Ainda
consigo ver um sorriso tímido mas desarmante a bailar-te nos lábios. E
apetece-me eternizar o instante. Era assim que aparecias cá por casa. Primeiro,
acompanhado da tua Mãe. Mais tarde, já adolescente, algumas vezes sozinho.
Trazias
na mão o inevitável frasquinho de compota – tantas vezes doce de uva – que a Graça
preparava e de forma generosa distribuía - e ainda distribui - pelos outros. No
regresso, levavas alguns livros de banda desenhada que eu comprava para o André.
Naquele tempo, seguramente o Asterix e o Tintim. O Lucky Luke - o cowboy que
dispara mais rápido que a própria sombra – os Dalton e alguns outros só apareceram
por cá mais tarde. Lembras-te?
Digo-to
agora, com um irremediável instante de atraso: sempre simpatizei muito contigo.
E sinto o remorso do que ficou por dizer. Por isso não devias ter partido
assim, Kevin. Se nenhuma idade é boa para morrer, a partida de alguém de quem
se gosta é sempre uma tristeza. Com a tua idade, as circunstâncias em que
partiste não deixam ninguém indiferente.
Não
tive contigo as conversas, nem o convívio, nem sequer a cumplicidade que
costumam forjar as grandes amizades. Sempre são quarenta anos de diferença a
separar-nos! Mas não era difícl perceber
que eras um miúdo porreiro e sensível, e que assim terás continuado a ser até
ao sombrio e fatídico domingo passado.
Bem
sei que a vida é uma passagem e que ignoramos o que nos espera do lado de lá,
ao qual tu já pertences. Mas a notícia
de uma morte inesperada é sempre um grande desconforto. Por isso a sensação de
vazio e de ausência que agora começa é mais amarga e difícil de suportar.
Como
aplacar este desgosto que morde como um cão danado? A melhor forma que
encontrei foi reparti-lo, colar esta dor à dor dos que te querem bem: pais,
familiares e amigos certos, todos os que te deram um cuidado sem descanso, uma
atenção sem intervalos. E eram tantos
hoje à tarde, a desaguar em lágrimas num lago de ternura e comoção à solta.
Regressei
a casa, depois do derradeiro adeus nesta tarde tão agreste. Continuo sem
coração para ver enterrar os amigos, mas lá fui, a custo, como um náufrago à
procura de um porto de abrigo. A emoção vai passar mas a tristeza perdura. O
tempo suaviza-a, mas não a apaga.
Olha
Kevin: os livros que leste, manuseaste e tocaste de perto, continuam no mesmo
sítio. De algum modo são uma marca tua e te continuam. Sei que não há palavras
para exprimir o indizível, mas o que pretendi aqui foi isso mesmo:
ressuscitar-te um pouco, ao menos com palavras.
Fico
com pena de não teres aparecido nos últimos tempos. Não duvido que tinhas
coisas mais interessantes para fazer, reclamadas pelos teus fogosos e
verdejantes vinte e um anos. Mas olha que tenho por aqui umas bandas desenhadas,
à Milo Manara, que ias apreciar. Fica para um dia destes. Prometido.
2 comentários:
Belo texto, Carlos, mesmo sem querer ser belo! Temos as frágeis palavras para a ressuscitação possível... é o que temos, mas é milagroso.
Paulo Carvalho
Li agora o texto sobre o Kevin. Consegues transmitir, de uma forma bela, a dor que sentes. É bom ler-te!
Fátima
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