domingo, 24 de maio de 2009

Campos de trigo para sempre

Paulo, conhecerás tão bem como eu esta fórmula de Ricoeur, que assenta numa suspeição sistemática dos discursos, aos quais é negada a diáfana beleza do seu manto de racionalidade: o que dizes não é o que pareces dizer, nem sequer o que julgas dizer. E também saberás que nas relações entre o autor e o texto, este último, como assinala Arnaldo Saraiva, repete frequentemente o sofisma do tebano que afirmou: todos os tebanos são mentirosos.

Pois bem: a inegável qualidade e a beleza desarmante de Um campo onde cresça trigo, obrigam a que te confesse o seguinte: o meu modesto comentário ao texto Morrer em nome da pátria – o que é isso?, foi como que um gesto congelado – diria fingido e mentiroso, embora verdadeiro na sua manifestação – que pouco tem a ver com o que deveras sinto e penso sobre noções como pátria, centro e periferia, guerra e violência. As interrogações que coloquei nesse comentário foram a melhor forma que encontrei para assumir o papel de advogado do diabo.

O teu texto indiciava mais, e eu queria mais. Sabendo-te pesquisador de águas profundas, ao contrário de tantos outros que andam à tona da água para mais facilmente poderem ser iluminados pelos holofotes da publicidade, restava-me lançar o anzol com isco bem nutrido e esperar que o tal pesquisador, um tanto inadvertido e curioso, se dignasse vir à superfície para provar da guloseima. E foi o que aconteceu, Paulo. Brindaste-nos com Um campo onde cresça trigo, para mim o melhor que veio de ti, do muito bom e quase sempre denso que de ti tenho lido.

Vou ainda confessar outras coisas: a primeira leitura do texto foi apressada, em diagonal, por força das circunstâncias do momento. Mas ao lê-lo qualquer coisa cintilou dentro de mim. O primeiro gesto foi imprimi-lo, como se tivesse receio de perder algo de muito raro, burilado até atingir a limpidez do cristal. A seguir, fiquei um tanto aturdido e até embasbacado, por aludires ao facto do texto poder ser entendido como uma co-resposta, como que escrito a duas mãos. Não, Paulo, a notável qualidade do texto cabe-te por inteiro, o seu a seu dono. A seguir, pensei para com os meus botões: um texto com tanta beleza interior, tão carregado de sentido (s) e de significado (s), que de algum modo me é dirigido embora o seja também a todo a gente, tem de encontrar algum eco. Mas dizer o quê, quando tudo foi já tão bem dito.? Acrescentar o quê? E a primeira reacção foi de incapacidade para esboçar qualquer comentário, o que me levou a escrever ao lado do texto impresso: o Paulo e o Tiago – sim, também apreciei o comentário do Tiago – estão quase a atingir o Nirvana...

Eis-me, pois, na difícil missão de arriscar um comentário, meras impressões de leitura de um texto notável, que subscrevo por inteiro e não considero – longe disso – “da ordem do delírio místico” ou do “delírio utópico”. Substituiria delírio por utopia, naquele nobre sentido do que sabemos não ser realizável hoje mas possível amanhã, mesmo que se trate de um amanhã longínquo. Mesmo sabendo que a utopia parece naufragar nestes anos de chumbo em que os sonhos da humanidade são amortalhados. Porque o que importa, afinal, é não o resultado finalista, a teleologia, mas a capacidade de nos pormos a caminho para qualquer coisa, como certeiramente referes. Se o ousarmos fazer, sem calculismos estreitos e oportunistas, a humanidade só terá a ganhar com isso.


Um campo onde cresça o trigo é, antes de mais, um texto que recusa enfileirar naquilo que é a marca mais profunda do homem contemporâneo: a fuga diante do acto de pensar. É uma homenagem de fidelidade ao homem, mas também uma reacção contra as tendências que o diminuem ou amesquinham. É um hino em louvor do questionamento, do pensar com (e em) liberdade, com rigor e sentido crítico. Desvenda-nos, também, ao aludir à nossa condição de “absolutamente sós”, como é possível ser fecunda a experiência do silêncio em sociedades onde a comunicação nos é cada vez mais imposta.

Também eu, Paulo, acredito no que está para além dos factos e no seu carácter provisório. Em história, há muito que as análises positivistas caíram em desuso. Nos dias que correm, as estruturas de pensamento e significado simbólico, por exemplo, são parte integrante de tudo o que conhecemos e designamos por história. Hoje reivindica-se uma abordagem mais diversificada desta disciplina. Os recursos à literatura, à teoria crítica, à antropologia ou à sociologia, por exemplo, tornam os historiadores mais inovadores e conscientes dos seus próprios postulados. Isto, aliás, nada tem de novo. Já no longínquo ano de 1961 E. H. Carr declarou que “quanto mais sociológica a história se torna, e quanto mais histórica a sociologia se torna, tanto melhor para ambas”. Tal como a filosofia, a história também questiona e tem dúvidas: nunca foi fácil e muito menos tem gerado consenso definir o que seja o poder ou as instituições, por exemplo. Sondar o que está para lá dos factos requer aquilo que o teu texto evidencia: uma leitura em profundidade, densa, que recuse o sentido comum e subverta uma leitura calmante desses factos. Assim se chega a uma diferente gramática dos sentimentos. Trata-se, como diz A. M. Hespanha, de arredar o sentido superficial e dar lugar a camadas sucessivas de sentidos subjacentes, de “recuperar a estranheza, não a familiaridade do que é dito”.

Quanto ao pacifismo de Gandhi, apesar das objecções (intencionais) que lhe coloquei, continuo a entendê-lo como um caminho de libertação, como via de uma reconciliação universal a contrapor ao actual desconcerto do mundo. Uma porta aberta para a humanidade se reconciliar consigo própria e sair da loucura. A não-violência completa era por ele definida como “a ausência total de má fé para com tudo o que existe”. Ora isto só pode significar uma espécie de triunfo final da verdade e do amor a partir da não-violência activa. Gandhi fala na força misteriosa de um ideal defendido até ao “martírio”, caldeado “no fogo do sofrimento sem ódio e malícia”. Coloca o amor e a verdade no lugar dos ódios e das guerras. É esta a força magnetizante da sua mensagem. A não-violência está longe de significar inacção ou passividade perante as diferentes formas de dominação e opressão. É isso que nos interpela e desafia. Difícil é seguir-lhe os ensinamentos: “o que paga o mal com o bem é como se tivesse conquistado o mundo”. Terá sido a palavra de verdade que ele incarnou, enquanto guia espiritual, assim como o seu incitamento à desobediência civil de milhões de indianos, a convencer o império britânico. A isto chama-se fé no homem, energia moral, dinamismo espiritual, coragem física do caminheiro, coragem na palavra e na acção. Saber apelar à melhor parte de nós mesmos, cindindo o que em nós existe de “anjo” e de “besta”, como dizia Pascal. Não é fácil trilhar estes caminhos e a experiência aí está para o provar: uma vez independente, logo a Índia se dividiu em dois países (União Indiana e Paquistão) que de imediato entraram em guerra pela disputa do estreito de Caxemira. E sabe-se como persistem os preconceitos materializados em castas, ou uma riqueza ostensiva a contrastar com a mais negra miséria. E também é certo, Paulo, quando falas de uma dignidade que os indianos teriam de reconquistar por si e não contra os ingleses, que tal se verificou: não houve violência para com os colonizadores, salvo uma ou outra excepção; mas infelizmente ela foi exercida entre os próprios indianos, por causa das divisões religiosas e étnicas, o que prova quão difícil é interiorizar no tempo curto tão nobres ideais. Apesar de os principais dirigentes indianos se reclamarem da herança espiritual de Gandhi isso não os tem inibido de aumentar de forma continuada o poderio militar e nuclear do país. Só o alastrar duma santidade colectiva semelhante à de Gandhi teria podido evitar estes paradoxos cometidos pelos que se reclamam da sua doutrina.


Num mundo onde a violência irrompe todos os dias com novos rostos, como não desejar com ardor o pacifismo e a não-violência? Como não resistir à destruição do ambiente e ao nuclear? Gandhi mostrou-nos, através do seu exemplo, as capacidades ignoradas dos seres humanos para lutar contra as grilhetas da submissão e compele-nos a meditar nas diversas possibilidades oferecidas à imaginação e à potência dos movimentos ecologistas e pacifistas, ou de consumidores, entre outros. Canalizar as nossas potências contra o poder das estruturas transnacionais parece ser a esperança que nos resta. Lutar sem violência e sem ódio parece ser o desafio mais importante para a humanidade actual. Não há guerras justas. Se todas elas se alimentam do ódio ao outro, se todas geram violência assassina colectiva, jamais podem converter-se em acto meritório. Como bem disseste, Paulo, ninguém sai vencedor duma guerra. Todos são vencidos, com mais ou menos aleijões no corpo e na alma. Em tempo de guerra as despesas militares devoram os orçamentos dos Estados. Só um mundo sem guerra e sem preparativos de guerra assegura a paz e por arrastamento uma vida livre e feliz.

A busca de um novo paradigma passa por repensarmos as categorias políticas que nos governam, num tempo em que as próprias bases em que assenta a democracia assumem cada vez mais preocupantes tiques totalitários. Há excesso de ideologia nos sistemas partidários, entendida como sistema de ideias e de sentimentos, duplo instrumento de representação e de transformação que visa legitimar a pretensão partidária de conduzir a formação social. Ora, como lembra Pierre Bourdieu, o campo político apresenta um grau cada vez maior de fechamento, segregação ou isolamento face ao conjunto da sociedade. Há uma casta de profissionais da persuasão ideológica, que acumula relações de poder, de força e de dominância, a entreter com o debate-espectáculo a imensa legião de profanos que cada vez mais deles se distancia embora, na altura certa, os continue a legitimar com o seu voto.

Compreender as coisas para as transformar, eis do que se trata. Criar uma comunidade esclarecida, com sentido crítico e sentimento de grupo, onde seja possível articular as diferenças, eis uma possível alternativa ao marasmo reinante. Será “a comunidade que vem” a utopia em que precisamos de acreditar? Mesmo reconhecendo a falência da mais planetária utopia do nosso tempo (a redenção marxista) e os estragos que ela provocou no seu sentido heurístico e no seu valor de uso, acredito, como tu, que as utopias estão sempre a acontecer. E só porque umas vezes são invisíveis e outras afloram em “pequenas irrupções”, isso não pode levar-nos a esmorecer, ou à tentação do desânimo: convém lembrar que os grandes incêndios resultam quase sempre de combustões lentas e subterrâneas...

Quanto ao inferno que resulta do facto de estarmos juntos neste mundo, acrescentaria à receita de Italo Calvino para o evitar (reconhecer, no meio dele, quem e o que não é inferno) a fórmula não menos sábia de Eduardo Lourenço: não prometer paraísos, que são a mais segura porta para os infernos que nunca deixou de haver.

Paulo: se não for muito atrevimento, deixa-me partilhar contigo, e já agora com o Tiago, que parece afinar pelo mesmo diapasão, a caminhada rumo à “comunidade que vem”. É que, reparo agora, também sinto que estou quase a atingir o Nirvana...

1 comentário:

Anónimo disse...

Elogios imerecidos à parte, o teu texto é bem a co-resposta de que falava. Digamos que o que o meu texto intui o teu vê.

PC