sábado, 24 de outubro de 2009

Saramago, a Bíblia e uma opinião de Vasco Pulido Valente

Um lamentável texto (1) de Vasco Pulido Valente (VPV) sobre a polémica instalada a propósito do mais recente livro de José Saramago obriga-me, embora contrafeito, a regressar a este tema já aflorado no Palhaça Cívica. Lamentável porque não dignifica o investigador; antes o coloca, neste caso concreto, ao nível do historiador de pacotilha que de facto não é.

Vejamos: começa VPV por dizer que as opiniões de Saramago sobre a Bíblia “são ideias de trolha ou de tipógrafo semianalfabeto”, numa alusão ofensiva ao passado profissional do escritor, a roçar o elitismo mais doentio, como se todos tivessem que nascer em berço de oiro, como ele. Logo a seguir, outra diatribe: ter oitenta e tal anos, como Saramago, é “coisa que não costuma acompanhar uma cabeça clara e que, ainda por cima, não estudou o que devia estudar”. Pois não: Saramago teve que subir a vida a pulso e nesses tempos árduos em que se forjava o self made man não podia estudar, tinha é que trabalhar. Conheço de sobejo o argumento, mais uma vez a tresandar a elitismo. Frequentei estudos pós-graduados num estabelecimento de ensino onde VPV investiga e lecciona. Como éramos quase todos trabalhadores-estudantes, alguns professores davam aulas com evidente fastio, quase sem nos fitar nos olhos, um frete de todo o tamanho. E porquê? Porque sustentam a peregrina tese de que os estudos de pós-graduação não devem ser para trabalhadores-estudantes, gente sem tempo para investigar e queimar as pestanas na Biblioteca Nacional...

A seguir, lá vem o argumento com a carga ideológica habitual, a invejazinha bem portuguesa, sempre pronta a desvalorizar o mérito alheio: “Saramago ganhou o prémio Nobel, como vários ‘camaradas’ que não valiam nada”. Para o preclaro e iluminado VPV a qualidade literária é coisa que não pode ser imputada a escritores ou poetas comunistas e quejandos. Digamos que as coisas boas e às vezes excelentes que VPV produz - ao contrário de outras lamentáveis, como o texto a que me refiro – aparecem nos intervalos de lucidez do historiador, que é bem mais novo que Saramago. De facto, que classificação merece esta impertinente afirmação: “Não assiste a Saramago a mais remota autoridade para dar a sua opinião sobre a Bíblia ou sobre qualquer outro assunto, excepto sobre os produtos que ele fabrica”.

Saramago não pode. Mas a ele, cronista e historiador ungido pelos eleitos, assiste essa autoridade para arrasar e demolir em farpas violentas – muitas vezes injustas e pouco clarividentes – tudo e todos. Seguindo à letra este raciocínio primário, podemos inferir não estar ao nosso alcance comentar os livros do historiador, por não serem produto nosso, amassado pelas nossas mãos. E assim ficaríamos impossiblitados de lhe dizer, cara a cara, que O Poder e o Povo. A Revolução de 1910, é uma interpretação altamente discutível e metodologicamente impugnável daquele período histórico (2). Ou que narrou os primeiros anos do regime republicano segundo uma óptica parecida com a de Cobb nos seus estudos sobre a Revolução Francesa, escapando-lhe o essencial das reformas indicadas pelos republicanos (3). Na verdade, para VPV a I República foi puro terror, não consegue vislumbrar nela os traços de modernidade que também contém.

Por fim, mas não menos importante, fixemo-nos neste raciocínio: “Depois do que fez no PREC, Saramago está mesmo entre as pessoas que nenhum indivíduo inteligente em princípio ouve”. O historiador refere-se ao período em que Saramago, no ano de 1975, esteve à frente do Diário de Notícias e despediu trabalhadores. Sem pretender escamotear esta realidade, conviria avivar a memória de VPV, lembrando-lhe que em todos os períodos revolucionários se cometem excessos. Referimo-nos a períodos de “conjuntura política fluida” e de “incerteza estrutural” (4) caracterizados por situações de excepção, onde é manifesta a aceleração do regime de funcionamento do campo político. Ao contrário do que acontece nos regimes políticos estabilizados, em que funcionam as mediações tradicionais, assistimos neste tipo de conjunturas à confrontação aberta entre novas gramáticas políticas. 


Seguindo à letra o raciocínio de VPV, também poderíamos dizer: depois do que fez no tempo da Inquisição, a Igreja está mesmo entre as instituições que nenhum indivíduo inteligente em princípio ouve. Claro que recusamos liminarmente este raciocínio grosseiro. A Igreja, como as pessoas, também evolui. E só por má fé se pode não reconhecer-lhe, hoje, o importante papel que desempenha nas áreas da assistência e da solidariedade social, ou na inculcação de valores que reforçam a coesão familiar e social, entre outros.


Enfim: no extenso rol das suas certezas inabaláveis, o que VPV às vezes mostra é a mais completa insensibilidade para conhecer e entender o Outro. Mesmo que não concordemos com ele, o que o Outro pensa não pode ser visto com hostilidade ou ameaça, como uma peste. A solução não passa por erguer muros em vez de pontes. A cultura da hospitalidade deve prevalecer sobre a cultura da indiferença ou da guerrilha permanente. O insuspeito filósofo Emmanuel Lévinas via no encontro com o Outro – enquanto ser único e irrepetível - um “acontecimento” ou até um “acontecimento fundamental”, o patamar mais elevado da convivência humana. O padre Carreira das Neves soube fazer isso, no frente a frente com o autor do Memorial do Convento.

Pena que VPV misture coisas sérias com as banais crises hepáticas que por vezes o atormentam e o levam a esgalhar prosa tão ácida, retorcida e deliberadamente provocatória.

(1) Vasco Pulido Valente, “Uma farsa”, Público, 23.10.09
(2) A. H. Oliveira Marques, Guia de História da 1.ª República Portuguesa, Lisboa, Editorial Estampa, 1981, p. 142.
(3) Manuel Villaverde Cabral, Portugal na Alvorada do Século XX, Lisboa, Editorial Presença, 1988, pp. 154 e 262.
(4) Michel Dobry, Sociologie des Crises Politiques, Paris, Presse de la Fundation Nationale des Sciences Politiques, 1992, pp. 40 e 150.


3 comentários:

Helena T. Valentim disse...

Ops! A mensagem do post anterior pertence aqui!
Lena

TPC disse...

Já agora, o texto do VPV pode ler-se aqui: http://jornal.publico.clix.pt/noticia/23-10-2009/uma-farsa-18072781.htm#

Carlos Braga disse...

Viva, Lena.
Tive a felicidade de assistir a esse debate e partilho a ideia de que se trata do melhor que nos foi dado ver sobre o assunto. Está lá tudo: sabedoria em primeiro grau (coisa diferente de cultura), tolerância, inteligência e prudência. Atributos de quem sabe respeitar-se a si próprio e por isso é capaz de respeitar os outros.
Obrigado, Tiago, pela inserção do texto do VPV.
Abraço grande para ambos.