sexta-feira, 29 de maio de 2009

MOUVA mostra 22 Fotografias

Na sequência de um repto lançado na primeira edição do MOUVA, o Coreto, coração da Praça de São Pedro, vai dar guarida, a partir de domingo, a uma mostra-viagem de fotografias, subordinada ao tema das Praças. Lado a lado, poderá ver praças portuguesas ou além-fronteiras, praças rústicas ou urbanas (até 28 de Junho, aos fins-de-semana). São 22 fotografias de vários autores que quiseram partilhar os seus olhares.

Mais informações clique aqui

MOUVA 26 de Abril - Impressões

MOUVA é já DOMINGO, 31 DE MAIO. ESTAMOS À SUA ESPERA

terça-feira, 26 de maio de 2009

Votar ou não votar nas europeias


Para responder de modo afirmativo à questão é necessário pressupor a boa-fé dos políticos. E isto que parece óbvio deixa de o ser se levarmos a sério a desconfiança que quotidianamente manifestamos e o descrédito a que a classe política chegou. E, contudo, sem essa confiança básica de que o político eleito servirá o Bem Comum que sentido faz votar? Um voto que se baseasse apenas no dever cívico de votar, no hábito ou na fidelidade acrítica a uma cor partidária, sem pressupor que o político está lá para servir, seria como passar um cheque em branco - quem nos garantiria que o receptor não é criminoso? É certo que todo o voto acarreta risco, mas, em princípio, o conhecimento prévio do candidato dá algumas garantias. Mas mesmo que as não tenha em absoluto e já não acredite no sistema partidário, talvez o eleitor vote porque acredita, apesar de tudo, no regime democrático. Ora, isto conduzir-nos-ia a uma pergunta lancinante: poderemos confiar no regime democrático sem confiar nos políticos que nos representam?

Se vamos votar, acreditamos portanto nos políticos. Mas - e quando são os próprios políticos que alinham no discurso da desconfiança em relação aos políticos e à política? Pois não diz um cartaz - o do CDS/PP: «Não andamos a brincar aos políticos»? Ora, segundo esse cartaz, podem eles não andar: mas alguém anda! E não diz outro cartaz - o do PSD: «As famílias portuguesas acima das famílias partidárias»? Mas então há quem faça o contrário: pois se esse é o traço distintivo desse partido, se essa é uma razão válida para que o escolhamos... Escolhi os cartazes destes partidos; podia ter escolhido o de outros e ter feito reflexões semelhantes. O dilema resolve-se, no entanto, se acreditarmos pelo menos na bondade das intenções dos políticos em quem votamos.

Mas ainda que creiamos na bondade das intenções destes ou daqueles políticos, estas eleições são para a Europa e portanto é legítimo perguntar qual o verdadeiro poder político dos nossos deputados mo Parlamento Europeu? Podem ir, de facto, contra a sua família política na Europa e conseguir alguma coisa? Alguém acredita que as boas intenções conseguem enguiçar a máquina diabólica em funcionamento dos países mais poderosos? Pode-se alegar que, acoplada à rectidão das intenções vem a capacidade negocial, a estratégia (casamento estranho, convenhamos…). O deputado português poderia, então, vender a alma ao Diabo, mas conseguiria, no fim, «o menos mau dos resultados». «Em nome do interesse nacional», garante Paulo Rangel que assina por baixo. E se nenhum dos papéis que lhe for parar às mãos for do interesse nacional? Assinará? E a sua família política, assinará? Poderá fazer propostas, o deputado, é certo. E se a sua proposta for chumbada?... É caso para perguntar: para quando uma política diferente da propaganda e da querela? Do outro lado do atlântico parece que alguém se decidiu a mudar alguma coisa, por cá parece que os políticos ainda não aprenderam…

Resumindo: votar hoje é mais do que nunca um acto de fé. Fé na lei das probabilidades, mais do que nos políticos, talvez. E não votar ou votar nulo? Seria esse gesto lido e reconhecido como um voto de protesto? Um aviso aos políticos de que deverão mudar profundamente a sua atitude e as suas práticas?

Paulo Carvalho

Uma morte e uma vida



Na semana que morre João Bernard da Costa o realizador João Salaviza com "Arena" ganha a Palma de Ouro. O nosso País é feito destes contrastes.

Gostos destas surpresas logo pela manhã



Nada que já não tenhamos visto mas fica o apontamento. Bons sorrisos.

domingo, 24 de maio de 2009

Campos de trigo para sempre

Paulo, conhecerás tão bem como eu esta fórmula de Ricoeur, que assenta numa suspeição sistemática dos discursos, aos quais é negada a diáfana beleza do seu manto de racionalidade: o que dizes não é o que pareces dizer, nem sequer o que julgas dizer. E também saberás que nas relações entre o autor e o texto, este último, como assinala Arnaldo Saraiva, repete frequentemente o sofisma do tebano que afirmou: todos os tebanos são mentirosos.

Pois bem: a inegável qualidade e a beleza desarmante de Um campo onde cresça trigo, obrigam a que te confesse o seguinte: o meu modesto comentário ao texto Morrer em nome da pátria – o que é isso?, foi como que um gesto congelado – diria fingido e mentiroso, embora verdadeiro na sua manifestação – que pouco tem a ver com o que deveras sinto e penso sobre noções como pátria, centro e periferia, guerra e violência. As interrogações que coloquei nesse comentário foram a melhor forma que encontrei para assumir o papel de advogado do diabo.

O teu texto indiciava mais, e eu queria mais. Sabendo-te pesquisador de águas profundas, ao contrário de tantos outros que andam à tona da água para mais facilmente poderem ser iluminados pelos holofotes da publicidade, restava-me lançar o anzol com isco bem nutrido e esperar que o tal pesquisador, um tanto inadvertido e curioso, se dignasse vir à superfície para provar da guloseima. E foi o que aconteceu, Paulo. Brindaste-nos com Um campo onde cresça trigo, para mim o melhor que veio de ti, do muito bom e quase sempre denso que de ti tenho lido.

Vou ainda confessar outras coisas: a primeira leitura do texto foi apressada, em diagonal, por força das circunstâncias do momento. Mas ao lê-lo qualquer coisa cintilou dentro de mim. O primeiro gesto foi imprimi-lo, como se tivesse receio de perder algo de muito raro, burilado até atingir a limpidez do cristal. A seguir, fiquei um tanto aturdido e até embasbacado, por aludires ao facto do texto poder ser entendido como uma co-resposta, como que escrito a duas mãos. Não, Paulo, a notável qualidade do texto cabe-te por inteiro, o seu a seu dono. A seguir, pensei para com os meus botões: um texto com tanta beleza interior, tão carregado de sentido (s) e de significado (s), que de algum modo me é dirigido embora o seja também a todo a gente, tem de encontrar algum eco. Mas dizer o quê, quando tudo foi já tão bem dito.? Acrescentar o quê? E a primeira reacção foi de incapacidade para esboçar qualquer comentário, o que me levou a escrever ao lado do texto impresso: o Paulo e o Tiago – sim, também apreciei o comentário do Tiago – estão quase a atingir o Nirvana...

Eis-me, pois, na difícil missão de arriscar um comentário, meras impressões de leitura de um texto notável, que subscrevo por inteiro e não considero – longe disso – “da ordem do delírio místico” ou do “delírio utópico”. Substituiria delírio por utopia, naquele nobre sentido do que sabemos não ser realizável hoje mas possível amanhã, mesmo que se trate de um amanhã longínquo. Mesmo sabendo que a utopia parece naufragar nestes anos de chumbo em que os sonhos da humanidade são amortalhados. Porque o que importa, afinal, é não o resultado finalista, a teleologia, mas a capacidade de nos pormos a caminho para qualquer coisa, como certeiramente referes. Se o ousarmos fazer, sem calculismos estreitos e oportunistas, a humanidade só terá a ganhar com isso.


Um campo onde cresça o trigo é, antes de mais, um texto que recusa enfileirar naquilo que é a marca mais profunda do homem contemporâneo: a fuga diante do acto de pensar. É uma homenagem de fidelidade ao homem, mas também uma reacção contra as tendências que o diminuem ou amesquinham. É um hino em louvor do questionamento, do pensar com (e em) liberdade, com rigor e sentido crítico. Desvenda-nos, também, ao aludir à nossa condição de “absolutamente sós”, como é possível ser fecunda a experiência do silêncio em sociedades onde a comunicação nos é cada vez mais imposta.

Também eu, Paulo, acredito no que está para além dos factos e no seu carácter provisório. Em história, há muito que as análises positivistas caíram em desuso. Nos dias que correm, as estruturas de pensamento e significado simbólico, por exemplo, são parte integrante de tudo o que conhecemos e designamos por história. Hoje reivindica-se uma abordagem mais diversificada desta disciplina. Os recursos à literatura, à teoria crítica, à antropologia ou à sociologia, por exemplo, tornam os historiadores mais inovadores e conscientes dos seus próprios postulados. Isto, aliás, nada tem de novo. Já no longínquo ano de 1961 E. H. Carr declarou que “quanto mais sociológica a história se torna, e quanto mais histórica a sociologia se torna, tanto melhor para ambas”. Tal como a filosofia, a história também questiona e tem dúvidas: nunca foi fácil e muito menos tem gerado consenso definir o que seja o poder ou as instituições, por exemplo. Sondar o que está para lá dos factos requer aquilo que o teu texto evidencia: uma leitura em profundidade, densa, que recuse o sentido comum e subverta uma leitura calmante desses factos. Assim se chega a uma diferente gramática dos sentimentos. Trata-se, como diz A. M. Hespanha, de arredar o sentido superficial e dar lugar a camadas sucessivas de sentidos subjacentes, de “recuperar a estranheza, não a familiaridade do que é dito”.

Quanto ao pacifismo de Gandhi, apesar das objecções (intencionais) que lhe coloquei, continuo a entendê-lo como um caminho de libertação, como via de uma reconciliação universal a contrapor ao actual desconcerto do mundo. Uma porta aberta para a humanidade se reconciliar consigo própria e sair da loucura. A não-violência completa era por ele definida como “a ausência total de má fé para com tudo o que existe”. Ora isto só pode significar uma espécie de triunfo final da verdade e do amor a partir da não-violência activa. Gandhi fala na força misteriosa de um ideal defendido até ao “martírio”, caldeado “no fogo do sofrimento sem ódio e malícia”. Coloca o amor e a verdade no lugar dos ódios e das guerras. É esta a força magnetizante da sua mensagem. A não-violência está longe de significar inacção ou passividade perante as diferentes formas de dominação e opressão. É isso que nos interpela e desafia. Difícil é seguir-lhe os ensinamentos: “o que paga o mal com o bem é como se tivesse conquistado o mundo”. Terá sido a palavra de verdade que ele incarnou, enquanto guia espiritual, assim como o seu incitamento à desobediência civil de milhões de indianos, a convencer o império britânico. A isto chama-se fé no homem, energia moral, dinamismo espiritual, coragem física do caminheiro, coragem na palavra e na acção. Saber apelar à melhor parte de nós mesmos, cindindo o que em nós existe de “anjo” e de “besta”, como dizia Pascal. Não é fácil trilhar estes caminhos e a experiência aí está para o provar: uma vez independente, logo a Índia se dividiu em dois países (União Indiana e Paquistão) que de imediato entraram em guerra pela disputa do estreito de Caxemira. E sabe-se como persistem os preconceitos materializados em castas, ou uma riqueza ostensiva a contrastar com a mais negra miséria. E também é certo, Paulo, quando falas de uma dignidade que os indianos teriam de reconquistar por si e não contra os ingleses, que tal se verificou: não houve violência para com os colonizadores, salvo uma ou outra excepção; mas infelizmente ela foi exercida entre os próprios indianos, por causa das divisões religiosas e étnicas, o que prova quão difícil é interiorizar no tempo curto tão nobres ideais. Apesar de os principais dirigentes indianos se reclamarem da herança espiritual de Gandhi isso não os tem inibido de aumentar de forma continuada o poderio militar e nuclear do país. Só o alastrar duma santidade colectiva semelhante à de Gandhi teria podido evitar estes paradoxos cometidos pelos que se reclamam da sua doutrina.


Num mundo onde a violência irrompe todos os dias com novos rostos, como não desejar com ardor o pacifismo e a não-violência? Como não resistir à destruição do ambiente e ao nuclear? Gandhi mostrou-nos, através do seu exemplo, as capacidades ignoradas dos seres humanos para lutar contra as grilhetas da submissão e compele-nos a meditar nas diversas possibilidades oferecidas à imaginação e à potência dos movimentos ecologistas e pacifistas, ou de consumidores, entre outros. Canalizar as nossas potências contra o poder das estruturas transnacionais parece ser a esperança que nos resta. Lutar sem violência e sem ódio parece ser o desafio mais importante para a humanidade actual. Não há guerras justas. Se todas elas se alimentam do ódio ao outro, se todas geram violência assassina colectiva, jamais podem converter-se em acto meritório. Como bem disseste, Paulo, ninguém sai vencedor duma guerra. Todos são vencidos, com mais ou menos aleijões no corpo e na alma. Em tempo de guerra as despesas militares devoram os orçamentos dos Estados. Só um mundo sem guerra e sem preparativos de guerra assegura a paz e por arrastamento uma vida livre e feliz.

A busca de um novo paradigma passa por repensarmos as categorias políticas que nos governam, num tempo em que as próprias bases em que assenta a democracia assumem cada vez mais preocupantes tiques totalitários. Há excesso de ideologia nos sistemas partidários, entendida como sistema de ideias e de sentimentos, duplo instrumento de representação e de transformação que visa legitimar a pretensão partidária de conduzir a formação social. Ora, como lembra Pierre Bourdieu, o campo político apresenta um grau cada vez maior de fechamento, segregação ou isolamento face ao conjunto da sociedade. Há uma casta de profissionais da persuasão ideológica, que acumula relações de poder, de força e de dominância, a entreter com o debate-espectáculo a imensa legião de profanos que cada vez mais deles se distancia embora, na altura certa, os continue a legitimar com o seu voto.

Compreender as coisas para as transformar, eis do que se trata. Criar uma comunidade esclarecida, com sentido crítico e sentimento de grupo, onde seja possível articular as diferenças, eis uma possível alternativa ao marasmo reinante. Será “a comunidade que vem” a utopia em que precisamos de acreditar? Mesmo reconhecendo a falência da mais planetária utopia do nosso tempo (a redenção marxista) e os estragos que ela provocou no seu sentido heurístico e no seu valor de uso, acredito, como tu, que as utopias estão sempre a acontecer. E só porque umas vezes são invisíveis e outras afloram em “pequenas irrupções”, isso não pode levar-nos a esmorecer, ou à tentação do desânimo: convém lembrar que os grandes incêndios resultam quase sempre de combustões lentas e subterrâneas...

Quanto ao inferno que resulta do facto de estarmos juntos neste mundo, acrescentaria à receita de Italo Calvino para o evitar (reconhecer, no meio dele, quem e o que não é inferno) a fórmula não menos sábia de Eduardo Lourenço: não prometer paraísos, que são a mais segura porta para os infernos que nunca deixou de haver.

Paulo: se não for muito atrevimento, deixa-me partilhar contigo, e já agora com o Tiago, que parece afinar pelo mesmo diapasão, a caminhada rumo à “comunidade que vem”. É que, reparo agora, também sinto que estou quase a atingir o Nirvana...

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Um campo onde cresça trigo


Carlos, perdoa que traga para a ribalta sob a forma de post o que deveria, talvez, ser apenas um comentário ao teu último comentário. Mas um comentário a um comentário já me parece argumentação e eu queria a todo o custo fugir a isso. Prefiro pensar este texto como uma co-resposta (uma parte da resposta é tua) a uma inquietude de ambos. Como penso que essa inquietude não é apenas de nós os dois, decidi deixar as traseiras e trazê-la para a frente, para a praça pública da Palhaça.

Ontem mesmo, ouvindo as notícias sobre o que se passa no Paquistão (o apoio dos líderes religiosos moderados islâmicos ao governo paquistanês na luta contra os talibã) pensei como é difícil sustentar o que apresentei aqui (seria: já que não o quis sustentar verdadeiramente, ainda que a linguagem me traia). Quando são os próprios muçulmanos a considerarem os talibã radicais, que se há-de fazer?...

Em nome de um orgulho pessoal, eu poderia desmontar este exemplo por mim próprio dado, expondo as contradições que existem entre «ser moderado» e «lutar contra», quando isso significa matar centenas de pessoas. E, naturalmente, acrescentar a isto a objecção (que foi a da Resistência francesa ou da Resistência timorense) de que «valores mais altos se levantam» em alguns momentos cruciais da História. Conheço razoavelmente as regras da Lógica e da Retórica, para poder prolongar uma disputa com seriedade. Acontece que a mera argumentação não me deixa satisfeito. Sempre que caio na tentação da argumentação, apetece-me abandonar o tabuleiro; sinto que traio algo muito mais importante. Será falta de humildade?

Tenho tentado pensar as aporias do debate de ideias, como sabes. (Quem quiser ver pode consultar as minhas reflexões aqui e aqui.) A verdade é que duvido demasiadas vezes da fecundidade da argumentação; acredito cada vez mais na fecundidade das palavras de alguns poetas e romancistas, nas palavras que brotam da condição de «absolutamente sós» (Maria Gabriela Llansol) que todos somos. Recentemente estive no Parlamento e aquilo a que assisti foi tudo menos uma luta pelo Bem Comum. No debate nunca chegou o momento dos consensos ou das concessões. Todos estavam muito interessados em marcar o seu campo ideológico e hipotéticas cedências não fariam senão parte do léxico da estratégia partidária. Ganhou, claro, o mais forte, o partido do Governo. Mas ganhou o quê? Nem deputados, nem Governo, nem aqueles que representam ganharam o que quer que seja. Perderam menos, talvez. Tal como aqueles que sobrevivem à guerra, aleijados por fora ou por dentro.


Sendo o debate absolutamente necessário para a democracia, um aprofundamento da democracia parece conduzir-nos a algo bem diferente dos resultados da simples polémica partidária. De resto, as tuas dúvidas são as minhas. Mas o pacifismo não foi suficientemente testado, para poder ser negado. Curiosamente, no discurso que conduziu Gandhi ao que veio a ser, ele falava em auto-determinação dos indianos em termos de uma dignidade que eles teriam de reconquistar por si e não contra os ingleses. Seja como for, o pacifismo de Gandhi ou qualquer pacifismo também não é a meta, mas um pôr-se a caminho para outra coisa; é uma vereda que se abre (e que se julgava não ser possível). Vereda para onde, dando para quê? É uma intuição muito vaga o que tenho para expor, mas na qual estou disposto a trabalhar. Giorgio Agamben, já citado, fala nela como «comunidade que vem». Virginia Woolf, abençoada por uma linguagem cem vezes mais rigorosa que a dos filósofos, esboça já essa comunidade, com frases como: «somos membros uns dos outros», «fazemos parte de um todo», «representamos papéis diferentes mas somos o mesmo», «penso ter compreendido que a natureza também tem uma tarefa a desempenhar», «não acham que nos devemos unir?».

Ora, isto merece um sorriso (amarelo? sardónico? complacente?). Porque isto já não é da ordem dos princípios, como dizes, é, isso sim, da ordem do delírio místico! Acontece que, por debaixo dos factos, acredito que existe algo que está no anseio mais profundo do ser humano e que não é apenas fruto do nosso cérebro reptiliano, aquele que, como sabes, ficou de quando éramos répteis para continuarmos a competir e a sobreviver. Porém, como também sabes Carlos, os factos (históricos), bem como os belos princípios, são provisórios.

Continuo numa posição incómoda, para aquilo que quero aqui dizer. Escrever, enquanto enunciação ou afirmação de algo, é estabelecer um lugar, logo uma posição. Mas eu quereria desocupar esse lugar de exposição na mira de alguém, nem ser tido como algo no campo. Eu quereria que o campo se mostrasse a si próprio. Eu nem quereria defender o campo, que não é minha propriedade, nem de ninguém, e é de todos.


O que eu estou a querer dizer são coisas pouco precisas e dificilmente aceitáveis, para alguém realista, tais como: «Os talibã são uma força hedionda, e os nazis eram-no. Mas eles são fruto de um ressentimento: a repetição do medo. E o medo previne-se; o combate só vai criar mais medo.» De facto acredito que andamos todos ao mesmo, só que andamos às apalpadelas. Pelo caminho ferimo-nos e ferimos; e ferimos tanto mais nos sintamos feridos. «Todo o homem é uma criança ferida» dizia o Irmão Roger, da comunidade ecuménica de Taizé. Acabou com uma faca cravada de uma rapariga que certamente tinha uma ferida muito grande no cérebro.

Mas a ferida no cérebro é de todos. Há duas forças antagónicas em nós: a vontade de poder (dominar) e a vontade de pujança (criar). Não nego esse antagonismo. Como poderia negar o que todos os dias experimentamos? Mas tem-se dado muito pouco espaço à vontade de pujança (os políticos, então, temem-na que é uma coisa séria…). Trabalhar para formarmos apátridas (que no entanto habitam uma Casa Comum) e a-centrados (que reconhecem a sua e a fragilidade do outro e se investem na exposição e no cuidado) deveria ser o nosso empenho – o nosso perigo, se quiseres. Mais do que em factos ou em princípios acredito que é possível trabalhar num campo em que cresça trigo e não cadáveres ou refugiados. É a única fé que me resta na humanidade. Sim, prefiro a esperança ao realismo. Obama chama a este «cinismo». Obama que, já agora, é apenas um homem. Mas um homem, dizem-nos as maravilhas que ele criou e aquilo que ele amou, não é apenas um homem.

Terminaria, pois, com uma citação de Italo Calvino, o final da sua obra As cidades invisíveis: «- O inferno dos vivos não é uma coisa que virá a existir; se houver um, é o que já está aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que nós formamos ao estarmos juntos. Há dois modos para não o sofrermos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não o vermos. O segundo é arriscado e exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer, no meio do inferno, quem e o que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe lugar.»

Paulo Carvalho

domingo, 17 de maio de 2009

Morrer em nome da pátria - o que é isso?













Recentemente o Carlos trouxe para aqui o assunto. No princípio dos anos 90, andava eu por entre tumbas no cemitério da Palhaça recolhendo aquilo a que, no âmbito de um trabalho que fazia para o Museu Paroquial, chamei «poesia lapidar», quando parei diante destes versos:

Jaz aqui em campa fria
Um soldado português
Que Moçambique defendia
Com galhardia e altivez


De todos os versos recolhidos, estes eram talvez os que mais pungentemente resumiam os limites de uma vida concreta, abstendo-se, ao contrário dos das demais campas, de dar conselhos pios aos que ficavam. Em comum com os outros tinham, porém, isto: serem voz dos que ficavam.

Não sou anti-militarista pela simples razão de que ser «anti-qualquer-coisa» faria de mim, de certo modo, militarista. Não milito; o que não faz de mim necessariamente um ser amorfo em relação à guerra. Que me perdoem os mortos e os sobreviventes que acreditam no inverso, mas considero absurda toda a morte feita em nome de um território. Porque não há outro território que o comum território da crosta terrestre; e mesmo essa, sabe-se agora, não é nossa. Porque não há guerra que seja ganho ou preserve o que quer que seja. E, por isso, e para que a perda não seja irreparável, quero hoje enaltecer esse soldado da minha terra de outra forma: dando-lhe voz. Pedindo emprestadas as palavras do poeta americano Edgar Lee Masters:

KNOWLT HOHEIMER

Eu fui o primeiro fruto da batalha de Missionary Ridge.
Quando senti a bala atravessar-me o coração
desejei ter ficado em casa e ter ido preso
pelo roubo dos porcos do Curly Trenary,
em vez de ter fugido para me alistar no exército.
Mil vezes a cadeia municipal
do que jazer aqui sob esta figura alada de mármore
e um pedestal de granito
com palavras - «Pro Patria» -
que não sei o que querem dizer.

Edgar Morin: Proposta de Reforma Radical no Ensino

Edgar Morin defende"reforma radical" no ensino para acabar com "hiperespecialização" 17.05.2009 - 14h25 Simon Kamm, Agência Lusa

O filósofo e sociólogo francês Edgar Morin defende uma "reforma radical" do modelo de ensino nas universidades e escolas, salientando a necessidade de passar da actual 'hiperespecialização' para uma aprendizagem que "integre as várias áreas do conhecimento".

Edgar Morin, considerado um dos maiores pensadores vivos, defende que apenas com esta mudança de paradigma no ensino as pessoas serão "capazes de compreender e enfrentar os problemas fundamentais da humanidade, cada vez mais complexos e globais".

Em entrevista à Lusa antes da sua vinda a Lisboa para participar num colóquio promovido sexta-feira pelo Instituto Piaget sobre os problemas estruturais dos actuais modelos de ensino, o filósofo francês considera que o modelo actual leva a "negligenciar a formação integral e não prepara os alunos para mais tarde enfrentarem o imprevisto e a mudança". "Temos a necessidade de reformar radicalmente o actual modelo de ensino nas universidades e escolas secundárias. Porquê? Porque actualmente o conhecimento está desintegrado em fragmentos disjuntos no interior das disciplinas, que não estão interligadas entre si e entre as quais não existe diálogo", sublinha.


in Público


Ler notícia completa aqui

sexta-feira, 15 de maio de 2009

As Belas Vistas deste país...

Em plena campanha eleitoral, Paulo Portas - um eficaz estratega político - vai capitalizando votos com as suas declarações populares sobre casos como o do Bairro da Bela Vista (alguém sabe ao certo o que se passou ali?). O simplismo com que trata um problema de «guetização», de pelo menos 3 décadas, ajudado por alguns media que gostam de «manipulação-versão-filme-de-acção-fogo-de-vista-da-realidade», é alarmante, mas é-lhe sobretudo útil e oportuno.

A estratégia deste senhor parece-me, à minha vista, a seguinte: Alarmar e aproveitar alguns casos pontuais de desordem para destacar o seu partido, colocando-o na «vanguarda» - mediática - do combate a um certo tipo de crime, menosprezando a raíz dos problemas, confundindo o «leitor» da realidade mais distraído com equívocos e armadilhas (as fáceis generalizações e o recurso ao tema das minorias étnicas e dos imigrantes também lhe são queridos). Acredito que a sensatez de qualquer pessoa que páre um pouco para reflectir sobre estes temas a leve a uma conclusão de que, na infância, a delinquência, a prostituição e outros flagelos sociais não serão, porventura, os sonhos dos que enveredam por aí.

Imagino uma resposta do senhor a este post: este tipo ou é de uma «extrema-esquerda lírica», ou é de um PS «incompetente» ou dum «PSD mole», no que toca à sua resposta à criminalidade em «bairros problemáticos» (Conotações entre-aspas atribuídas, de facto, por Portas ao espectro político português).

Pois, responder a um problema estrutural (criado por políticas de exclusão e isolamento social) apenas com «músculos» e com repressão há-de combater alguns actos ilícitos e, especialmente, os problemas sociais [ler ironia]... Aliás, não é preciso ir ao PNR para ouvir declarações a favor da eliminação e/ou expulsão de determinadas pessoas do país ou de regresso à ideia de justiça popular. Também se pode explicar este fenómeno sem se ser formado em Sociologia.

Gostava de ver os media a mostrarem, com semelhante pujança como o fazem com o «espectáculo do terror e do crime», outras vistas destes bairros, isto é, o outro lado, onde existem artistas a fazerem trabalhos muito meritórios (caso do festival Alkantara), a solidariedade, instituições de sócio-culturais muito dinâmicas (ex: Associação Cultural Moinho da Juventude, na Cova da Moura). Gostava de «ver» menos condomínios fechados (quer de ricos, quer de pobres), que, hoje, reflectem uma sociedade fortemente dividida e fragilizada, porque excessivamente assimétrica (os responsáveis pelos tiros na chamada classe média serão mesmo os beneficiários do RSI?). Gostava de ver os políticos a debaterem, em nome do bem comum, políticas de integração e de desmantelamento de bairros sociais (como o fizeram, e bem, com o Casal Ventoso). Gostava de ver mais oportunidades (não ilusões, como as do crédito fácil a curto-prazo, nas últimas duas décadas), mais futuro, mais formação profissional e educação, mais injecção de confiança e estima, salários compatíveis com o custo de vida - para quem está dentro e fora de bairros sociais, para as crianças, os jovens, para os adultos, para os desempregados.


Algum comentário - menos lírico ou mole ou incompetente, como este - sobre as Belas Vistas do país?

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Democracia Representativa?

Deputados portugueses exercem mais por carreira do que por vocação
13.05.2009 - 08h00 Maria Lopes

Homem, entre os 40 e os 50 anos, com qualificações superiores, preferencialmente na área do Direito, com estatuto económico-social privilegiado, filiado no partido há longos anos. Este é apenas um esboço do retrato elaborado por Conceição Pequito Teixeira, docente e investigadora do Instituto de Ciências Sociais e Políticas, num novo estudo agora publicado.

Acrescente-se que espera ser reeleito, e para isso cumpre à risca disciplinas, como a de voto, que demonstram a sua lealdade ao partido. Se não se encontra na Assembleia da República neste momento é porque está no Governo, noutro cargo político ou porque aguarda ser incluído nas listas das próximas legislativas.

A autora — que ontem lançou o livro “O Povo Semi-Soberano. Partidos e Recrutamento Parlamentar em Portugal” — tentou traçar o perfil dos candidatos e deputados ao Parlamento nacional desde os anos 70 até 2002, saber como os partidos escolhem as listas que levam às eleições. Como são os órgãos centrais e os líderes nacionais dos partidos — são hoje “autênticas 'empresas políticas’” —, que escolhem os candidatos, optam sempre por pessoas que já estão no partido, mais velhas, habitualmente juristas, funcionários públicos e professores, e com experiência prévia na actividade política.


in Público

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domingo, 10 de maio de 2009

Praça de São Marcos: o coração de Veneza


A Veneza, cidade única, mágica e irreal, pode chegar-se de lancha, e o deslumbramento começa logo aí, antes de pisarmos terra firme. Ilha intrometida no Adriático, onde se cruzam muitas culturas e povos, de judeus a mouros e mercadores, celebrada pela literatura, pelo cinema e pelo teatro. A água é o elemento marcante, transmite-lhe uma aura de encantamento e parece integrar a arquitectura dos palácios da velha aristocracia que se debruçam sobre ela.

Praça de São Marcos: um exercício de rigor geométrico e perspectiva. Um altar de veneração turística. Cenário, em Fevereiro, de um Carnaval deslumbrante. Palco, noutros tempos, de paradas, procissões e actividades políticas. Portanto, uma praça com história. Talvez única no mundo. Centro nevrálgico da cidade aquática, à qual apetece sempre voltar, porque nela há cafés com pequenas orquestras, onde se pode apreciar um capuccino ao som de música de câmara tocada ao vivo.


Aqui, tudo é fascínio, pois a beleza parece ressuscitar a cada instante: a luminosidade que a envolve; o manto líquido que lhe beija os alicerces; a domesticação humana dos materiais arquitectónicos; a água – sempre a água – ali bem perto, a transbordar por praças e vielas.

Ao sair dela, envolve-nos o som indolente dos remos nos canais que escondem e desvendam segredos em cada canto, por onde deslizam vaporettos e gôndolas que transportam turistas, como antes transportavam os seus doges.. O vaporetto é uma espécie de autocarro aquático que sabe respeitar as gôndolas, ladeando-as sem lhes disputar o romantismo. E há o cântico dos gondolieri. E a teia labiríntica das ruas, becos, pontes e pequenas praças que repousam sobre a laguna. Tudo povoado de museus, monumentos e igrejas. Os canais lembram veias e artérias, ligadas a um coração que bate: a Praça.


À despedida, lançamos um olhar nostálgico à Praça enxameada de turistas ávidos de emoções. E cresce em nós, enroscado já em saudade, um desejo irreprimível de regresso àqueles ares lavados e tranquilos, onde há simbolismo e espiritualidade, monumentalidade e beleza artística. Naquela Praça aberta ao mar, ao vento e à luz, inundada de pombas, muitas pombas, desprovida de lixo, publicidade afrontosa ou ocupação abusiva dos seus espaços, tudo convida à contemplação e à embriaguês dos sentidos.

Há praças assim, que merecem ser amadas pelos amantes.

Talvez não por acaso, Casanova, o sedutor, era veneziano.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

MOUVA MOSTRA FOTOGRAFIA - Todos podem participar

Partilhe connosco o seu olhar sobre uma praça.
A praça do peixe, a praça da Figueira, a praça de S.Pedro, a praça da sua infância ou do seu futuro. Aquela que já não lhe cabe no olhar de tanto a admirar.
Para participar nesta exposição entregue/envie a sua fotografia até dia 22 de Maio juntamente com uma breve explicação (máx.400 caracteres).
O seu olhar regressa a casa pronto a pendurar na parede.
Exposição: 31 Maio a 28 Junho Inscrição: 5€ (ampliação da fotografia 20x30 e moldura)

Mais informações aqui

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Armor Pires Mota: a justa homenagem a um vedor da autenticidade popular

Como forma de reconhecer o mérito profissional e de assinalar os 50 anos de actividade literária de Armor Pires Mota [APM] o Rotary Club de Oliveira do Bairro vai prestar-lhe uma justa homenagem, no próximo dia 9 de Maio.

Aviso à navegação: não tenho estado sempre de acordo com o que APM tem escrito ao longo dos anos, quer em textos de cunho vincadamente político, quer noutros centrados na área da investigação histórica, ou em alguns fragmentos das várias monografias que publicou. Isso não me impede de lhe reconhecer nobreza de carácter na defesa dos pontos de vista em que acredita. Nem de lhe creditar inestimáveis contributos para o conhecimento da história local de algumas terras do concelho de Oliveira do Bairro. Toda a terra merece ter a sua história e algumas não a tinham. Ou porque quem a poderia escrever desapareceu bem cedo do mundo dos vivos – é o caso do padre Acúrcio ou de Miguel França Martins, em Oliveira do Bairro – ou porque simplesmente outros não se sentiram capazes de levar a cabo tal empreendimento, ou não atribuíram ao conhecimento do passado a dignidade que lhe é devida.

No que à investigação histórica diz respeito, convém ainda dizer que a História não é uma ciência exacta e que ser isento não é o mesmo que ser neutro. Com toda a frontalidade, APM reconhece, por exemplo, que a “República do Troviscal” é um capítulo “altamente polémico” (1) e que portanto pode ser objecto de diferentes interpretações. A visão histórico-cultural que nos deixou do Troviscal é a “sua” e pode não coincidir, em alguns pontos, com a nossa. Mas manda a verdade dizer que a produziu baseado em documentos e testemunhos. E que não ilude ou omite os factos para afirmar ideologias. Os factos estão lá, apenas os interpreta à sua maneira, podendo outros iluminá-los de modo diferente, mas não necessariamente de forma mais objectiva. Dir-se-á, então, que para se reconhecer a validade de um pensamento se dispensam as afinidades pessoais ou as convergências ideológicas. Importante é reconhecer o talento e os relevantes serviços prestados à cultura e à região, como é o caso.

À minha frente está o texto em que APM anuncia a sua despedida como chefe de redacção do Jornal da Bairrada (2). Recortei-o e guardei-o por várias razões: em primeiro lugar, porque é um marco e um virar de página no itinerário de vida do escritor; depois, porque espelha a lucidez e a sabedoria de quem sabe retirar-se a tempo e não tem medo de dar lugar aos novos; finalmente, porque essa tocante mensagem de despedida é também um comovente hino de louvor à Bairrada que traz no coração. A hemoglobina social e cultural da região percorre-lhe as veias. Uma região da qual conhece as terras e as gentes – que são a sua raiz e alma - como poucos. Arrisco dizer: como mais ninguém.

Dos escritores nascidos na Bairrada, o bustuense Arsénio Mota é para mim o que melhor mostra perceber a importância dos estudos regionais e o que mais contributos tem adiantado para um estudo sistemático da Bairrada. Tem esboçado as grandes linhas de descrição regional e mostrado a importância do regional enquanto escala de abordagem e espaço cultural significativo e dotado de valor e identidade próprios. Já APM é o que melhor tem captado a essência e as subtilezas da Bairrada, assumindo-se como o seu genuíno e mais representativo aedo.

Ao plasmar os motivos locais em algumas das suas obras – recolha de lendas, costumes, folclore, romarias, jogos tradicionais – tem prestado um assinalável serviço à divulgação e afirmação da identidade regional da Bairrada. Mas é sobretudo em alguns livros de ficção, nomeadamente os que albergam contos com indiscutível sabor ao chão, às gentes e ao ambiente da Bairrada – leia-se O Vendedor de Tapetes, ou As Vinhas da Memória – que APM mais se parece cumprir como escritor. É aí que alguns elementos identificadores da matriz bairradina mais se evidenciam: descreve com mestria as manhas, os truques e os ardis do aldeão pacato e curvado ao peso da terra, mas ao mesmo tempo matreiro e astucioso, que ninguém engana quando se trata de defender o que lhe pertence. APM escava uma galeria “de povo arrancado à terra, ao trabalho, aos costumes, à religiosidade, aos impulsos, aos sonhos de que é feita a vida do bairradino” ensinando-nos a ver, “com olhos a um tempo realistas e amorosos, a aldeia portuguesa, que ele soube surpreender a partir do grande conhecimento que tem da região onde vive (3).

À medida que as identidades individuais e colectivas se forem esbatendo por força dos processos de globalização, os livros de APM vão permanecer como testemunho do que foi possível fixar enquanto presença das realidades regionais nas obras literárias e vão ganhar uma nova dimensão: a de uma espécie de relicários da memória, onde poderemos então matar saudades de mundividências que já não há.

É este homem, que tanto nos tem ajudado a respeitar a grande matriz, que o Rotary vai homenagear. Na já extensa folha de serviços prestados à cultura e à região, cabem o poeta de Cidade Perdida ou Baga-Baga; o autor de monografias históricas como Mamarrosa Milenária ou Oiã, Terras e Gentes; o cronista de Tarrafo, um diário escrito sob a emoção da guerra na Guiné, ou de romances de literatura colonial como Cabo Donato, Pastor de Raparigas e Estranha Noiva de Guerra; o perscrutador da alma e das Histórias de Artesãos, que retratou em pinceladas coloridas, num tempo em que o artesanato era uma disciplina importante da escola da vida; o estudioso de Santa Casa, Vida e Obra, livro que ajuda a conhecer melhor mais um pedaço do passado concelhio, a evolução e as personalidades que ajudaram a manter viva a Misericórdia de Oliveira do Bairro; o conhecedor atento das Irmandades das Almas e de outro património religioso, alternando trabalhos como O Préstimo a Caminho de Lisboa, com os Bombeiros de Vagos, ou os Falcões do Cértima; enfim, o jornalista tarimbado, agudo e de observação elegante, da Soberania do Povo e do Jornal da Bairrada, fascinado pela crónica e a reportagem, com vasta colaboração dispersa por muitos outros jornais e revistas.

Apetece dizer, a quem é dono de uma vida assim tão preenchida: não pode dar-se mais quem tanto já se deu por inteiro. Venha de lá a homenagem, que deve ser, tanto quanto possível, uma comunhão ritual, isto é, uma convicção e não uma mera convenção.

(1) Armor Pires Mota, Troviscal. Visão histórico-cultural, Edição da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, 2005, p. 8.
(2) Armor Pires Mota, "Laços de despedida", Jornal da Bairrada, 02.01.2008, p. 2.
(3) Joaquim Correia, recensão a O Vendedor de Tapetes, Jornal da Bairrada, 28.06.2001, p. 12.