quarta-feira, 20 de maio de 2009

Um campo onde cresça trigo


Carlos, perdoa que traga para a ribalta sob a forma de post o que deveria, talvez, ser apenas um comentário ao teu último comentário. Mas um comentário a um comentário já me parece argumentação e eu queria a todo o custo fugir a isso. Prefiro pensar este texto como uma co-resposta (uma parte da resposta é tua) a uma inquietude de ambos. Como penso que essa inquietude não é apenas de nós os dois, decidi deixar as traseiras e trazê-la para a frente, para a praça pública da Palhaça.

Ontem mesmo, ouvindo as notícias sobre o que se passa no Paquistão (o apoio dos líderes religiosos moderados islâmicos ao governo paquistanês na luta contra os talibã) pensei como é difícil sustentar o que apresentei aqui (seria: já que não o quis sustentar verdadeiramente, ainda que a linguagem me traia). Quando são os próprios muçulmanos a considerarem os talibã radicais, que se há-de fazer?...

Em nome de um orgulho pessoal, eu poderia desmontar este exemplo por mim próprio dado, expondo as contradições que existem entre «ser moderado» e «lutar contra», quando isso significa matar centenas de pessoas. E, naturalmente, acrescentar a isto a objecção (que foi a da Resistência francesa ou da Resistência timorense) de que «valores mais altos se levantam» em alguns momentos cruciais da História. Conheço razoavelmente as regras da Lógica e da Retórica, para poder prolongar uma disputa com seriedade. Acontece que a mera argumentação não me deixa satisfeito. Sempre que caio na tentação da argumentação, apetece-me abandonar o tabuleiro; sinto que traio algo muito mais importante. Será falta de humildade?

Tenho tentado pensar as aporias do debate de ideias, como sabes. (Quem quiser ver pode consultar as minhas reflexões aqui e aqui.) A verdade é que duvido demasiadas vezes da fecundidade da argumentação; acredito cada vez mais na fecundidade das palavras de alguns poetas e romancistas, nas palavras que brotam da condição de «absolutamente sós» (Maria Gabriela Llansol) que todos somos. Recentemente estive no Parlamento e aquilo a que assisti foi tudo menos uma luta pelo Bem Comum. No debate nunca chegou o momento dos consensos ou das concessões. Todos estavam muito interessados em marcar o seu campo ideológico e hipotéticas cedências não fariam senão parte do léxico da estratégia partidária. Ganhou, claro, o mais forte, o partido do Governo. Mas ganhou o quê? Nem deputados, nem Governo, nem aqueles que representam ganharam o que quer que seja. Perderam menos, talvez. Tal como aqueles que sobrevivem à guerra, aleijados por fora ou por dentro.


Sendo o debate absolutamente necessário para a democracia, um aprofundamento da democracia parece conduzir-nos a algo bem diferente dos resultados da simples polémica partidária. De resto, as tuas dúvidas são as minhas. Mas o pacifismo não foi suficientemente testado, para poder ser negado. Curiosamente, no discurso que conduziu Gandhi ao que veio a ser, ele falava em auto-determinação dos indianos em termos de uma dignidade que eles teriam de reconquistar por si e não contra os ingleses. Seja como for, o pacifismo de Gandhi ou qualquer pacifismo também não é a meta, mas um pôr-se a caminho para outra coisa; é uma vereda que se abre (e que se julgava não ser possível). Vereda para onde, dando para quê? É uma intuição muito vaga o que tenho para expor, mas na qual estou disposto a trabalhar. Giorgio Agamben, já citado, fala nela como «comunidade que vem». Virginia Woolf, abençoada por uma linguagem cem vezes mais rigorosa que a dos filósofos, esboça já essa comunidade, com frases como: «somos membros uns dos outros», «fazemos parte de um todo», «representamos papéis diferentes mas somos o mesmo», «penso ter compreendido que a natureza também tem uma tarefa a desempenhar», «não acham que nos devemos unir?».

Ora, isto merece um sorriso (amarelo? sardónico? complacente?). Porque isto já não é da ordem dos princípios, como dizes, é, isso sim, da ordem do delírio místico! Acontece que, por debaixo dos factos, acredito que existe algo que está no anseio mais profundo do ser humano e que não é apenas fruto do nosso cérebro reptiliano, aquele que, como sabes, ficou de quando éramos répteis para continuarmos a competir e a sobreviver. Porém, como também sabes Carlos, os factos (históricos), bem como os belos princípios, são provisórios.

Continuo numa posição incómoda, para aquilo que quero aqui dizer. Escrever, enquanto enunciação ou afirmação de algo, é estabelecer um lugar, logo uma posição. Mas eu quereria desocupar esse lugar de exposição na mira de alguém, nem ser tido como algo no campo. Eu quereria que o campo se mostrasse a si próprio. Eu nem quereria defender o campo, que não é minha propriedade, nem de ninguém, e é de todos.


O que eu estou a querer dizer são coisas pouco precisas e dificilmente aceitáveis, para alguém realista, tais como: «Os talibã são uma força hedionda, e os nazis eram-no. Mas eles são fruto de um ressentimento: a repetição do medo. E o medo previne-se; o combate só vai criar mais medo.» De facto acredito que andamos todos ao mesmo, só que andamos às apalpadelas. Pelo caminho ferimo-nos e ferimos; e ferimos tanto mais nos sintamos feridos. «Todo o homem é uma criança ferida» dizia o Irmão Roger, da comunidade ecuménica de Taizé. Acabou com uma faca cravada de uma rapariga que certamente tinha uma ferida muito grande no cérebro.

Mas a ferida no cérebro é de todos. Há duas forças antagónicas em nós: a vontade de poder (dominar) e a vontade de pujança (criar). Não nego esse antagonismo. Como poderia negar o que todos os dias experimentamos? Mas tem-se dado muito pouco espaço à vontade de pujança (os políticos, então, temem-na que é uma coisa séria…). Trabalhar para formarmos apátridas (que no entanto habitam uma Casa Comum) e a-centrados (que reconhecem a sua e a fragilidade do outro e se investem na exposição e no cuidado) deveria ser o nosso empenho – o nosso perigo, se quiseres. Mais do que em factos ou em princípios acredito que é possível trabalhar num campo em que cresça trigo e não cadáveres ou refugiados. É a única fé que me resta na humanidade. Sim, prefiro a esperança ao realismo. Obama chama a este «cinismo». Obama que, já agora, é apenas um homem. Mas um homem, dizem-nos as maravilhas que ele criou e aquilo que ele amou, não é apenas um homem.

Terminaria, pois, com uma citação de Italo Calvino, o final da sua obra As cidades invisíveis: «- O inferno dos vivos não é uma coisa que virá a existir; se houver um, é o que já está aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que nós formamos ao estarmos juntos. Há dois modos para não o sofrermos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não o vermos. O segundo é arriscado e exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer, no meio do inferno, quem e o que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe lugar.»

Paulo Carvalho

4 comentários:

TPC disse...

O teu texto, que corre o risco de ser apelidado de «delírio utópico», está muito distante dos discursos que se ouvem nas arenas políticas e mesmo cívicas. É quase da ordem do místico, do poético. Mesmo tão sábio, é quase tão naïf de tão esperançoso e idílico. E ainda bem que o é. Inspira-me.

Vai além da opinião, mas pouca gente parece querer ir além dela ou dos argumentos, porque parece que é da natureza humana a criação de conflitos e divisões (esquerda/direita, homem/mulher, hierarquias sociais, etc.).

O pacifismo de que falas seria um tédio para muita gente. Os conflitos começam no campo dos argumentos e termina, nos casos mais extremos, em irracionalidade, violência, guerra, sangue, morte - numa distopia que para muitos é vitória (aí, parecemos ainda primitivos).

Ouvimos falar, circunstancialmente, em «pós-guerra». Tu desejas - e eu também -uma humanidade «PÓS-GUERRAS». Mas ainda há alguns poderosos a acharem as guerras legítimas... O que podemos fazer contra esse pensamento?

Recusamos o etnocentrismo, o patriocentrismo, a ideia de superioridade de x religião sobre y (mesmo não abraçando nenhuma), mas vês muita gente a subscrever que, afinal, não somos assim tão diferentes, se nos colocarmos no lugar do outro?

Na guerra, por exemplo, os inimigos são meras abstracções. Lutam pelo mesmo (sobrevivência e vitória), contra o mesmo (os do outro lado). Pensam idêntico: erradicar/fragilizar o outro.

Não desisto e continuo a esperar, como tu, mas - e aqui cínico ou realista - não creio que todos nos tornemos num Gandhi nos próximos séculos. Se estivéssemos a caminho, o nome de Gandhi já tinha sido esquecido, para nosso bem. Obama foi a última pessoa que o fez lembrar, mas não esquecer. Talvez haja mais anónimos por aí a fazer o mesmo, mas deles poucos falam...

Um abraço utópico.

Anónimo disse...

Tiago, ainda bem que o texto te inspira, mesmo ridículo e ingénuo. Mas cautela com inspirações venenosas. Se ele é um texto escapista, como pareces sugerir, ou apenas utópico, o melhor é manteres-te ao largo. Não vás em falsas promessas, chamem-se elas Ghandi ou Obama. Porque eles são apenas homens, ambos com contradições. Enquanto promessas. Mas: e enquanto adquiridos?

Repara: as categorias do pensamento ou as terminologias técnicas permitem-nos pensar - mas também nos impedem de o fazer: facilmente o pensamento se torna mecânico, previsível na justeza do dente com a calha. A diferença entre uma engrenagem e uma roda livre torna-se então muito pequena. Outro é o pensamento orgânico. Fragmentário, elíptico, este responde como pode (e nem sempre pode) à constante mutação da vida, adquirindo, por vezes, um aspecto linguístico pouco inteligível, quase ilógico. (Não haverá certamente pensamento orgânico puro, porque as células vivas necessariamente morrem e tendem à cristalização, mas poderás encontrá-lo em autores portugueses como Herberto Helder, Luíza Neto Jorge, Nuno Bragança, Maria Velho da Costa, teolinda Gersão, Rui Nunes e, muito, Maria Gabriela Llansol.) Ora «utopia» e «distopia» são categorias que, com facilidade, esvaziam o sentido do movimento – ainda que desejando dar-lhe sentido.

Aquilo de que falo no texto não é utópico. Já existe. Já acontece. O que acontece fora da contabilidade da História e do alcance do Poder e dos Media - «a restante vida», chama-lhe a Llansol – também é vida, também acontece. É até, não obstante o anonimato, a grande parcela da vida humana! Que pequena é a fé daquele que só acredita naquilo que vê, diria Cristo, ou naquilo que lhe dão a ver, acrescentaria eu…

Mas cautela também com a fé. Os pressupostos positivistas e marxistas do séc. XIX, segundo os quais a humanidade haveria de progredir linearmente (ainda que com convulsões), graças à ciência e às revoluções socialistas, até atingirem um Estado Utópico – e de uma vez por todas! – escondem aos seus críticos – que laboram na mesmíssima lógica e por isso são nostálgicos – que, afinal, as utopias estão sempre a acontecer. Sim, Tiago, as utopias estão sempre a acontecer - só que em segredo. Na contabilidade da História, não pesam; para o Poder e para os Media são invisíveis; mas são pequenas erupções, íntimas, que por todo mundo acontecem neste momento. Sempre que há mais alegria, ou uma alegria maior.

Compreendo que isto não seja muito entusiasmante para quem desesperou de uma humanidade vivendo em paz perpétua. Mas «dar lugar» - e é isso a utopia, o lugar que ainda não é, mas que chama quem vai a caminho a ser mais – é permitir que nasça. E é preciso estar nesse esforço. Isso é ética, não política.

P.S. Tudo isto tem que ver com poesia. Poesia, atenção, que não serve só para embelezar, nem só para denunciar (lembro-me de Neruda), serve para transformar… A palavra provém de «poiésis», do grego, «fazer».

Anónimo disse...

Post-scriptum: o anónimo sou eu, Paulo Carvalho.

ana conda disse...

E no entanto a Virgínia matou-se.
Há o que se diz e o que se esconde.
:(