A APARIÇÃO (clique aqui, se lhe apetecer)
na varanda de uma casa da Alta,
com vista para a cidade abaixo,
parte descurada, feia e suja,
parte misteriosa,
ouvi, hoje, uma flauta de amolador.
estou quase certo de que «A Aparição» ocorreu... na Praça 8 de Maio, na Baixa:
não eram os pastores («ainda há pastores?»),
nem uma narco-alucinação ou crença chamada Virgem Maria,
nem o amolador (mas também era),
não eram as facas, as tesouras ou os canivetes a afiar (mas também eram).
era a nostalgia.
era a raridade.
era a música em fuga.
era o elogio do que está para desaparecer.
ou do que está para vir,
se quisermos.
estou em Coimbra
e recuei a uma certa Palhaça:
a Palhaça da infância,
quando e onde não sabia o que era a ganância.
quando e onde pensava que só havia ou gente boa ou gente má,
quando não sabia que, afinal, uma pessoa pode ser boa e má,
sem isso ser assim tão estranho (apenas humano).
o som desta flauta, ecoando pela cidade, tem personalidade,
tem estilo próprio,
é assim aqui,
era assim na infância,
é assim imortalizado n' «O Assobio (Canção do Avô)».
já nem sei se ainda passa por aí - Palhaça - algum amolador.
fazem falta. nem que seja para nos afiar, ou desafiar.
devia correr por aí à procura de todas as facas e tesouras guardadas em todas a gavetas frescas deste país, para as afiar...
ou... para não deixar morrer o fugaz «sonido» quase ido.
1 comentário:
Belo rememorar de tempos que já não voltam, Tiago. À Palhaça ainda vem, de vez em quando, um amola-tesouras. Eu é que não dou por ele, pois só aparece durante a semana.
Recordo um, dos tempos da minha meninice. A miudagem largava tudo para se reunir à sua volta e o ver trabalhar, naquele espaço então de terra batida situado entre a auto-garagem e a antiga taberna da esquina, que pertencia à minha avó Angelina.
Enquanto afiava as alfaias, se não havia mulheres por perto (eram elas que apareciam para a reparação dos materiais..) lá ia dizendo umas brejeirices para nos animar. Nos rigores do inverno costumava andar embiocado num quente sobretudo, que o aquecia por fora. Por dentro a "máquina" aquecia à custa de bagaços e "traçados" que se aviavam ali bem perto...
Este amolador, com a sua roda, os rebolos e a correia, não tratava apenas de tesouras, facas de cozinha ou de poda. Com o martelo e o alicate arranjava também as varetas dos guarda-chuvas e era exímio a colocar "gatos" em tigelas, pratos e alguidares. Com a sovela furava os cacos; a seguir, cortava um pequeno arame, a que dava consistência com o martelo; depois, colocava o "gato" num dos furos, encaixava a ponta no furo do outro lado, recobria tudo com um pouco de gesso e o trabalho ficava pronto.
A profissão era própria de gente pobre, que vivia de biscates. Nunca soube o nome deste velho amola- tesouras que aparecia na Palhaça. Seria de Perrães? Vim a saber, mais tarde, que vivia lá um que dava pelo nome de "Ti Augusto". E que também lá morava um afamado guarda-soleiro chamado Nestor Fernandez, de ascendência espanhola.
É bem provável que tenha sido um destes homens hoje tão raros e em extinção, a embalar, ao som da gaita com que se fazia anunciar, a meninice irrequieta dos miúdos do meu tempo.
Tenho saudades do que já não há: o amola-tesouras a pedalar compassadamente, a fazer rodar o esmeril; o som inconfundível da gaita a ecoar ali por perto, e que fez agora o Tiago viajar no tempo...
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