surpreendente e enternecedor Leitão Ciclista em Busca do  Paraíso, talvez o fecho desta sua aventura regional. Fábula sobre uma região com uns tantos centros mas sem cento nenhum, por se obstinar em não querer perder nenhum deles. A obra, na qual podemos entrever vestígios biográficos de quem sente saudade e vai da cidade à terra natal, mas logo se desencanta por ver tudo mudado, é mais um hino e uma ode à Bairrada, pois o leitão e as bicicletas são nela reconhecíveis traços identitários.

Cansado de “pesos mortos” e de “rivalidades mesquinhas”, AM acabaria por sair de cena em finais de 2002. Com estrondo. Abandonou a Associação de que foi o primeiro fundador, um dedicado presidente e o principal dinamizador.

E daí para cá - vá lá saber-se porquê – a Bairrada mergulhou de novo numa apagada e vil tristeza cultural. É outra vez, a esse nível, uma seca, fera e estéril região.
                                                                                                                                           









[1] Jornal da Bairrada, nº. 985, 21.07.1989, p. 24.
[2] Arsénio Mota, «Do Buçaco ao Vouga», Jornal da Bairrada, nº. 986, 28.07.1989.
[3] Idem, “Enfim, Seroadas Fulvas”,  Terra Verde, n.º 16, 07.08.1992, Suplemento mensal do Jornal da Bairrada.
[4] Idem, Encontros de Escritores e Jornalistas da Bairrada – Comunicações. Edição da AJEB, Abril de 1991, p. 7.
[5] Idem, “Para além das aparências”, Jornal da Bairrada (Suplemento Terra Verde, n.º 11, 07.03.1992). Texto incluído em Arsénio Mota, Pela Bairrada, Edição da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, 1998, p. 39.
[6] Idem, Estudos Regionais sobre a Bairrada, Editora Figueirinhas, Porto/Lisboa, 1993, p. 16.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

AGENDA DE UMA VILA EM FESTA

A partir de hoje e até ao próximo dia 20 de agosto, a vila da Palhaça entre em modo festa. Um programa que este ano combina, de forma muito especial, as comemorações do 50º aniversário da Sagração da Igreja Matriz e a já tradicional festa em Honra do Mártir S. Sebastião e Nossa Senhora da Memória.
14 a 20 de agosto // 2014 
14 | quinta-feira
21h00 Estrada de Luz - procissão das velas (Igreja de Vila Nova - Praça de S. Pedro - Igreja Matriz)
22h15 Momento Comemorativo 14.08.14  
15 | sexta-feira

10h30 Eucaristia  - 50º Aniversário da Sagração da Igreja Matriz
15h00 - 19h00 Igreja de Portas Abertas (exposição no interior e exterior da Igreja Matriz)

16 | sábado

09h00 Arruada pelas ruas da freguesia
22h00 Atuação do Grupo Musical Trovão

17 | domingo

11h00 Missa Solene na Igreja Matriz
17h00 Terço, seguido de procissão solene (Igreja Matriz - Praça de S. Pedro - Rotunda do Areeiro - Igreja Matriz) acompanhada pela Mini Banda da Taipa e Fanfarra de Lourosa
21h00 Atuação do grupo de cantares "Raízes da Nossa Terra" - ADREP
23h00 Atuação do grupo GJ Show

18 | segunda-feira

16h00 Tarde desportiva com jogos tradicionais
22h00 Atuação do grupo Fax

19 | terça-feira

22h00 Atuação do grupo TV5

20 | quarta-feira

Atuação do grupo Ondas

*informações retiradas do folheto de divulgação 2014 PALHAÇA - Festa em Honra do Mártir S. Sebastião e Nossa Sr.ª da Memória e do site www.juntoserguemossonhos.com


segunda-feira, 11 de agosto de 2014

JUNTOS ERGUEMOS SONHOS…E IGREJAS

A paróquia da Palhaça comemora no próximo dia 15 de agosto meio século da sagração da sua igreja matriz. Para assinalar este meio século foi constituído um grupo de trabalho em torno do projeto “Alegria – juntos erguemos sonhos” para elaborar um programa que fizesse jus e recordasse de forma simples mas inovadora a tenacidade da geração de Palhacenses que ousou sonhar a nova igreja, sublinhando desse exemplo o testemunho de coragem nos 7 anos decorridos até à sua concretização e a alegria aquando da sua inauguração. 

Do programa destas comemorações fazem ainda parte as ações: "Tocam os Sinos" - evocação que, diariamente às 16h00, durante os 50 dias que antecedem o aniversário, recorda o momento de júbilo de agosto de 1964; a exposição “Igreja de Portas Abertas”, 15 de agosto a partir das 15.00h – uma mostra de fotografias e documentos apresentados nesta ocasião pela primeira vez. 

Do programa destaca-se, na noite de 14 de agosto, o momento 14.08.14, marcado para as 22h00, no adro da igreja paroquial, onde vai desaguar a “Estrada de Luz - procissão das velas”. Segundo o Padre João Gonçalves, administrador paroquial: “esta é, sem dúvida, uma ocasião especial para relembrar, de forma inédita a história e os protagonistas que tornaram possível a construção da igreja matriz há meio século, um momento que gostávamos que fizesse perdurar esta história e este aniversário na memória de todos os Palhacenses, sobretudo das novas gerações, para os próximos 50 anos”.

+ info |  http://www.juntoserguemossonhos.com ou na página do facebook. 


domingo, 6 de abril de 2014

Nos 500 anos da Carta de Foral de Oliveira do Bairro (impressões de leitura)


O dia 6 de Abril de 2014 assinala os 500 anos da Carta de Foral de Oliveira do Bairro, cuja interpretação pertence ao ilustre bairradino António Tavares Simões Capão, um particular interessado no conhecimento da História Local e um homem preocupado com a fixação da memória num tempo em que se caminha para a desmemoriação total. A capacidade para descodificar a linguagem e a estrutura dos textos da carta de foral não está ao alcance de qualquer um. Interpretar fontes documentais ajustadas a uma realidade local tão distinta da actual exige grande perícia e conhecimento. É tudo isto – e isto não é tudo – que lhe devemos.

Para se perceber a importância dos forais atente-se ao que refere Marcelo Caetano: “Não basta num Estado a existência do governo supremo com seus órgãos centrais: é necessário que as decisões desse governo possam ser conhecidas e impostas em todas as partes do território e que as necessidades peculiares de cada localidade sejam atendidas e possam chegar ao conhecimento dos governantes”.[1] Dito de outro modo: não bastava legislar. Para realizar a justiça, que era uma das obrigações, se não a principal, de um rei do passado, era necessário que a legislação fosse conhecida de todos e por todos usada correctamente.[2]

Hoje, qualquer cidadão conhece a área geográfica onde reside, identifica a pertença a uma freguesia que está inserida num concelho, o qual, por sua vez, se integra num distrito. Pois bem, na Idade Média esse enquadramento era bem mais difuso: além de não existirem distritos, a realidade medieval projectava-se para lá dos concelhos, devendo atender-se também às “dinâmicas sectoriais que de perto conviviam com as autoridades municipais e se plasmavam no texto dos próprios forais, na medida em que consubstanciavam relações de difícil concorrência e que precisavam de memória escrita para as clarificar e fixar no horizonte social do grupo comunitário a que diziam respeito [...]. É pois de crer que o homem medieval teria dificuldade em conseguir representar mentalmente a geografia do território em que estava integrado”.[3]

A estes obstáculos deve somar-se a diversidade e a complexidade de cada território em particular, acentuada pela sobreposição de distintas esferas de actuação, que vão desde o poder real, ao local, passando pelo senhorial. Várias áreas geográficas estavam sob a jurisdição de um núcleo de senhores que partilhavam com a coroa alguns atributos do poder público. Daí a preocupação crescente dos monarcas em restringir os poderes senhoriais - assentes em títulos e na propriedade fundiária - o que não se fazia sem conflitos.

Os poderes senhoriais representavam uma significativa perda de receitas para a coroa. A intervenção régia nos concelhos era bem mais fácil, assumida por oficiais (corregedores ou juízes de fora) que asseguravam localmente a tutela do monarca. Assim se compreende que um dos primeiros objectivos da reforma manuelina consistiu em tentar clarificar as diferentes esferas do poder local.

Também nestas matérias os forais se assumem como fontes de direito indispensáveis para ajudar a perceber como é que estas dinâmicas se articulavam no terreno.[4] Eram frequentes as animosidades, conflitos e resistências das comunidades locais perante os abusos dos poderes senhoriais – clero e nobreza - mais presentes a nível local. A gestão do equilíbrio entre os diferentes poderes era difícil.

As mais antigas cartas de foral tinham como principal objectivo o povoamento do território, assumindo-se como contratos agrários que estão na base da formação de núcleos populacionais autónomos. Fazia-se um apelo a quem quisesse fixar-se em determinada localidade, bastando-lhe acatar as disposições contidas no diploma. Era comum, ao conceder-se foral a uma localidade, adoptar o modelo de outro anterior. Reproduzindo-o integralmente ou com ligeiras alterações. O concelho brindado com a outorga do foral via-se livre do controlo feudal. O poder mudava de sede e passava para um concelho de vizinhos. A população ficava a depender directamente da Coroa.

A temática foraleira está assim associada ao estudo dos municípios portugueses e ao próprio poder local. Interessa às actuais Câmaras Municipais, herdeiras da tradição concelhia medieval, uma vez que os forais espelham os poderes régios, senhoriais e municipais de uma determinada área territorial específica. Em termos gerais os forais preceituavam o seguinte: liberdades e garantias de pessoas e bens dos povoadores; impostos e tributos; multas resultantes de delitos e contravenções; imunidades e serviço militar; encargos e privilégios, ou aproveitamento de terrenos comuns. Muitas outras matérias, nomeadamente de direito privado – e que por isso ocupavam um plano muito secundário nas cartas de foral – continuavam a ser reguladas pelo costume.

No século XV os forais antigos eram motivo de controvérsia. Estavam redigidos em latim bárbaro e por isso afastados do conhecimento da maioria duma população vergada ao peso da terra e manietada pelo flagelo do analfabetismo. É sabido, também, que a Idade Média fabrica sem má consciência – sobretudo nos seus primórdios -  falsos diplomas, falsas cartas e falsos textos canónicos. O facto de muitas cartas se encontrarem delidas pelo tempo ou até, nalguns casos, o seu carácter opressivo, levaram os procuradores dos concelhos a pedir a sua reforma. Eram frequentes os abusos dos donatários. A interpretação dos documentos servia apenas o interesse de alguns. Atente-se só neste exemplo: os nobres chegavam com a sua comitiva a uma qualquer localidade e, fazendo uso do direito de aposentadoria, instalavam-se, assentavam arraiais e exigiam alimentação e outras comodidades. Finalmente, há que dizer que havia também conflitos que resultavam da assinalada disparidade entre regiões relativamente aos pesos e medidas.[5]

A reforma viria a acontecer no reinado de D. Manuel I (1495-1521). Não para fortalecer a autonomia dos municípios mas essencialmente para registar encargos e isenções locais, já que o poder real estava cada vez mais empenhado em estender as disposições legislativas gerais a todo o território. À medida que essas lei gerais iam sendo implantadas, assiste-se ao “enfraquecimento do poder estabelecido nos forais e daqueles que nele se pretendiam firmar”.[6]

 Os forais novos são apenas uma das várias emanações das diferentes reformas manuelinas. Eram precedidos de inquirições feitas aos “homens livres” e concedidos aos representantes dos lugares. Estabeleciam as regras a seguir pelos habitantes entre si e em relação à entidade outorgante. A sua análise devolve-nos um retrato da sociedade quinhentista, particularmente no campo do direito e da economia. Eram concedidos pelo rei ou por um senhor laico ou eclesiástico, dependendo a outorga de quem detinha o poder fundiário. Estes forais novos consagram um vasto conjunto de direitos a pagar ao rei, a par de obrigações para com outras esferas de poder. Estamos a falar de uma sociedade em que o privilégio se sobrepunha à lei geral.

 A preocupação dominante em “certificar a natureza e o quantitativo dos direitos reais” ajuda a explicar a razão pela qual estes novos diplomas mantêm intocados os órgãos concelhios e as suas atribuições.[7] Convém referir que a reforma manuelina dos forais é encetada em simultâneo com a reforma das Ordenações: “Muitas das disposições relativas à justiça, assim como as de âmbito económico, estavam já consagradas nas leis gerais do reino”.[8] É o que acontece com o direito de portagem, um direito real inscrito nas Ordenações Manuelinas que passa a ser cobrado de maneira tendencialmente uniforme nas diferentes terras.


Para a coroa o municipalismo representava uma importante fonte de receitas e até de recursos económicos e militares que podia fornecer ao país, ajudando a fortalecer o poder real. Ao longo do século XVI esse fortalecimento acentuava o declínio das instituições concelhias. Paralelamente, a importância dos forais também diminui, quando se transformam em “meros registos de tributos dos municípios”.[9] Esta reforma promovida pelos forais novos foi tudo menos pacífica: eram frequentes as reclamações dos concelhos e dos senhorios, a quem não agradava a versão final dos documentos que lhes chegavam às mãos.

Feito este enquadramento, vejamos então aquilo que o foral de Oliveira do Bairro nos dá a conhecer de mais relevante sobre o pulsar das terras por ele abrangidas no período quinhentista, nomeadamente na esfera social e da economia. Segundo o Dr. António Capão, os forais novos manuelinos só aludem ao vinho de permeio com outros produtos, como o pão, a cal e o sal, quando se trata de fixar os preços de portagem e passagem. A chamada “regra do relego” (privilégio de que gozavam os senhores de algumas terras para venderem o seu vinho aos pequenos proprietários, proibindo a venda de vinho avulso durante os três primeiros meses do ano, período em que só o seu podia ser vendido) aparece inscrita em algumas cartas de foral da Idade Média. Só que não aparece no foral de Oliveira do Bairro.

Este tempo de relego era pois um atentado sério ao livre comércio. Trata-se de um direito mencionado nas Ordenações Manuelinas, que incidia igualmente sobre a venda do vinho régio, proibindo a venda deste produto a particulares sem que primeiro se escoasse o vinho que pertencia ao Rei.[10]

Infere assim o autor bairradino a forte probabilidade de estarmos em presença da diminuta importância da cultura da vinha durante o século XVI, nos locais abrangidos pela carta de foral: Oliveira, Cercal, Repolão, Pedela (Vila Verde), Montelongo, Lavandeira, Amoreira (do Reploão)  e Bairro do Mogo. Em seu entender, “a produção vinícola até ao século XVI não explicava ainda a necessidade dessa lei específica [pois] o cultivo da vinha no século XVI não teria, na nossa região, a importância que então lhe é dada noutras partes do país”.[11]

O cultivo da vinha na Bairrada parece datar do período romano: “Pode afirmar-se que as vinhas da Bairrada são mais antigas do que a própria Nação Portuguesa, como os numerosíssimos documentos das chancelarias comprovam”.[12] Em 1137 “receberam os monges de Santa Cruz toda uma vastíssima herdade, no coração da Bairrada, com autorização para plantar vinha”.[13] Já a importância da produção do vinho na região terá acontecido bem mais tarde, em plena Idade Média. Pelo menos a partir do século XI o vinho serviria não apenas para consumo e comercialização, mas também como forma de pagamento das rendas e dos impostos.[14] Era no vinho que os senhores da terra encontravam a maior fonte dos seus impostos.

O certo é que as conclusões extraídas pelo Dr. António Capão, a partir da leitura que fez da carta de foral, colocam em causa – pelo menos no que se refere a Oliveira do Bairro – a possibilidade de a viticultura ter sido sempre a actividade predominante na área em estudo, sobrepondo-se, entre outras, à cultura da oliveira. Também Armor Pires Mota se pronuncia sobre o assunto ao constatar que na carta de foral de Oliveira do Bairro o vinho não surge como “moeda” extraindo a conclusão de que, “embora já cultivado, o fosse em pequena escala, ao contrário de outras terras, como Soza e Ouca que, nesses tempos remotos, já produziam bastante, de tal modo que aparece como elemento de pagamento nas obrigações dos casais”.[15]

Este escritor e autor bairradino mostra também alguma perplexidade pelo facto do foral de Oliveira do Bairro não aludir expressamente à produção de cal. Na verdade a cal aparece no documento ao lado do vinho, do pão e do sal, produtos sujeitos ao pagamento de direitos de compra e venda. O certo é que no capítulo que dedica à indústria da cal (páginas 307 a 310) alude a vários locais “onde fumegavam fornos e estoiravam chãos de pedra” mas em nenhum momento os faz remontar a inícios do século XVI, ou seja, à data da outorga do foral. Tudo leva pois a crer que o florescimento desta actividade tenha ocorrido alguns séculos depois.

Anota também o Dr. António Capão, como curiosidade, que no foral “os escravos são colocados ao lado ou em pé de igualdade com as bestas e vendidos ou comprados como tais”.[16] Estamos a falar de servos da gleba que pertenciam à terra do senhor, normalmente fidalgos, ou seja “filhos de algo” que deviam ao nascimento a posição privilegiada que ocupavam na hierarquia social. Os servos pertenciam às suas quintas da mesma forma que as aves de capoeira, o gado ou os cães de guarda e de caça. Quando a herdade mudava de mãos – por transação ou herança – os servos da gleba iam com ela e tornavam-se propriedade do novo senhor. Estamos a falar de reminiscências de tempos bem mais recuados, quando em plena sociedade esclavagista romana Marco Terêncio Varrão, ao aludir aos meios de trabalhar a terra, chamava aos escravos “instrumentos falantes”, para os distinguir dos instrumentos que emitem sons não articulados (animais de tracção) e dos instrumentos mudos (utensílios agrícolas).

Digna de registo é também a importância do sal para a população, sobretudo para a conservação dos alimentos. O foral dá-nos conta disso: além de outros produtos como os ovos ou o pão cozido, também o leite e seus derivados sem sal não pagavam portagem. Enfim, deixa-se ao leitor o prazer de descobrir outras curiosidades que a carta de foral encerra. Que produtos se transacionavam, que tributos pagavam, que pesos e medidas eram usados. E também lá pode encontrar o que era a pena de arma, o gado de vento, o direito de fogaça e de montado e tantas outras curiosidades.

O Decreto de 13 de Agosto de 1832 (Mouzinho da Silveira) extinguiu por completo os forais, vistos como “um peso intolerável” em certas regiões de Portugal, por constituírem um sério travão ao desenvolvimento da agricultura. Na verdade e por efeito do sistema legislativo e fiscal desses tempos recuados, muita gente da nobreza e do clero usufruía de “fartos proventos que o povo ia pagando, nuns casos, para salvação da alma, noutros, para salvaguarda do coiro”.[17]

Os forais são documentos valiosíssimos enquanto repositórios de memórias que podem e devem ser transmitidas às gerações actuais e futuras. Para Jacques Le Goff, o historiador recentemente desaparecido que nos legou trabalhos notáveis como O Nascimento do Purgatório – o nascimento de uma crença, de um espaço construído que corresponde, no século XII, a uma necessidade de espacialização do Além - estes documentos são também monumentos na medida em que estão ligados ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas.[18] Assim sendo, a Carta de Foral de Oliveira do Bairro não é apenas um documento do passado: assumindo-se como um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força de quem à época detinha o poder, é também um monumento, enquanto testemunho escrito legado à memória colectiva que assim se institui em património cultural.

Seria gratificante que a população do concelho de Oliveira do Bairro e por maioria de razão a comunidade escolar pudessem reflectir, um pouco que fosse, sobre algumas questões relacionadas com a atribuição do foral. Por exemplo: há quinhentos anos terá o povo recebido a notícia com o mesmo entusiasmo com que agora se comemora a data? Não houve reclamações ou protestos? Dar a conhecer um pouco como funcionava a sociedade quinhentista e qual o perfil do monarca que empreendeu a reforma dos forais (D. Manuel I foi um rei centralizador, inovador e reformador) ajudaria a distanciar estas comemorações da pior das inculturas: a que faz da cultura uma convenção e não uma convicção.

Espera-se, pois, que para lá do divertimento – cuja programação parece incluir evidentes preocupações culturais – irrompam também momentos de reflexão. O pior que nos podia acontecer é que tudo se resumisse a umas tantas festarolas habilmente confundidas com actos culturais, “pão e circo” para entreter os incautos do costume.



[1] Marcelo Caetano, História do Direito Português (1140-1495), Lisboa, Editorial Verbo, 1992, p. 215.
[2] João José Alves Dias, Ordenações Manuelinas 500 anos depois. Os dois primeiros sistemas (1512-1519), Catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal, Centro de Estudos Históricos-Universidade Nova de Lisboa, 2012, p. 15.
[3] Filipa Maria Ferreira da Silva, Os Forais Manuelinos de Entre Douro e Minho (1511-1520): Direito e Economia. Dissertação de mestrado em História Medieval e do Renascimento, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 20012, p. 13. Vamos seguir de perto a obra citada, na elaboração deste texto.
[4] Idem, p. 12.
[5] Idem, p. 18.
[6] Maria Alegria Fernandes Marques, Os Forais Manuelinos de Soza e de Vagos (Nota introdutória), edição da Câmara Municipal de Vagos, s/d, p. 20.
[7] Idem, pp. 20-21.
[8] Filipa Maria Ferreira da Silva, obra citada, p. , p. 34.
[9] Mário Júlio de Almeida Costa, “Forais”, in Dicionário de História de Portugal (Joel Serrão, dir.), Porto, Livraria Figueirinhas, pp. 55-56.
[10] Ordenações Manuelinas, Livro II, Título XXXIV, p. 159, segundo Filipa Maria Ferreira da Silva, obra citada, p. 52, nota 213.
[11] António Capão, Carta de Foral de Oliveira do Bairro, Edição da CMOB (2.ª edição corrigida e aumentada), 2001, p. 28.
[12] J. Branquinho de Carvalho, “Síntese das vicissitudes das Vinhas e dos Vinhos”, Jornal da Bairrada (Suplemento Bairrada Vitivinícola), 26.12.2002, p. 7.
[13] Amaro Neves, “Pantar vinhas...na Bairrada”, Boletim da Associação para o Estudo e Defesa do Património Natural e Cultural da Região de Aveiro (ADERAV), n.º 11, Maio 1984, p. 11.
[14] Diana Moreira, “Bairrada de ontem”, Jornal da Bairrada, 11.08.2005, p. 26.
[15] Armor Pires Mota, Oliveira do Bairro. Alma e Memória, edição da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, 2002, p. 38.
[16] António Capão, obra citada, p. 55.
[17] Carlos Alegre, “Os centenários dos forais”, Jornal da Bairrada, 30.01.2014, p. 3. Sobre o 5.º centenário dos forais manuelinos, ver, no mesmo jornal, Eva Neves Dias, “Os Centenários dos Forais” (edição de 20.02.2014, p. 50) e Acílio Gala, “A comemoração dos 500 anos da Carta de Foral de Oliveira do Bairro” (edição de 27.03.2014, p. 3.).
[18] Jacques Le Goff, “Documento/Monumento”, Enciclopédia Einaudi (vol.1, Memória-História), Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 95-104.