domingo, 17 de maio de 2009

Morrer em nome da pátria - o que é isso?













Recentemente o Carlos trouxe para aqui o assunto. No princípio dos anos 90, andava eu por entre tumbas no cemitério da Palhaça recolhendo aquilo a que, no âmbito de um trabalho que fazia para o Museu Paroquial, chamei «poesia lapidar», quando parei diante destes versos:

Jaz aqui em campa fria
Um soldado português
Que Moçambique defendia
Com galhardia e altivez


De todos os versos recolhidos, estes eram talvez os que mais pungentemente resumiam os limites de uma vida concreta, abstendo-se, ao contrário dos das demais campas, de dar conselhos pios aos que ficavam. Em comum com os outros tinham, porém, isto: serem voz dos que ficavam.

Não sou anti-militarista pela simples razão de que ser «anti-qualquer-coisa» faria de mim, de certo modo, militarista. Não milito; o que não faz de mim necessariamente um ser amorfo em relação à guerra. Que me perdoem os mortos e os sobreviventes que acreditam no inverso, mas considero absurda toda a morte feita em nome de um território. Porque não há outro território que o comum território da crosta terrestre; e mesmo essa, sabe-se agora, não é nossa. Porque não há guerra que seja ganho ou preserve o que quer que seja. E, por isso, e para que a perda não seja irreparável, quero hoje enaltecer esse soldado da minha terra de outra forma: dando-lhe voz. Pedindo emprestadas as palavras do poeta americano Edgar Lee Masters:

KNOWLT HOHEIMER

Eu fui o primeiro fruto da batalha de Missionary Ridge.
Quando senti a bala atravessar-me o coração
desejei ter ficado em casa e ter ido preso
pelo roubo dos porcos do Curly Trenary,
em vez de ter fugido para me alistar no exército.
Mil vezes a cadeia municipal
do que jazer aqui sob esta figura alada de mármore
e um pedestal de granito
com palavras - «Pro Patria» -
que não sei o que querem dizer.

3 comentários:

Carlos Braga disse...

Sim, é absurda a morte em nome de um território. Mas as "circunstâncias" de que falava Ortega y Gasset podem conduzir-nos a isso. Se o país onde repousam os nossos antepassados e as nossas tradições fosse invadido, não íamos resistir? E não poderíamos perecer na refrega pela manutenção desse sentimento espiritual das raízes?
O conceito de pátria é dos mais complexos e ambíguos. O pedaço de chão onde reside uma comunidade que nos é familiar (pelos laços de sangue, pela língua comum) é diferente de todos os outros. Não ter pátria é de algum modo não ter "um centro" donde brota a existência mais profunda de qualquer ser humano. Mas a pátria deve ser um lugar de paz e não de guerra; deve reconciliar o homem consigo mesmo e com os outros, imunizando-o contra a perda de sentido.
Lembro-me bem de António Ferreira Anastácio, que conhecíamos na Palhaça por "o Pneu". Tombou em Moçambique, em 25 de Maio de 1970. Ao todo, só no concelho de Oliveira do Bairro, perderam a vida 9 bairradinos. Mortes inúteis e sem sentido. Só há sentido para a vida, pois a morte nega-nos, é a completa ausência de sentido.

Anónimo disse...

Carlos, às tuas perguntas eu responderia: temos o dever de, gradualmente, responder-lhes negativamente, isto é, de abandonar os conceitos que geram a guerra: território, pertença, identidade. Porque o território é fonte de recursos que não são exclusivos da tribo que chegou antes ou que expulsou a anterior, porque a pertença (a um grupo, a uma cultura, a uma estirpe) não pode justificar a aniquilação do outro, porque a identidade é uma ficção que só na fragilidade se sustenta. Claro, que isto não é assim tão simples: a Resistência francesa precisou de pensar no homem antes de matar em nome da humanidade; claro que na Guerra Civil Espanhola (retratada na foto do Robert Capa) jogavam-se mais do que o poder de dois partidos. Mas não posso esquecer o uso que os do Poder fazem contra a Pujança (são jovens a maioria dos que sucumbem na guerra); não posso esquecer Gandhi. Enquanto não formos a-centrados e aprátidas não poderemos formar «a comunidade que vem» de que fala Giorgio Agamben, uma comunidade para além do bem e do mal, ou seja, amoral, ou seja, ética, ou seja, baseada no amor. E isto não é só belo: é o nosso destino. Ou então continuaremos a resignarmo-nos com as «circunstâncias» e memoriais, ou então não teremos aprendido nada com a morte destes jovens soldados, carne para canhão, marionetas de políticos de gabinete.

A propósito: obrigado por teres dado nome a esse soldado palhacense que a minha atenção ainda imatura esquecera. O poema assim tem muito mais sentido... O que te lembras dele?... Fico a imaginar o seu rosto, o seu sorriso, as suas aspirações. Quem as conheceu? Quem as pode fazer viver, aqui?

Paulo Carvalho

Carlos Braga disse...

Paulo, a tua estimulante reflexão merecia um comentário que este exíguo espaço não consente. Digo estimulante porque, embora a subscreva em abstracto, não adiro facilmente às supostas vantagens para a humanidade de conceitos como "a-centrados" e "apátridas", ou à desvalorização das "circunstâncias" de Gasset. Repara: é fácil estar de acordo com a não-violência de Gandhi, ou de Lanza del Vasto. Mas embora Gandhi a tenha utilizado para libertar a Índia do jugo britânico, as tais "circunstâncias" levam-me a perguntar: os resultados seriam os mesmos se, em vez de aplicar a não-violência à democracia britânica, Gandhi a tivesse aplicado ao totalitarismo nazi? A não-violência, ou o pacifismo, podem fascinar-me enquanto princípio geral e abstracto. Mas estou longe de lhes reconhecer a validade ou eficácia no combate a todos os males.
Bem sei que na era da mundialização os grandes espaços tendem a substituir os poderes políticos soberanos tradicionais e a esbater as suas identidades e fronteiras. O conceito de fronteira (política, marítima,ideológica, de segurança, de cooperação) mudou muito nos últimos anos. Como mudou o conceito de Pátria, ou de Nação. Mas por muito que não gostemos dos nacionalismos, a verdade é que eles sobreviveram aos regimes comunistas e aí estão à superfície, com uma pujança impressionante. As identidades, os territórios e as fronteiras estão muito longe de ser ficção. Ignorar isso pode ser muito perigoso.
Dizes: não há outro território que o comum território da crosta terrestre. O problema é que esse território que deveria ser comum, como de todos deveria ser o céu e o mar, vão continuar por muito tempo espartilhados. A tua descrição destas coisas parece aproximar-se da do comunitarismo primitivo e da ideia de frátria. O problema é que o território, o céu e o mar não são de todos: há espaços aéreos que não podem ser violados, há zonas marítimas demarcadas, há condomínios e praias privadas a que não podemos aceder. Há propriedade privada, erguem-se muros a delimitar espaços físicos (aquilo a que Marx chamava a territorialização da burguesia). Eis a dura realidade dos factos, a desmentir - e a conspurcar - a beleza dos princípios.
Abraço.