A notícia vinha no Diário de Coimbra de 30 de Março passado. Há milhares de poemas dispersos, muitos deles de autores anónimos, alusivos à guerra colonial. O projecto, a cargo do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, já tem nome: “Poesia da Guerra Colonial: uma ontologia do “eu” estilhaçado”. Estarão reunidos já cerca de 10 000 poemas. Tratando-se da construção de uma memória nacional, os investigadores referem que este tipo de poesia representou “um veículo importante para a mobilização e para a sensibilização”, aludindo também a uma “dimensão terapêutica da literatura de guerra, que permite afastar traumas e emoções que advêm do conflito”.
O que me leva a trazer aqui este tema é o facto de saber que não foram apenas só alguns nomes consagrados pelo cânone literário que derramaram em poesia as suas experiências de guerra. Na região da Bairrada há certamente gente que tendo passado pelos cenários da guerra de África expressou poeticamente os sentimentos que lhe iam na alma, perguntando-se muitas vezes, quando o perigo rondava: que estou eu a fazer aqui?
A partir dos anos 60 do século passado e até ao 25 de Abril de 1974, aos jovens com 20 anos deparava-se o dilema de ir para a guerra. As alternativas de lhe fugir – que venha o diabo e escolha... – eram a emigração clandestina, normalmente para França, “a salto”, como então se dizia, com recurso ao célebre “passaporte de coelho”; ou então optar pela pesca do bacalhau à linha, nos mares longínquos e gelados da Gronelândia e Terra Nova. Eram estes os cenários de sonho que se deparavam à juventude daquele tempo.
Ir à guerra foi uma experiência traumática para muita gente. Ver morrer amigos despedaçados por uma mina, ou sentir-se só no meio do mato, de um momento para o outro, durante uma emboscada, com a vida no fio da navalha, são coisas que deixam sulcos fundos e imperecíveis na memória e na alma. Mas também não seria mais agradável, para um jovem de 20 anos , sair do lugre estacionado no meio do mar, meter-se sozinho num frágil dóri e rumar aos bancos de pesca, à força de remos ou vela. Afastar-se do barco principal e desaparecer na bruma do amanhecer, enfrentando mil perigos, cercado de nevoeiro cerrado, de frio e de mau tempo, sem recurso a previsões meteorológicas. À hora de voltar, com o pequeno barco carregado, quantos se perdiam e afundavam. Com a bruma cada vez mais cerrada, ecoavam os chamamentos, os assobios, as imprecações, na imensidão do oceano. Cansados da faina, os pescadores recolhiam ao apetecido lugre, onde outros trabalhos árduos os aguardavam: “a degola, destripação, abertura, limpeza e salga do pescado até altas horas da noite, para só depois se poder saborear o caldo quente do rancho e o merecido descanso na estreita enxerga do beliche” (1).
Na guerra em África, nem só os que desertavam eram considerados traidores. Traidores eram também, para o regime de Salazar, aqueles que se rendiam, na certeza de que continuar a lutar, em certos momentos, significava perecer. Aconteceu isso com os ex-prisioneiros da guerra da Índia. Regressados a Portugal, havia ordens para não lhes dar emprego. A ordem era “Morrer pela Pátria” e o governo de então preparava-se já para celebrar a glória póstuma dos soldados sacrificados, pois preferia heróis mortos a prisioneiros vivos. Muitas feridas de guerra continuam por sarar e a poesia vertida da pena de quem a viveu por dentro pode ser uma forma de catarse, de exorcizar fantasmas.
A poesia da guerra colonial, além de acrescentar mais documentos e massa informativa ao acervo já existente, pode dar-nos ângulos de análise até agora pouco conhecidos: a vida no mato a dois passos da morte, o absurdo, o baptismo-de-fogo em época de chuvas, o correio que tarda em chegar, embrulhado em saudade e palavras de conforto da família, da namorada, ou da “madrinha de guerra”, a fome e a sede, o medo frio dos soldados que partem como guerreiros e esperam regressar como heróis e entretanto acabam dizimados num planalto longínquo, a rezar para que alguém os resgate daquele inferno. Gente decepada pelas minas ou desorientada pelo terreno que não conhece. Homens que a guerra, de um momento para o outro, transformou em heróis ou cobardes, farrapos humanos ou criminosos.
Muita gente, na região da Bairrada, esteve na guerra de África. Alguns dos seus filhos acabaram tragados por ela. Quantos dos que sobreviveram e ainda pertencem ao mundo dos vivos não terão escrito algum relato, uma ou outra poesia, ou um diário de guerra? Assim de repente, afloram-me ao pensamento apenas dois autores bairradinos que expressaram os seus sentimentos sobre a guerra de uma forma poética: Carlos Luzio, de Bustos, falecido prematuramente em 2004, e Armor Pires Mota. Bom seria que os seus poemas de guerra chegassem ao conhecimento dos investigadores do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra que lideram este projecto, pois têm qualidade para estar representados nessa compilação, o que não deixaria de dignificar a Bairrada.
De Carlos Luzio, de quem os amigos publicaram em 2005 uma edição póstuma intitulada Pescador de Sonhos, transcrevo este poema em memória de um camarada caído: (2)
Uma mina fez crescer a minha revolta
ao ver-te morto ali mesmo a meu lado
Um bom amigo, mas outro pobre soldado
que é obrigado a ir e que não volta
O fumo era muito mas deu para ver a tua dor
O ar tinha o aroma ácido do trotil
embaciava o teu olhar sem vida a dizer adeusO que me leva a trazer aqui este tema é o facto de saber que não foram apenas só alguns nomes consagrados pelo cânone literário que derramaram em poesia as suas experiências de guerra. Na região da Bairrada há certamente gente que tendo passado pelos cenários da guerra de África expressou poeticamente os sentimentos que lhe iam na alma, perguntando-se muitas vezes, quando o perigo rondava: que estou eu a fazer aqui?
A partir dos anos 60 do século passado e até ao 25 de Abril de 1974, aos jovens com 20 anos deparava-se o dilema de ir para a guerra. As alternativas de lhe fugir – que venha o diabo e escolha... – eram a emigração clandestina, normalmente para França, “a salto”, como então se dizia, com recurso ao célebre “passaporte de coelho”; ou então optar pela pesca do bacalhau à linha, nos mares longínquos e gelados da Gronelândia e Terra Nova. Eram estes os cenários de sonho que se deparavam à juventude daquele tempo.
Ir à guerra foi uma experiência traumática para muita gente. Ver morrer amigos despedaçados por uma mina, ou sentir-se só no meio do mato, de um momento para o outro, durante uma emboscada, com a vida no fio da navalha, são coisas que deixam sulcos fundos e imperecíveis na memória e na alma. Mas também não seria mais agradável, para um jovem de 20 anos , sair do lugre estacionado no meio do mar, meter-se sozinho num frágil dóri e rumar aos bancos de pesca, à força de remos ou vela. Afastar-se do barco principal e desaparecer na bruma do amanhecer, enfrentando mil perigos, cercado de nevoeiro cerrado, de frio e de mau tempo, sem recurso a previsões meteorológicas. À hora de voltar, com o pequeno barco carregado, quantos se perdiam e afundavam. Com a bruma cada vez mais cerrada, ecoavam os chamamentos, os assobios, as imprecações, na imensidão do oceano. Cansados da faina, os pescadores recolhiam ao apetecido lugre, onde outros trabalhos árduos os aguardavam: “a degola, destripação, abertura, limpeza e salga do pescado até altas horas da noite, para só depois se poder saborear o caldo quente do rancho e o merecido descanso na estreita enxerga do beliche” (1).
Na guerra em África, nem só os que desertavam eram considerados traidores. Traidores eram também, para o regime de Salazar, aqueles que se rendiam, na certeza de que continuar a lutar, em certos momentos, significava perecer. Aconteceu isso com os ex-prisioneiros da guerra da Índia. Regressados a Portugal, havia ordens para não lhes dar emprego. A ordem era “Morrer pela Pátria” e o governo de então preparava-se já para celebrar a glória póstuma dos soldados sacrificados, pois preferia heróis mortos a prisioneiros vivos. Muitas feridas de guerra continuam por sarar e a poesia vertida da pena de quem a viveu por dentro pode ser uma forma de catarse, de exorcizar fantasmas.
A poesia da guerra colonial, além de acrescentar mais documentos e massa informativa ao acervo já existente, pode dar-nos ângulos de análise até agora pouco conhecidos: a vida no mato a dois passos da morte, o absurdo, o baptismo-de-fogo em época de chuvas, o correio que tarda em chegar, embrulhado em saudade e palavras de conforto da família, da namorada, ou da “madrinha de guerra”, a fome e a sede, o medo frio dos soldados que partem como guerreiros e esperam regressar como heróis e entretanto acabam dizimados num planalto longínquo, a rezar para que alguém os resgate daquele inferno. Gente decepada pelas minas ou desorientada pelo terreno que não conhece. Homens que a guerra, de um momento para o outro, transformou em heróis ou cobardes, farrapos humanos ou criminosos.
Muita gente, na região da Bairrada, esteve na guerra de África. Alguns dos seus filhos acabaram tragados por ela. Quantos dos que sobreviveram e ainda pertencem ao mundo dos vivos não terão escrito algum relato, uma ou outra poesia, ou um diário de guerra? Assim de repente, afloram-me ao pensamento apenas dois autores bairradinos que expressaram os seus sentimentos sobre a guerra de uma forma poética: Carlos Luzio, de Bustos, falecido prematuramente em 2004, e Armor Pires Mota. Bom seria que os seus poemas de guerra chegassem ao conhecimento dos investigadores do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra que lideram este projecto, pois têm qualidade para estar representados nessa compilação, o que não deixaria de dignificar a Bairrada.
De Carlos Luzio, de quem os amigos publicaram em 2005 uma edição póstuma intitulada Pescador de Sonhos, transcrevo este poema em memória de um camarada caído: (2)
Uma mina fez crescer a minha revolta
ao ver-te morto ali mesmo a meu lado
Um bom amigo, mas outro pobre soldado
que é obrigado a ir e que não volta
O fumo era muito mas deu para ver a tua dor
O ar tinha o aroma ácido do trotil
O teu sangue a borbotar, sem nada poder fazer
E senti ódio, sim, ódio, raiva, rancor,
ao ver a tua mão trémula a acariciar o fusil
De que lado estavas tu, Deus
que deixaste que nos treinassem para morrer?
Também Armor Pires Mota nos dá a conhecer as emoções da guerra em Baga-Baga, livro de poemas editado em 1967, fruto da sua descida aos infernos em terras da Guiné. Aqui fica o poema SANGUE:
Carne retalhada de feridas em revolta
E nuvens de poeira.
Caminho (é vermelho o céu, é vermelho o chão)
onde a morte nos rouba, de armas na mão,
sorrateira,
como se fôssemos ladrões ou gentes
sem pátria nem bandeira.
Caminho que conheço, de sangue e raiva nos dentes,
do princípio ao fim
donde irromperão sempre bichos e serpentes...
Sinto medo. E, de arma na mão, fujo de mim.
Esta poesia ajuda-nos, para lá da crueza da guerra, a descobrir os sentimentos por detrás das armas e das boinas militares. Aguarda-se com expectativa a conclusão e divulgação deste projecto de compilação. Há já muita coisa em prosa sobre o assunto. De poesia há muito pouco, pois já se sabe que vende mal. Mas a poesia também pode ajudar – e de que maneira – a escrever a crónica de um adeus português em África.
(1) Boletim da ADERAV, n.º 13, Maio de 1985, p. 9.
(2) Bustos - do passado e do presente, 06.10.2004 (post de Óscar Santos).
6 comentários:
Infelizmente no tempo que passei na escola pouco ensinaram sobre ultramar. Apenas duas a três páginas, não mais, nos manuais escolares de história. Foi pena.
Acompanhei, o Documentário "A Guerra" de Joaquim Fortado. Bom exemplo de serviço público da RTP. Aprendi ele ensinou-me. Depois de muitos anos ouvimos histórias da Guerra.
Folgo em saber que alguém quer ver o outtro lado dos sentimentos.
A pouco e pouco vamos deixando de lando velhos fantasmas e a história começa a ser feita.
Assim, duma assentada, dois temas que me são muito "caros":
- A puta da guerra colonial, que nos vai marcando em crescendo à medida que os anos se afastam (fogem?) dela;
- A epopeia dos bacalhaus, que estou em vias de abordar no Notícias de Bustos e/ou no bloguedooscar.
Sobre o 1º tema, vou escrevinhando, as mais das vezes a custo, que aquilo doeu.
Sobre a fuga para os mares da Gronelândia, não me falta matéria-prima, escrita e em carne e osso.
Curiosamente, um conterrâneo e bom amigo fugiu da guerra colonial indo para o bacalhau. Desistiu a meio do percurso e foi bater com os costados em Angola, onde nos encontrámos em 71 ou 72.
E esta?
A escrita - poética ou de outra ordem - serviu nos últimos tempos para a expurgação de demónios interiores de muitos homens que foram para esta «guerra»... Deve haver muita escrita por aí perdida... tantas como ou mais do que as feridas físicas e mazelas psicológicas...
O cinismo maquiavélico daqueles que «mandam» e comandam militares, à distância, diz algo como: «vejam a guerra e os inimigos como abstracções, façam um serviço à pátria. Serão mártires»... enquanto, confortáveis, com o comando na mão, vêem espectáculo, em directo, na TV.
Por um império de sangue ou territorial? E a razão? E o ser humano?
Felizmente, a minha geração tem o direito da «objecção de consciência» nesta matéria.
Correcção: A minha geração... em Portugal. Portanto, o «felizmente» é relativo... Se me recordar dos refugiados, das crianças-soldado e dos soldados adultos que lutam em guerras absurdas, volto ao alarme.
Sim amigo Óscar, a guerra colonial doeu mais a uns que a outros, mas a todos terá dilacerado interiormente. Também me coube ir até Moçambique, e na província de Cabo Delgado - mais concretamente em Mocimboa da Praia, terra dos temidos guerreiros macondes - pude avaliar um pouco o que era ser carne para canhão e a diferença entre quem fazia a guerra no terreno e quem a alimentava no ar condicionado.
Mas deixemos isso e passemos à tal epopeia dos bacalhaus. Fico à espera da abordagem num dos blogues de Bustos. Sem querer ensinar o padre nosso ao vigário, julgo que vale a pena ler, do Bernardo Santareno, sobretudo O Lugre e Nos Mares do Fim do Mundo, livros onde vem à tona todo o saber de experiência feito. Os portugueses sempre foram sensíveis ao chamamento do mar: assim o mar nas Descobertas, na Epopeia (Camões) nos Naufrágios (Peregrinação e História Trágico-Marítima), nos Pescadores (Raul Brandão e o já citado Santareno, entre outros), nos Emigrantes (Ferreira de Castro e Migueis) e até na poesia (Pessoa, Torga, Sophia).
Voltando ao fiel amigo, começámos a pescá-lo na Terra Nova há mais de 500 anos. Em 1500 eram tantos os cardumes e tão grande o tamanho dos peixes, que se dizia que nem as naus podiam navegar à vontade. Muito estará ainda por contar sobre essa faina longínqua. Muito nos teriam a dizer os pescadores ainda vivos. Sobretudo os que pescaram à linha e à zagaia, embarcaram em velhos lugres de madeira, enfrentaram o trabalho escravo e conheceram as miseráveis condições de alojamento a bordo.
Força amigo Óscar. É preciso mostrar às novas gerações o que era essa vida de miséria a bordo, a saga da luta contra o mar, a névoa e o gelo, a monotonia dos dias sem pesca e a miséria dos salários, a saudade das notícias da família (...o carteiro não tocava nenhuma vez por aquelas bandas), a faca da saudade atravessada na garganta.
Sim, é preciso iluminar tudo isto. Não tanto para exaltar o passado ou os heróis desta gesta ainda envoltos em penumbra, mas mais para reflorir o futuro que se deseja liberto, para os jovens de hoje e amanhã, de todas essas tormentas.
Boa tarde.
Gostaria imenso de adquirir o boletim da ADERAV nº 13. Sabe por acaso dizer-me a melhor forma de o fazer?
Atentamente,
www.caxinas-a-freguesia.blogs.sapo.pt
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