Suscitava, e há-de continuar a suscitar, discussão. O que é revelador da saliente personalidade do ilustre aveirense que agora desaparece. Um homem truculento e ao mesmo tempo afectuoso no trato, que fracturava, avesso a consensos moles. Frontal e irreverente.
É assim, sem biombos, que me apetece falar do histórico militante socialista Carlos Candal, embora saiba que o post mortem continua ser o estado mais propício ao aguçar das virtudes e do reconhecimento público e ao branquear dos defeitos da nossa humana condição.
Homem exímio a manusear o látego da ironia, flagelava e era flagelado por opositores ou declarados adversários políticos. Nos anos de brasa da revolução de Abril, o MRPP chamava-lhe o “trinca boquilhas”. E quando passou a fumar charutos, era acusado de andar sempre com o símbolo fálico a bailar-lhe na boca. Ele, por sua vez, retrucava da mesma maneira: quando Mário Soares colocou o socialismo na gaveta e promoveu alianças à direita, apelidou-o de “bailarina política”. Assim mesmo. Vicente Jorge Silva chamou-lhe “republicano bolorento” mas não ficou sem resposta: de imediato foi apodado de “revolucionário reciclado”. E há bem pouco tempo, quando Manuel Alegre começou a entoar um canto desconforme com a maioria política do momento, Candal não teve pejo em afirmar que ele estava é a precisar de “um chuto”.
Eis o desassombro, a braveza física e moral de um homem que nunca hesitou em noivar a liberdade, mesmo no tempo em que outros se compraziam em cortejar a ditadura. Em 1969 e 1973, Aveiro foi palco de dois congressos republicanos. Candal, candidato a deputado pela oposição, assumiu importante papel na organização do primeiro.
O seu “Breve Manifesto Anti-Portas em Português Suave”, um libelo acusatório salpicado de bairrismo contra os políticos de Lisboa que se aprestavam para tomar de assalto a sua cidade – gente que, como costumava dizer Mário Sacramento, só começou a comer ovos moles em idades muito avançadas... – causou alguma indignação e fez estremecer certas almas bem pensantes. A verdadeira pedrada no charco de uma campanha sensaborona e da política liofilizada. Numa reacção hipócrita, Guterres retirou-lhe a confiança política e alguns jornalistas tentaram crucificá-lo, não resistindo a insultar como coiotes o velho leão ferido. Torquato Sepúlveda, por exemplo, chamou-lhe “cowboy” de um “western spaghetti”. Mas Candal resistiu. Foi até Bruxelas e refez a carreira, sempre apostado em pôr um pouco mais de sal ou picante na política.
Falei com ele apenas duas vezes. Uma na própria residência em Aveiro, situada a meio da Av. Dr. Lourenço Peixinho. Tinha ido lá solicitar parte do espólio de Homem Cristo, que sua esposa, a Dra. Isabel Cerqueira, prima de Zeca Afonso, conservava. A outra foi em Oliveira de Azeméis, pouco tempo depois, e num encontro meramente fortuito. Meteu-se comigo, naquele tom mordaz e jocoso que o caracterizava, concedendo-me a liberdade de lhe dizer: o Sr. Dr. tem a curva da prosperidade um pouco mais saliente do que no dia em que o conheci. Ao que ele respondeu, com aquela peculiar voz cavernosa e sem pestanejar, fazendo jus a um certo marialvismo lusitano a que muitos o colavam: deixe lá, as primas gostam...
Mais do que um homem de partido, Candal gostava de tomar partido. Esteve praticamente sempre do lado contrário ao dos seus correlegionários que assumiam o poder. Por isso o seduzia tanto a advocacia, a guerra de palavras, a luta, a tensão permanente.
Sem tiques de vedetismo ou ambições carreiristas, o advogado de província finou-se um dia destes. Consta que mal recuperou do acidente que o acometeu, em plena campanha para as europeias, terá pedido um charuto.
Oxalá que do alto dos seus charutos nos continue a inquietar, com a mesma atitude desafiadora que sempre teve perante a vida.
É assim, sem biombos, que me apetece falar do histórico militante socialista Carlos Candal, embora saiba que o post mortem continua ser o estado mais propício ao aguçar das virtudes e do reconhecimento público e ao branquear dos defeitos da nossa humana condição.
Homem exímio a manusear o látego da ironia, flagelava e era flagelado por opositores ou declarados adversários políticos. Nos anos de brasa da revolução de Abril, o MRPP chamava-lhe o “trinca boquilhas”. E quando passou a fumar charutos, era acusado de andar sempre com o símbolo fálico a bailar-lhe na boca. Ele, por sua vez, retrucava da mesma maneira: quando Mário Soares colocou o socialismo na gaveta e promoveu alianças à direita, apelidou-o de “bailarina política”. Assim mesmo. Vicente Jorge Silva chamou-lhe “republicano bolorento” mas não ficou sem resposta: de imediato foi apodado de “revolucionário reciclado”. E há bem pouco tempo, quando Manuel Alegre começou a entoar um canto desconforme com a maioria política do momento, Candal não teve pejo em afirmar que ele estava é a precisar de “um chuto”.
Eis o desassombro, a braveza física e moral de um homem que nunca hesitou em noivar a liberdade, mesmo no tempo em que outros se compraziam em cortejar a ditadura. Em 1969 e 1973, Aveiro foi palco de dois congressos republicanos. Candal, candidato a deputado pela oposição, assumiu importante papel na organização do primeiro.
O seu “Breve Manifesto Anti-Portas em Português Suave”, um libelo acusatório salpicado de bairrismo contra os políticos de Lisboa que se aprestavam para tomar de assalto a sua cidade – gente que, como costumava dizer Mário Sacramento, só começou a comer ovos moles em idades muito avançadas... – causou alguma indignação e fez estremecer certas almas bem pensantes. A verdadeira pedrada no charco de uma campanha sensaborona e da política liofilizada. Numa reacção hipócrita, Guterres retirou-lhe a confiança política e alguns jornalistas tentaram crucificá-lo, não resistindo a insultar como coiotes o velho leão ferido. Torquato Sepúlveda, por exemplo, chamou-lhe “cowboy” de um “western spaghetti”. Mas Candal resistiu. Foi até Bruxelas e refez a carreira, sempre apostado em pôr um pouco mais de sal ou picante na política.
Falei com ele apenas duas vezes. Uma na própria residência em Aveiro, situada a meio da Av. Dr. Lourenço Peixinho. Tinha ido lá solicitar parte do espólio de Homem Cristo, que sua esposa, a Dra. Isabel Cerqueira, prima de Zeca Afonso, conservava. A outra foi em Oliveira de Azeméis, pouco tempo depois, e num encontro meramente fortuito. Meteu-se comigo, naquele tom mordaz e jocoso que o caracterizava, concedendo-me a liberdade de lhe dizer: o Sr. Dr. tem a curva da prosperidade um pouco mais saliente do que no dia em que o conheci. Ao que ele respondeu, com aquela peculiar voz cavernosa e sem pestanejar, fazendo jus a um certo marialvismo lusitano a que muitos o colavam: deixe lá, as primas gostam...
Mais do que um homem de partido, Candal gostava de tomar partido. Esteve praticamente sempre do lado contrário ao dos seus correlegionários que assumiam o poder. Por isso o seduzia tanto a advocacia, a guerra de palavras, a luta, a tensão permanente.
Sem tiques de vedetismo ou ambições carreiristas, o advogado de província finou-se um dia destes. Consta que mal recuperou do acidente que o acometeu, em plena campanha para as europeias, terá pedido um charuto.
Oxalá que do alto dos seus charutos nos continue a inquietar, com a mesma atitude desafiadora que sempre teve perante a vida.
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