Arsénio Mota, escritor, poeta, cronista e ensaísta da cultura portuguesa contemporânea, natural de Bustos, concelho de Oliveira do Bairro, está a ser homenageado em Vila Franca de Xira. A iniciativa é do Museu do Neo-Realismo e consta de uma exposição, inaugurada no dia 1 de Novembro e que vai decorrer até Fevereiro de 2015.
Nas palavras de António Pedro Pita, director científico do Museu, esta iniciativa procura restituir, na sua circunstância epocal, o sentido do itinerário cultural e cívico do escritor.
A exposição é enriquecida com um catálogo profusamente ilustrado e com várias colaborações. É dele que extraio o texto da minha autoria, publicado nas páginas 21 a 26.
ARSÉNIO MOTA – UM OLHAR CULTURAL E REGIONAL
SOBRE A BAIRRADA
Para lá dos
variados caminhos de expressão escrita (poesia, conto, crónica, ensaio e
sobretudo literatura infanto-juvenil), a trajectória de vida de Arsénio Mota
(AM) inclui também os estudos e antologias que dedicou à Bairrada e as
monografias sobre a vila de Bustos, a
terra onde nasceu e que nela se insere.
Nascido em 1930,
terá escutado os derradeiros gemidos culturais da Plêiade Bairradina, fundada
em 1918. Terá ouvido falar, na adolescência, de padre Acúrcio Correia da Silva,
que as gentes locais veneravam e que desapareceu de forma prematura em 1926. O
mesmo não se dirá de António de Cértima, que rumou a Lisboa nos anos vinte,
atraído pelas sereias do cosmopolitismo, pelo que a Bairrada desse tempo deixou
de falar nele.
Foi já ausente da
sua Bairrada que AM sentiu mais profundamente o apelo das raízes e o reavivar
de algumas evocações e memórias ainda não delidas pelo tempo. Era preciso que
alguém voltasse a reabilitar o espírito da Plêiade e a empunhar a bandeira
cultural que esta desfraldara ao vento nos seus tempos áureos. O escritor
bairradino viria a assumir, por sua conta e risco, esta ingente tarefa.
É desse incansável labor que se dá aqui testemunho. Esforços que passam
pelo recuperar da visibilidade dos seus principais mentores – padre Acúrcio e
António de Cértima – mas também de nomes mergulhados num esquecimento
imerecido, como os poetas populares Manuel Alves, José Francisco Moreira e
António Barata, o pintor Fausto Sampaio, o arquitecto Cipriano Maia, Feliciano
Soares e França Martins, entre outros; pelos contributos que deu, sistematizando
os já existentes, para a definição e delimitação da região da Bairrada;
finalmente, pela insistência na importância duma análise regional capaz de
libertar a região da imagem distorcida que dela temos, por simples associação
redutora ao leitão assado e ao vinho maduro.
AM sempre intuiu que divulgar e promover a Bairrada requer o conhecimento
prévio dos seus traços distintivos. Isso o fez procurar respostas para
interrogações do tipo: como se define a nossa região em termos geográficos e
culturais? Que trabalhos revelam e exaltam o espaço bairradino? Existirá, na
Bairrada, um conjunto assinalável de obras que configure uma corrente literária
regionalista? Tem a Bairrada aspectos paisagísticos, tipos humanos e
linguísticos distintos dos de outras regiões portuguesas? Se tem, em que obras
estão presentes? Até que ponto a psicologia do bairradino é moldada pela
ambiência dos campos de milho e vinhedos, e pela corografia de horizontes, aqui
e ali tapada pela mancha dos pinhais? A fala do bairradino é circunscrita a
este espaço geográfico ou é comum à fala dos habitantes de outras regiões do
país?
O escritor não foge a discutir estas questões e a dar-nos frontalmente o
seu ponto de vista. Fá-lo em nome da defesa, valorização e divulgação de uma
memória local e regional. O pontapé de saída acontece em 1987, na crónica
“Bairrada sem Literatura”, publicada no Jornal
de Notícias. Queria provar – e conseguiu – que a região tinha uma
literatura que a exprimia, e que a Bairrada estava dentro da literatura. Em
1989, na Câmara de Anadia, participa no relançamento do livro «Versos do
Campo», do poeta popular José Francisco Moreira. Nessa apresentação já falava
«do desamor que vem condenando sistematicamente a cultura bairradina às
urtigas».[1]
É também em 1989 que explica, com entusiasmo, como encontrou o Hino da
Bairrada, logo vendo nele «outro elemento para desencantar a região
adormecida». E acrescenta: «Eu gostava de ver esta música, com o poema, a
correr na Bairrada de boca em boca».[2]
Recordo, também, a alegria que sentiu quando finalmente conseguiu ter em mãos
um livro de poesia que não aparecia em lado nenhum, as Seroadas Fulvas, de padre Acúrcio Correia da Silva.[3]
A ele se deve a organização dos três primeiros encontros de escritores e
jornalistas da Bairrada, no quais via “a expressão mais flagrante de um
movimento cultural-literário que pretendeu, e pretende, ir até às fronteiras da
identidade regional”.[4] Entre
as múltiplas iniciativas e propostas,
contam-se a organização de encontros e colóquios, a promoção de cursos
de jornalismo, o apoio à edição de publicações, a instituição de prémios, a
promoção de viagens de estudo, a aquisição da casa onde viveu Manuel Rodrigues
Lapa, ou mesmo o reconhecimento do inegável interesse da imprensa regional como
valor documental insubstituível.
A proposta para comemorar, em 1994, o centenário do nascimento de António
de Cértima, avultava entre as restantes: pela figura do homenageado, pelas
personalidades e entidades envolvidas, pelas iniciativas a empreender e por ter
decorrido durante um período de tempo pouco habitual, praticamente seis meses.
Para lá de organizar e ser o principal impulsionador das comemorações, AM
profere a conferência “António de Cértima, a Bairrada e a Crítica” e realiza
(com ideia e guião) o vídeo “António de Cértima” sobre a vida e obra deste
escritor e diplomata bairradino.
Ao fundar, em 1990, a AJEB – Associação de Jornalistas e Escritores da
Bairrada - a cuja direção presidiu durante quatro mandatos, a região adquire um
dinamismo cultural e fervilha de entusiasmo como há muito não se via.
Convocam-se reuniões, sucedem-se encontros, editam-se livros e antologias,
cria-se o suplemento literário Terra
Verde, instituem-se prémios literários e homenageiam-se escritores. Todas
as iniciativas têm a participação activa e a marca inconfundível de AM. Para lá
disso, organiza Letras Bairrradinas
(1990), uma antologia de poetas e prosadores que cantaram ou deram testemunho
da região; publica Estudos Regionais
sobre a Bairrada (1993), o estudo biográfico António de Cértima – Vida, Obra e Inéditos (1994), organiza o livro
António de Cértima - Colectânea de estudos no centenário do
seu nascimento (1995) e publica ainda Pela
Bairrada (1998) e Figuras das Letras
e Artes na Bairrada (2001).
Num tempo de esbatimento
acelerado das identidades, de choque cada vez mais agudo entre o velho e o novo,
entre o passado e o futuro, entre tradição e inovação, ninguém como AM lançou
sobre a Bairrada o olhar regional com que sempre a quis ver. Ninguém como ele
mostrou um pensamento tão articulado e consistente, procurando isolar o que se
encontra em crescente processo de integração ou diferenciar o que está
submetido a processos de homogeneização. Acreditava que só uma vigorosa
intervenção cultural de matriz regional seria capaz de travar o rolo compressor
da massificação acelerada, que tudo esmaga à sua passagem. Por isso encetou uma
luta sem tréguas contra as formulações localistas redutoras, contra os que
“insistem em reduzir a região à escala mesquinha das suas terreolas”.[5]
Estimular a reivindicação regional significa “ver” e
planificar para lá dos interesses e da vontade das elites locais, não reduzir a
história e a geografia desses lugares ao folclorismo pitoresco, ou ao
eruditismo balofo, conferindo importância acrescida a entidades com competência
cultural específica, às maneiras de sentir, pensar e agir das populações em
estudos integradores ou de síntese – sobre um determinado espaço enquanto
condensação de múltiplas manifestações sociais – que nos devolvam, com nitidez,
a coesão e a coerência interna de uma dada região. Só dessa forma nos será
revelada uma região com contornos específicos e não reprodutíveis em qualquer
outro espaço geográfico.
Entende também AM
que a aspiração à universalidade se tem mostrado inimiga da análise regional:
ao esquecer que todo o universal tem o seu chão, ela tende a remeter os estudos
regionais para um lugar subalterno no quadro mais geral da cultura, sem se dar
conta que a genuína universalidade não dispensa as marcas de tempo e de lugar.
Uma obra que é digna desse nome “não dilui na vaguidade de intenção
universalista as suas marcas de origem”, na exacta medida em que no universo da
cultura estão presentes, necessariamente, “todas as culturas nacionais,
regionais e locais existentes, cada uma delas imbuída da sua própria
especificidade, isto é, com os respectivos traços de originalidade
inconfundível e vazada numa peculiar expressão linguística”. [6]
Foram estes, em
breve síntese, os inestimáveis contributos de AM para os estudos regionais sobre
a Bairrada, pela qual nutre um acrisolado amor e à qual dedicaria ainda, em
2008, já depois de sair de cena, o surpreendente e enternecedor Leitão Ciclista em Busca do Paraíso, talvez o fecho desta sua
aventura regional. Fábula sobre uma região com uns tantos centros mas sem cento
nenhum, por se obstinar em não querer perder nenhum deles. A obra, na qual
podemos entrever vestígios biográficos de quem sente saudade e vai da cidade à
terra natal, mas logo se desencanta por ver tudo mudado, é mais um hino e uma
ode à Bairrada, pois o leitão e as bicicletas são nela reconhecíveis traços
identitários.
Cansado de “pesos
mortos” e de “rivalidades mesquinhas”, AM acabaria por sair de cena em finais
de 2002. Com estrondo. Abandonou a Associação de que foi o primeiro fundador,
um dedicado presidente e o principal dinamizador.
E daí para cá -
vá lá saber-se porquê – a Bairrada mergulhou de novo numa apagada e vil
tristeza cultural. É outra vez, a esse nível, uma seca, fera e estéril região.
[1]
Jornal da Bairrada, nº. 985,
21.07.1989, p. 24.
[2]
Arsénio Mota, «Do Buçaco ao Vouga», Jornal
da Bairrada, nº. 986, 28.07.1989.
[3]
Idem, “Enfim, Seroadas Fulvas”, Terra Verde, n.º 16, 07.08.1992,
Suplemento mensal do Jornal da Bairrada.
[4]
Idem, Encontros de Escritores e
Jornalistas da Bairrada – Comunicações. Edição da AJEB, Abril de 1991, p.
7.
[5]
Idem, “Para além das
aparências”, Jornal da Bairrada
(Suplemento Terra Verde, n.º 11,
07.03.1992). Texto incluído em Arsénio Mota, Pela Bairrada, Edição da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro,
1998, p. 39.
[6]
Idem, Estudos Regionais sobre a Bairrada, Editora Figueirinhas,
Porto/Lisboa, 1993, p. 16.
1 comentário:
Texto muito bem estruturado e devidamente esclarecedor.
Enviar um comentário