sábado, 13 de junho de 2009

Que havemos de fazer com a liberdade, ou o que há-de a liberdade fazer de nós? A liberdade política é ganho irrecusável da civilização e da cultura, fruto arduamente acumulado da experiência e da reflexão humanas. Possível, além do mais, quando à consistência da vida sócio-económica e cultural se somou a maior disposição de si mesmo, juntando-se a lógica reivindicação de participação e decisão na coisa pública.Realidade esta não isenta do estímulo e ensaio que lhe foram proporcionados pelas comunidades cristãs, dos Actos dos Apóstolos à vida “consagrada” dos mosteiros e conventos (possibilidade de ascensão social em tempos muito estratificados, maior liberdade para contrair casamento ou tomar outra opção, autoridade feminina nas instituições e iniciativas religiosas, etc.).Como pretendeu Fukuyama, a história já teria atingido o seu objectivo, ao realizar as duas grandes motivações do seu processo, sintetizado com Hegel no desejo humano - em relação ao que cada um necessita para se manter e crescer - e no reconhecimento que esperamos dos outros em relação à nossa dignidade própria. Ambos - desejo e reconhecimento - se realizariam na democracia liberal, que, sendo o termo da evolução ideológica da humanidade e a forma final do governo humano, constituiria como que o fim da história (cf. Fukuyama, F. - O fim da história e o último homem. Lisboa: Gradiva, 1992, p. 13-14). No entanto, o rescaldo do século XX, certamente um dos mais trágicos e brutais da história humana, leva-nos a considerar que a acepção política da liberdade não basta. Apesar dos indesmentíveis ganhos conseguidos neste capítulo, ainda se fica mais pelo quantitativo e formal do que pelo qualitativo e realmente novo.Aliás, a desilusão ideológica recente retraiu a liberdade para o domínio do sentimento individual, entre o devaneio e a ambição. Podemos alargar o âmbito do que escreveu Bento XVI na sua Mensagem de 1 de Janeiro passado, Dia Mundial da Paz: “A própria crise recente demonstra como a actividade financeira seja às vezes guiada por lógicas puramente auto-referenciais e desprovidas de consideração pelo bem comum a longo prazo” (Mensagem, nº 10).Não será então melhor considerar a liberdade como dinamismo intrínseco a desenvolver responsavelmente, isto é, conjugado com a liberdade dos outros e do Outro, só assim nos adequando à realidade, ou seja, à verdade? [...]Se no século XIX tentámos traduzir politicamente a liberdade, no regime constitucional e representativo; se o século XX viu sucessivas ideologias reduzirem a liberdade a “pedagogias” opostas, que deixaram em saldo o relativismo pós-moderno… - Não estaremos na altura de considerar a liberdade como dinamismo e capacitação para alcançarmos, pelo acolhimento mútuo e interactivo, um patamar de realidade em que caibamos todos e nos reconheçamos na humanidade comum – essa mesma em que nós, os crentes, confessamos a incarnação de Deus, definitivamente aquém e sempre mais além?

D. Manuel Clemente

Presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociaisna 5.ª Jornada da Pastoral da Cultura, Fátima, 05.06.2009

(Colaboração de HVTV)

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