Já coisa de um mês antes, se sentia
latejar em todo o povo uma azáfama ofegante na preparação das alfaias, das
indumentárias, dos cenários, e na realização dos ensaios do Auto, velho e
ingénuo, que haveria de ser mastigado como núcleo de entremez.
Um talhava com umas tesouras velhas
ferrugentas, coroas de rei, especiosas e profusas de bicos e recortes, num
retalho de folha-de-flandres arrancado à sucata do picheleiro, ou recortava, em
papelão grosso, a estrela que, depois de dourada, havia de servir de guia na
caminhada para a gruta de Belém; uma rapariga costurava em cetineta vermelha ou
numa colcha ramalhuda, fora de uso, mantos reais que haviam de vir a ser
debruados e listados com galão de cangalheiro; um labrego pintava a purpurina
de oiro os velhos arreios com que se haviam de ajaezar as montadas dos magos do
Oriente.
O fim do mundo na pacatez de Sorães!
Poliam-se as trompas,
baças do pó de doze meses e enodoadas de azebre, punha-se pele nova no bombo,
rebentado no ano passado pela maceta impulsionada por músculos robustecidos
pelo estímulo do briol, apetrechavam-se os clarinetes com palhetas novas para
lhes valorizar o timbre, encordoavam-se as violas e os bandolins onde as
aranhas tinham instalado tear para fazer as suas teias – e os ensaios botavam
pela noite fora.
O encenador corrigia aqui os defeitos
da pronúncia de uma personagem, além procurava sincronizar uma fala com a
mímica que havia de a sublinhar, ou tentava pôr de acordo uma emoção com um
gesto.
Exigente no
encornanço dos papéis, ai daquele que se engasgasse no meio de uma frase, ou
esfumasse uma deixa por indecisão ou má pronúncia. Caía o Carmo e a Trindade
quando o actor se mostrava rude ou desatento! E, de jumento para baixo, todos
os insultos do dicionário lhe serviam, afoitando-se, mesmo, a incursões na
gíria local, quando precisava de termos mais expressivos para os fazer desabar
sobre as cabeças, vergadas de respeito, dos actores improvisados e
transplantados da rabiça do arado para um trono real de papelão, ou arrancados
do chão humoso e estercado para subtis incumbências angélicas sobre nuvens de
algodão em rama.
Mesmo
às figuras do Presépio, cuja missão era, apenas, estar ali sem botar fala, as
recomendações de compostura e de acordo com a função eram rigorosas e categóricas.
Este ano, então, a coisa havia de ser
figurada a preceito – ou que raios partissem os brios da comissão – e o cortejo
teria que resultar de arromba. Ponto era que o dia estivesse bonito e que um
sol doirado viesse dar a sua colaboração a tanto suor gasto para lubrificar os
rodízios do êxito.
O
cortejo dos Reis era o cartaz de Sorães!
O Evangelista, o Avelino e o Domingos
é que, desta feita, iriam figurar de magos do Oriente. Eram três labrostes
alentados como bois, sobretudo o Avelino, que ia fazer de Rei Preto. De Herodes
fazia o Laúdo, que tinha uma espantosa cara de facínora, onde uns olhos
ameaçadores e ensombrados por um torus mais grosso e pesado que o do sinantropus,
fuzilavam como coriscos corroborados por umas córneas injectadas.
Grande trabalho deu esta última
personagem ao ensaiador para conseguir desbastá-la da sua natural cortiça de
estupidez, como convinha ao poder histriónico de quem, apesar de tudo, figurava
um rei.
Como um
rinoceronte, o Laúdo investia, cego, derramando, vociferante, o seu papel,
indemne às directivas que procuravam frenar-lhe, um pouco, o impulso cafreal.
O Evangelista lá deu um mago
acetinado, mas de sabor incaracterístico como o capilé, e o Domingos,
tem-te-não-caias, pelo menos obedecia às vozes de quem mandava e à batuta do
maestro, enquanto o Avelino deu, por vocação, um Rei Preto “que só lhe faltava
falar”, como dizia a Brízida.
No
dia aprazado lá estava tudo a postos! Debaixo do rei Baltazar, de cara
enfarruscada como um tição, o cavalo, com mais lã do que um carneiro, parecia
ter a coluna vertebral selada, vergado, como estava, sob o peso da outra
alimária; e os dois restantes, muito comedidos, muito senhores do seu papel,
enquanto seguravam as rédeas com a mão esquerda, iam cofiando com a dextra umas
incríveis barbas, baças e penteadas, feitas de rabo de burro. Atrás seguiam
três sendeiros a botar figura de camelos e ajoujados sob o peso das oferendas,
as mais fantásticas, as mais inverosímeis, e destinadas a fazer as vezes da
ânfora do incenso, do cofre do oiro e da urna da mirra. Finalmente, estendia-se
ao longo da estrada esburacada e lamacenta da aldeia um cortejo interminável de
pastorinhas e pastorinhos com seus tabuleiros e canastras, com suas gaiolas e
condessas, ou tangendo carneiros brancos, afogados em lã, e tímidas cabrinhas
de pêlo escorrido, não contando com uns caçadores, tão hirtos que pareciam
engomados, levando pendentes das trelas patos e galináceos vivos que se
espanejavam esbaforidos.
Fuzilavam no centro dos tabuleiros de
madeira, forrados com papéis coloridos, garrafas cintilantes de vinho branco e
de jeropiga, de cujos gargalos partiam para os cantos festões de bilharacos e
figos passados enfiados em arames; rescendiam as galinhas assadas, tostadas e
loiras, com suas epidermes de poros arrepiados, como que esfregadas com
urtigas, e berravam em bandejas de latão bolos recobertos de açúcar com
decorações quase mouriscas de confeitos multicolores; sussurrava o milho
amarelo nos alqueires e alvejavam toalhas, engomadas e emolduradas de renda,
debaixo de leitões assados no espeto e com as maxilas cerradas num trismo
sardónico sobre laranjas gritantes de cor e de acidez.
E, à cabeça das garotas, como que a
corroborar o especioso dos penteados, abóboras-meninas, bilobadas como cabaças
e quase rubras no seu intenso alaranjado, ou taleigos imaculados de brancura a
impar de farinha pelo laço do nagalho. Tudo aquilo que de mais bizarro se possa
imaginar em matéria de oferendas era conduzido para o presépio do Menino por
aquele cortejo guiado pela estrela, de papelão doirado, erguida, ao alto, na
ponta de uma cana, por um anjinho adornado com umas descomunais asas, profusas
de rémiges, muito mais zoológicas do que as de qualquer ganso petulante e
fanfarrão.
O cortejo encaminhou-se para o
Presépio, armado num desvão do adro, aconchegado sob a copa espessa e
acolhedora de um cedro centenário...
E,
então, as régias personagens desmontaram, muito solenes, os servos
descarregaram os burros, sucedâneos dos camelos, e os três Magos, dobrando os
joelhos, e baixando até ao chão as coroas de lata, depuseram junto do estábulo,
em vez da ânfora do incenso, o pipo grávido de vinho, em vez do cofre do oiro,
o alqueire coagulado de milho doirado, e, em vez da urna da mirra, a carne de
porco nacarada e enterrada em sal mais branco do que a neve pura.
O Menino Jesus, de barro, do tamanho
de um menino verdadeiro, com seus olhos muito azuis e seu cabelo como estrigas,
ficou estático e sereno nas palhinhas humildes, sob o bafo quente de um jumento
e de uma vaca ao natural, enquanto, sobre o seu corpinho róseo, uma Virgem e um
S. José de Sorães deixavam cair dos olhos, embevecidos, lágrimas de maná.
Quem olhasse de longe julgaria ter na
frente o presépio de um barrista do século XVIII, com suas figurinhas de
argila, onde nem sequer faltava o desbotado e a patina da policromia que se
soletrava, facilmente, nas indumentárias usadas, pela quinquagésima vez, nestes
cortejos de Sorães.
Mas nem tudo, naquele ano, se passou
como estava escrito nas rúbricas do Auto...
Na verdade, na varanda do seu palácio
de estafe, Laúdo, o façanhudo Herodes, de mãos atrás das costas, passeava, de
um lado para o outro, exteriorizando uma sanha rábica, que transbordava para
fora do texto e da ordenança da encenação. Os Magos não lhe traziam, como era
da promessa, notícias daquele Menino que a sua tirania queria degolar para
extinguir a chamazinha de justiça e liberdade que nascia para os escravos, para
os pobres e para os tristes.
De vez em quando, numa agitação
espasmódica, subia os três degraus do estrado para se sentar no seu trono de
papelão, onde se chegavam reverentes dois servos, um com um cântaro de meio
almude, outro com uma taça de lata numa bandeja, para refrescarem a secura do
seu real amo. E tantas foram as vezes que a sede do Laúdo esgotou a taça, já
tinta de roxo até ao pé, que os efeitos do vinho se começaram a produzir e a
revelar. O semblante entrou de avinagrar-se-lhe e de endurecer, e a sua
agitação a mostrar-se com evidência de mais para ser fingida. Amiúde, parava
no meio do tablado e desembainhava palmo e meio de catana da sua baínha de
lata. Depois, tornava a embainhá-la e carregava, ainda mais, o sobrolho em
viseira, pronunciando palavras ininteligíveis. E, a certa altura, ouviu-se
mesmo, com nitidez e contra a letra da peça, sair-lhe da boca avinhada uma
frase que fazia dissonância:
- Do filho do meu pai nunca ninguém
fez pouco; ou aqueles filhos duma cadela me trazem notícias do garoto, ou vou
eu mesmo procurá-lo!...
O contra-regra interveio do lado para
chamar o Laúdo ao papel, mas a resposta foi pronta:
- Deixar borrar as barbas, à frente
do povo todo, é que eu não deixo, nem a fingir!
Houve risadas e dichotes na
assistência. A comissão fervilhou de zelo e o próprio padre da freguesia disse
qualquer coisa de xaroposo para neutralizar a fúria acética do Herodes que,
apesar de tudo, continuou a remorder:
- Se queriam alguém para botar figura
de bacoco, não me batessem à porta a mim; se esses reizotes de trampa não me
trazem as prometidas notícias do fedelho, irei eu catá-lo, nem que seja aos
quintos...
E, se bem o disse, melhor o fez.
Perante o pasmo da multidão, o Laúdo deu um salto bestial abaixo do varandim,
ergueu no ar a catana rebrilhante e correu, furioso, direito ao Presépio para
degolar o Menino de barro.
Não foi possível encontrar razões
para o deter: nem a tradição, nem o Auto, nem a autoridade do ensaiador, nem os
apelos da comissão, nem as palavras mansas do padre, nem mesmo o testemunho dos
Evangelhos!...
Só a força bruta de três labregos, de
braços mais grossos do que gibóias, conseguiu salvar da fúria daquele Herodes
de entremez o Menino-Jesus venerado pelo povo há uma carrada de anos.
Mas, esta surpresa, que veio embater
contra a expectativa pacóvia da assistência, não ficou por aqui. Os filhos do
Laúdo, vendo o pai agarrado por aqueles três brutamontes, foram levar-lhe o
socorro que entenderam dever-lhe como filhos. Foi o rastilho para se envolver
meio mundo à porrada – o que, trocado em miúdos, se traduziu num hematoma do
tamanho de um ovo de galinha no coronal do rei Baltazar, em duas arquinhas
partidas no rei Herodes e num beiço rachado no Anjinho da Estrela...
Por este preço logrou a Sagrada
Família fugir para o Egipto, naquele Natal de Sorães...
[1] António
Frederico Vieira de Moura (1909-2002). Natural de Vagos. Licenciado em Medicina
e em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra. Deputado
eleito pelas listas do Partido Socialista na III e IV legislaturas. Colaborador
de jornais e revistas, era um conferencista e comunicador brilhante. Dele disse
Miguel Torga, amigo dilecto: “ser de eleição (...) pragmático e sonhador, ácido
e sentimental, solitário e convivente com horas de formiga e horas de cigarra e
sempre solidário e compassivo” (Litoral,
12.04.1979).
[2] Este
conto tem a particularidade de se desenrolar no extinto concelho do Couto da
Vila de Sorães (actual freguesia de Santa Catarina, do concelho de Vagos) que nas
Memórias Paroquiais de 1758 incluía o
lugar de Bustos, parte do Sobreiro e o lugar da Barreira. Esta narrativa de Frederico
de Moura foi extraída do blogue de Ricardo Esteves “Crónicas Portuguesas”. O
conto está incluído em Pulso Livre,
obra editada pela família do autor, com textos inéditos e outros já
publicados. Está também incluído em “Natal”, edição do Instituto
Luso-Fármaco, 1967.
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