Pecado
original: este livro não abre com um prefácio. O autor resolveu prescindir da
nota preambular, trocando-a por um naipe de curtos depoimentos que solicitou a
pessoas do seu círculo de amizades. Delegou nos amigos as possíveis
advertências para a ementa que nos serve logo a seguir. Ou, quem sabe, talvez
tenha apenas sabido resistir à tentação com que certos autores escrevem o
prefácio para se antecipar às bicadas dos seus mais severos críticos.
Pode haver, nessa girândola de impressões
sobre o primeiro livro de Jorge Mendonça (JM), um ou outro exagero no que ao
rude ofício da escrita diz respeito. Tudo isso faz parte da cegueira da
amizade. O autor não é contista no sentido canónico de aprendizagem de um
conjunto de técnicas específicas. É-o à sua maneira e – atrevo-me a dizê-lo –
por graça da sua intuição, abalançando-se nos caminhos da sua própria
descoberta. Mas o retrato de corpo inteiro que os amigos lhe traçaram, recorrendo
à paleta variegada dos afectos, esse, não mente: pintaram-lhe a alma, espelhando
nela aquilo que o ser humano tem de mais gratificante.
Outra curiosidade tem a ver com a prevenção
que o autor coloca estrategicamente num ou noutro texto: “qualquer semelhança
com a realidade é pura coincidência”. À laia de aviso, parece jogar na
ambiguidade: tanto pode querer enredar-nos no jogo ficcional, como – para citar
Mário de Carvalho – lograr precisamente o contrário daquilo que declara e fazer
soltar a mola da curiosidade bisbilhoteira.
Bisbilhotemos, então, este livro de estórias
e de contos. Começando por dizer que o conto, enquanto género literário ou
sub-género da ficção narrativa curta, é tudo menos um género menor, já que requer
um conjunto de qualidades que o torna um dos mais difíceis no vasto campo da
ficção. O espaço mais limitado do conto, ao contrário do que acontece com o
romance, requer que se condensem as imagens mais impressivas, joeiradas entre
tantas outras. E por isso tem, entre os que escrevem, alguns cultores de
excelência. Para o caso português basta citar, entre outros, Alexandre
Herculano, Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro, Miguel Torga, José Rodrigues
Miguéis, José Cardoso Pires, Manuel da Fonseca, Sophia de Mello Breyner ou
Mário de Carvalho. E, fora de portas, Machado de Assis, Ruben Braga, Curzio
Malaparte, ou Anton Tchekhov são apenas algumas de entre as muitas referências
possíveis de grandes contistas.
Pois bem: estes contos – e outros textos - que
em boa hora JM entendeu publicar, revelam o estilo e a sensibilidade do autor,
o poder de captação do real e uma arte muito própria de narrar. Desvendam o seu
imaginário, a capacidade analítica e os temas que vincam o exercício da sua cidadania. E só não
representam uma autêntica revelação para quem já teve o privilégio de ler antes
aguns deles, publicados em blogues ou na imprensa regional bairradina.
Estas estórias vivem da capacidade de
efabulação e de uma escrita simples e desataviada. Sendo o conto vizinho da
fábula, a feição moralizante de alguns textos não podia deixar de estar
presente. A ironia, umas vezes mais subtil, outras mais corrosiva, está ao
serviço da crítica ao lodaçal da política videirinha. Uma crítica que não poupa
a hipocrisia e a adulação reverente dos serventuários do poder, a dizer-nos,
como no famoso conto de Andersen, que o rei vai nu apesar dos vassalos não o
dizerem abertamente, para não perderm as suas graças.
Embora a paródia seja uma constante na
descrição de alguns eventos políticos concelhios, a política não é depreciada.
É tratada com seriedade, porque a política tem de ser moral para ser eficaz.
Tudo o que é dito pretende formar, mas sem influenciar. O autor pensa pela sua
cabeça e afirma claramente as suas ideias. Podemos não concordar com uma ou
outra, mas revemo-nos nos princípios e atitudes que as norteiam.
JM não é indiferente ao que o rodeia, porque
sabe que a indiferença é a paralisia da alma. (Re)constrói personagens – muitas
delas suas conhecidas - e episódios do
quotidiano, como acontece No Centro de
Saúde, transformando esses materiais numa avaliação profunda das condutas
humanas. Revela também uma observação atenta aos fait-divers, aos encontros e desencontros da natureza humana, às
paixões e amores não correspondidos, à verbalização do desejo e dos seus
demónios, às crenças, usos e costumes tradicionais da região, fazendo ressaltar
as aporias entre o sagrado e o profano que caracterizam as festas populares. Da
espessura do tempo e da própria vida irrompem situações inesperadas que dão
sentido e valorizam estas estórias.
Um dos contos mais impressivos é O pescador de peixes, que nos revela o
saber de experiência feito de Job, a personagem central, velho pescador de
Perrães que calcorreia as “bordaduras do parque do Carreiro Velho” e que
conhece “cada palmo e cada centímetro daquelas águas turvas e lamacentas”, um
território quase sagrado, ou não fizesse ele parte do seu corpo e da sua vida. Ninguém
como ele conhece esse “mistério que os pescadores sentem ao passarem horas a
fio, imóveis, de olhar fixo, até sentirem qualquer coisa a remexer-se debaixo
de água”.
Job é assim um nome ajustado à natureza
destas tarefas, paciente e sábio, com óbvias conotações bíblicas. Sangra por
dentro ao ver descaracterizar-se o velho parque, agora virado do avesso, para
em seu lugar nascer um renovado espaço de reunião e convívio. Sofre por ver
desaparecer um lugar de memória que sempre lhe foi familiar, que conhecia como
as palmas das mãos. Essa dor não resulta de outra coisa senão do confronto
entre o velho e o novo e da perda acelerada de referências que ajudaram a construir
uma identidade singular.
Já a roçar o batente dos oitenta, Job tem
consciência que tudo na vida é precário e irrepetível e que por isso o Carreiro
Velho da sua infância não voltará a ser o mesmo. Mas ironiza com a inauguração
do novo espaço, porque ao radar das suas
manhas não escapa que tal inauguração não passa de mera caça ao voto dos cidadãos
desprevenidos. Agora apenas uma coisa o contenta: o facto do parque de merendas
não ter sombras, apesar de terem sido gastos rios de dinheiro. JM projecta na personalidade deste pescador
bairradino o saber de uma longa experiência de enganos na sua relação com as
diferentes instâncias do poder. Job pressente que o parque não vai ser invadido
por visitantes, o que lhe permite continuar a usufruir dele e do seu silêncio.
Assim será porque, afinal, se escreveu direito por linhas tortas: porque –
suprema das ironias – “os pescadores de votos se lembraram dos pescadores de
peixes”...
Algumas estórias não são propriamente contos,
pois a narrativa nem sempre é encaminhada para epílogos enigmáticos geralmente
adiados até aos derradeiros instantes. São textos mais indefinidos, um misto de
relato ou reportagem de acontecimentos do quotidiano, caldeando por vezes
referências ao real concreto com a sua representação ficcional. Isso não
invalida que tais estórias não valham pelo estilo e pela substância com que são
embrulhadas e nos são oferecidas.
Em A
festa das associações evoca-se o renascimento da quinta-feira da Ascensão
como dia de feriado municipal em Oliveira do Bairro. O autor lamenta que os
actos comemorativos estejam a subverter a tradição, que na noite dos festejos
não tenha sido distribuída “uma simples espiga ou um singelo raminho de plantas
campestres”. Nesse raminho, a espiga de trigo simbolizava o pão, podendo
juntar-se-lhe o raminho de oliveira (paz), o malmequer (dinheiro) e o alecrim
(saúde). Algo que fizesse relembrar o
Dia da Espiga ou até o Dia dos Namorados. Mandava a tradição que o ramo da
espiga fosse colocado atrás da porta de entrada de cada casa. Depois,
saboreavam-se os farnéis à sombra dos arvoredos, às vezes em alegre romaria até
ao Buçaco. Triste é que nesta data genuinamente portuguesa os festejos ficassem
marcados pela importação de culturas e modelos estrangeiros. Em vez de ranchos
populares, o feriado concelhio foi animado por cantares da Tunísia, fenómeno
revelador de que o que parece preocupar o poder polítco municipal não é a
recuperação genuína das tradições mas uma cultura de tasquinhas e porco no
espeto para satisfazer o regular funcionamento do estômago dos munícipes.
Em Carta
à tia Assunção, mas sobretudo em Divagações
sobre a R.A.T.A., o autor manuseia habilmente, com ironia e de forma às
vezes hilariante, o acrónimo de Reorganização Administrativa Territorial
Autárquica. Não deixa de falar em coisas
sérias, mostrando-se a favor de uma reorgaização administrativa mas contra a
que nos foi imposta com régua e esquadro. Diz o que sente, sem recorrer a
meias-tintas, porque sabe que o exercício da cidadania deve ser polifónico,
acolher e respeitar as vozes discordantes. Por isso se insurge, em Parábola do Silêncio, contra os que na
tentativa de abafar as vozes discordantes tratam os adversários políticos por
“escribas desalinhados e mentirosos”.
Entre outros textos interessantes – e são
vinte e oito, ao todo - não percam os leitores o que se intitula Poder vs Oposição. Nele, JM recorre à metáfora
futebolística para retratar e caricaturar os duelos entre o poder e a oposição
municipal. Nesse strep-tease do poder
oliveirense o jargão da bola funciona como um látego da ironia. Em acção vemos
um verdadeiro rei dos toques, com passes de calcanhar e pontapés-moínho. Um
virtuoso que a equipa do poder municipal só consegue travar com sucessivas
rasteiras na grande área da demagogia. O problema é que nunca se marca um penalty
e o jogo fica desvirtuado. Árbitros comprados, é bom de ver...
Se em Estórias
d’Escritas se pode vislumbrar uma marca distintiva, a que parece sobressair
é a do apego aos valores humanistas. Eles estão presentes na crítica da
sociedade do espectáculo, nos abusos das praxes académicas ou na comovente
homenagem aos colegas de curso já falecidos. Sendo as suas primícias literárias, oxalá que
estas estórias funcionem como rampa de lançamento e espaço de incubação de
outros textos ficcionais. Porque nesta escrita de inventário e de balanço das
responsabilidades de cada um, JM cultiva o salutar vício de não se calar. Ora
isso promete outros voos e deixa-nos com água na boca.
Uma palavra final para a capa e para os desenhos
de Lara Roseiro, que em muito ajudam a transformar o livro num objecto
estético. As ilustrações, onde a leveza feminina está presente, falam sempre
aos olhos. O resultado é um livro escrito com o coração e a sensibilidade.
4 comentários:
Carlos, o texto que escreveste sobre o livro "Estórias d'Escritas" está óptimo! Fica-se logo com uma ideia do livro e com vontade de ler! Pensava que eras tu a fazer a apresentação... Ou então, é alguém da editora e tu, não?! Agora estou à espera de um livro da tua autoria!!!
Parabéns!
Fátima
Fátima: Agradeço o comentário. Não vou fazer a apresentação do livro. Como se lê no próprio convite, será uma pessoa ligada à Chiado Editora a apresentar a obra. Eu limitei-me a tentar despertar o interesse nela.
Bom dia.
Apenas para esclarecer que a apresentação será feita por Marta Abrantes, que nenhuma ligação tem à editora.
Jorge Mendonça
As minhas desculpas a Marta Abrantes. Fui induzido em erro pelo convite. Obrigado Jorge, pela correcção. O seu a seu dono.
Enviar um comentário