domingo, 11 de outubro de 2009

Eleições autárquicas na Palhaça: a emergência do feminino

É nas eleições autárquicas que encontramos uma maior proximidade entre eleitores e eleitos. Nas pequenas freguesias até conhecemos os candidatos e, em muitos casos, mantemos com eles relações de amizade, proximidade e vizinhança. Se essa proximidade já nos agrada, é ainda maior o regozijo quando assistimos a uma participação crescente das mulheres na vida política da nossa terra. Cresce a esperança de novos rostos, de vermos um pouco mais humanizado o poder e um pouco mais diligente o cuidado do outro.

A participação das mulheres na política e a acção transformadora que podem exercer é uma aquisição muito recente em Portugal. Começa praticamente com a revolução de 25 de Abril de 1974. Antes disso, muito caminho foi trilhado, num tempo em que, confinadas ao lar, lhes estava exclusivamente reservado o papel de esposas e mães. Tiveram que lutar e protestar para fazer ouvir a sua voz e reclamar direitos cívicos e políticos, o mesmo é dizer, dignidade e emancipação, instrução e participação activa na sociedade.

Há precisamente cem anos, Ana de Castro Osório apresentou ao Congresso Republicano de 1909 uma proposta para que fosse consagrado no respectivo programa a questão do voto feminino. Instaurada a República no ano seguinte, o Partido Republicano esqueceu rapidamente as “amplas liberdades” que prometera no tempo da Monarquia. Apesar de nas Constituintes muitos deputados terem visto no direito de voto das mulheres uma proposta justa, apenas três tiveram a coragem de publicamente manter as suas afirmações (1). Já vem de longe quem nos empurra, quando falamos em compromissos rasgados ou promessas por cumprir. O que choca, a esta distância, é a insensibilidade dos políticos da época para resolver o problema.

Em matéria de voto feminino, muito somos devedores – homens e mulheres – à médica Carolina Beatriz Ângelo, a primeira mulher a exercer o direito de voto em 1911. Como era viúva, teve artes de aproveitar uma lacuna da lei, que conferia direito de voto aos “chefes de família” (figura jurídica entretanto abolida da Constituição da República) mas sem especificar o sexo dos mesmos. Ora Beatriz Ângelo era “chefe de família” e assim deu um empurrão importante na luta pelo direito ao voto feminino. A incomodidade foi tanta que a lei acabou por ser mudada logo a seguir, para que casos idênticos não viessem a repetir-se.

As mulheres da Palhaça que integraram listas partidárias, e por maioria de razão as que as encabeçaram, como aconteceu com as do PS e do CDS, estão de parabéns. Atreveram-se a dar a cara e a desafiar preconceitos, numa terra em que são ainda visíveis algumas representações tradicionais sobre o papel que devem ter na sociedade. A crescente inserção no mercado de trabalho deu às mulheres outra independência e legitimidade para intervir. Ainda bem que assim é. É tempo de se valorizar o que são capazes de fazer em vez de esperarmos que sejam perfeitas – como se fosse possível aos seres humanos ser perfeitos... – uma estratégia cínica que só serve para as diminuir. É um acto de inteligência reconhecermos a sensibilidade e o voluntarismo que denotam para as causas sociais, ou a riqueza de experiências e realidades vividas de que são portadoras.

Mais do que ficar à espera dum sistema de cotas e leis da paridade, as mulheres - e os homens que com a razão da sua luta se identificam - devem continuar a pugnar pelos seus direitos. Convém não embarcar em lugares-comuns generalizados, na lengalenga dos que dizem que as mulheres são melhores em tudo, que são elas quem manda em casa, que exibem um maior quociente emocional, que com o tempo lá chegarão (ao poder), que por detrás de um grande homem está sempre uma grande mulher (quase sempre anulada, para que o homem brilhe...) e outras larachas do costume. Nada de mais falacioso neste discurso masculino que mais não faz que perpetuar, ainda que de um modo subliminar, diferentes formas de dominação. Como se houvesse um determinismo de género no exercício do poder. As mulheres não têm que estar atrás ou à frente dos homens. Devem caminhar a seu lado. Não tanto por uma questão de igualdade, mas como forma de afirmar a sua identidade e diferença e abolir desigualdades. Sim, porque como costumava dizer Maria de Lourdes Pintasilgo a igualdade perfeita não existe apenas na lei e nas formas, mas na vida toda.

As eleições são um jogo onde uns ganham e outros perdem. Mas participar já é ganhar. As mulheres da Palhaça que de forma corajosa se envolveram na disputa eleitoral autárquica saem vitoriosas desta contenda, qualquer que tenha sido o resultado. Há que lhes dar os parabéns. E se por causa da sua condição de mulheres algum arrufo de discórdia ou alguma atoarda integrista lhes foi arremessada durante a campanha, isso significa que a crescente exposição pública a que voluntariamente se submetem está a incomodar os habituais velhos do Restelo e que a melhor forma de apressar o tempo da igualdade de oportunidades é intervir socialmente.

As mulheres na política melhoram a qualidade da democracia e conferem-lhe uma nova dimensão: uma representatividade nos órgãos eleitos mais conforme à composição da sociedade. Se as diferentes comunidades são compostas por homens e mulheres, que razões ou argumentos impedem que quem as representa politicamente sejam homens e mulheres?
Responda quem souber...

(1) João Esteves, As Origens do Sufragismo Português, Lisboa, Editorial Bizâncio, 1998, p. 73.

5 comentários:

Andreia disse...

Estou totalmente de acordo, Carlos!
Quando tive conhecimento das listas que se candidatavam à Assembleia de Freguesia, fiquei muito surpreendida com o facto de duas mulheres encabeçarem duas das listas. Agradavelmente surpreendida! E nessa altura, de uma forma muito menos eloquente :), fiz o mesmo comentário.
Agora que sabemos que não venceram estas autárquicas, espero que compreendam a dimensão do que foi conseguido e que não desmoralizem, e que continuem a lutar pelas mulheres que são e pelo que sentem conseguir! Parabéns!

TPC disse...

Carlos, começo por agradecer o teu contributo analítico, complementado por episódios curiosos da História da longínqua luta pela igualdade de direitos, neste caso com base o género, que está longe de chegar ao fim ou de cair no esquecimento.

Ainda recentemente tive uma discussão saudável com uma mulher jovem que tem fobia ao termo «feminismo» (alvo de muitas mitificações e equívocos - desde já o que o toma como um termo no singular). Para essa minha amiga, e para algumas mulheres de direita que vou conhecendo e com quem vou conversando (não generalizo, falo exclusivamente da minha minha experiência), o feminismo é o machismo ao contrário, além de ser uma luta ultrapassada e radical.

Ora, ela criticava um tipo de feminismo, entre muitos, um género de sexismo primário do tipo da Valerie Solanas, conhecida pelo polémico manifesto «Scum» e por ter tentado matar o Andy Warhol. Esse tipo de sexismo - a mulher, como um ser superior ao homem - não resolve nenhum problema. Agrava-o.

O que eu acho sempre interessante é que quando não utilizamos a palavra «feminismo», mas falamos da igualdade de oportunidades e direitos - no trabalho, na maternidade -, eu e essa minha amiga chegamos a uma plataforma de entendimento e parecemos quase consensuais, não obstante uma ou outra divergência de opinião. Penso que chegamos à conclusão, mesmo que ideologicamente mais ou menos distantes, que a mulher ainda é penalizada em relação ao homem, só pelo facto de ser mulher, e que os papéis sociais dos géneros, apesar de em mutação, ainda estão longe de serem debatidos seriamente e esbatidos corajosamente. Falta-nos maturidade democrática neste campo.

Basta estarmos atentos ao facto de no mundo académico haver mais mulheres a cursar do que homens e reparar qual o sexo predominante no topo das hierarquias das empresas e das instituições; basta recordarmo-nos dos casos de colegas mulheres a quem perguntam se e quando pretendem engravidar, numa entrevista de emprego; basta estarmos atentos aos estereótipos que ainda grassam a propósito da escolha de um curso, de um Ministério, ou de uma profissão (Mulher camionista. O quê? Homem bailarino? O quê?). Não estou a falar de cor. Ouvi estas questões a serem discutidas em programas como a «Sociedade Civil» ou «Prós e Contras», entre outros, durante 2anos. Isto - a discussão e o diagnóstico, para além do ideológico - significa que estamos a evoluir, mas lentamente. Em países nórdicos, como na Suécia, a questão das quotas por sexo para cargos públicos já é passado, mas começou-se por aí. Claro que o mérito e a vontade individual têm que ser tomados em conta... Mas porque há um maior escrutínio, com base no género, sobre o desempenho de mulheres políticas do que dos homens políticos?

Vejo com agrado e coragem estas duas candidaturas no feminino na Palhaça, uma terra onde ainda oiço muito machismo, encapotado ou não.

Penso que resolvem-se melhor e mais depressa as desigualdades de oportunidades sociais, quando os privilegiados se unem aos prejudicados: quando os homens lutam pela igualdade de oportunidades para as mulheres, por exemplo.

Não é uma luta pelo igualitarismo, mas pela igualdade de oportunidades que está em causa.

Carlos Braga disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Carlos Braga disse...

Andreia:
Obrigado pelo comentário. Sabe bem encontrar o eco, que até pode ser discordante, daquilo que dizemos. O exemplo dado pelas mulheres da Palhaça vai dar frutos. É uma questão de tempo. A semente foi lançada. Fica sempre alguma coisa, pelo menos a certeza de que vale a pena ir à luta. E que se as vitórias não se alcançam sem luta, esta também não é possível sem algumas doses de incómodo ou sofrimento.Volta sempre.

Tiago:
Bem podias ter convertido este "lençol" num post que acrescentaria ao meu umas pitadas de conhecimento sobre a matéria. O feminismo, sendo embora um conceito polissémico e ambíguo, está longe de poder ser reduzido a um machismo do avesso. Não creio serem apenas as mulheres "de direita" (os rótulos, sempre os rótulos...) que pensam dessa maneira, ou que queimam o soutien na praça pública. Claro que é disparatado ver a mulher como um ser superior ao homem, como é disparatado o raciocínio inverso. Coisas do tipo "a mulher é o futuro do homem" são nos dias que correm incompreensíveis. Penso que tentei mostrar isso na reflexão que aqui deixei. Tê-lo-ei conseguido? Claro que a mulher ainda é penalizada em relação ao homem no chamado sistema de recompensas e oportunidades. Eu diria que em muitos casos ainda não saímos da pré-história da emancipação das mulheres. Os exemplos que dá são sintomáticos - e sobretudo certeiros! Um abraço e obrigado pelo estímulo.

TPC disse...

Andreia: Penso que estas duas candidaturas são simbolicamente relevantes, não só, mas também por por questões de representatividade e de abertura. Afinal, são duas candidatas a cabeça-de-lista, não «mulheres, atrás dos homens». Internamente (nos respectivos partidos), ignoro o que significaram estas decisões.

É importante experimentar - arriscar - novas composições de Assembleias na Palhaça e noutros meios onde o poder é especialmente masculino ou monotonal.

Além dessa tendência, penso que o poder local, na nossa zona, exclui sensibilidades diferentes e uma certa abertura à sociedade civil (especialmente aquela à margem dos aparelhos partidários, de um CDS ou de um PSD). É claro que a sociedade civil também pode abrir-se ao e cooperar com o poder local, em acções de democracia participativa e em actos de cidadania. E nisso alguns de nós podemos falhar, e eu, pessoalmente, culpabilizo-me também por não dar mais à freguesia.

O que se pode fazer mais e melhor? É uma questão em aberto, a discutir aqui, por exemplo.

Carlos: tens razão em relações aos rótulos, mas utilizei-os, intencionalmente, para desmontá-los a seguir, no sentido de tentar sustentar que - não obstante a diferença de relações com os termos (e compreendo que alguns «ismos» ou palavras como «esquerda» e «direita» precisem de serem reconfigurados) ou a adesão ou não a um activismo - vislumbro, na minha experiência, em contacto com sensibilidades distintas (que vale o que vale), uma tendência de convergência nas questões essenciais sobre equidade e género. Fico com a impressão, errada ou não, de que esta questão é cada vez menos ideológica, o que me parece uma evolução positiva, ainda que lenta. Era aí que queria chegar.