A tradição volta a cumprir-se. Vamos ter novamente cortejo dos Reis na Palhaça. É uma festividade que continua a ter lugar também em outras freguesias do nosso concelho – Bustos e Mamarrosa – assim como, ainda há bem pouco tempo, em localidades próximas da cidade de Aveiro: S. Bernardo, Angeja, Cacia e Fermelã.
Embora a representação do auto dos Reis seja a mais comum, há casos em que se realiza apenas o cortejo das Pastoras. Na Palhaça, a primeira vez que se realizou o auto dos Reis Magos foi no dia 6 de Janeiro de 1925, num tempo em que a I República se encontrava já agonizante e em vésperas de ser derrubada. Essa novidade foi anunciada na imprensa da época como “espalhafatosa cerimónia dos Reis”, à qual não faltaram as pastoras com as suas ofertas.(1)
O Auto dos Reis é uma festividade religiosa que não dispensa o seu lado profano. Por isso se encontra tão entranhado na cultura popular. Curioso é saber-se que em séculos recuados a igreja oficial os tenha combatido e mesmo proibido, em obediência ao espírito de Trento, cujo concílio se iniciou em 1545. Empenhada em lutar contra a degradação dos costumes e o avanço do protestantismo, não admira que a hierarquia eclesiástica tenha feito a vida negra aos vários Autos de feição popular, onde se contam, além do dos Reis, o do Natal, o da Paixão e o da Primavera. Apesar de todos celebrarem o nascimento do Deus cristão, o Tribunal do Santo Ofício não se coibia de atear fogo aos folhetos que os transcreviam.(2)
Anos de chumbo esses, em que os pecados se redimiam através da purificação pelo fogo, tão do agrado dos inquisidores da época. Mas ainda bem que esses Autos chegaram até nós, apesar do combate que lhes moveram. Apenas não se sabe se intactos ou se aquilo a que assistimos hoje não são apenas “restos” do que foi possível recuperar dessas representações de outrora, a que se terão acrescentado alguns “enxertos” saídos da retorta da imaginação popular.
Pode dizer-se que a tradição de representar estes dois autos (ou cortejos) dos Reis e das Pastoras, uma vez que remonta a tempos imemoriais, só recentemente foi recuperada na nossa freguesia. O mérito vai todo para Manuel Simões da Silva, o saudoso Manuel Tomé: um exímio contador de histórias – pícaras ou com laivos moralizantes - um fazedor de amigos e também um amante da natureza. A mata que deixou, ali bem perto da sua casa e da fonte do Bebe-e-Vai-te, era bem o espelho do seu amor à natureza, com quem invariavelmente todos aprendem. Ele sabia da poda das árvores e dos enxertos, do plantar em tempo certo, da preferência emotiva por certas flores e arbustos. Tudo o que era beleza natural derramava-se-lhe na alma. Para além de tudo isso, era ensaiador de teatro – no qual participou também como actor - e gostava de escrever nos jornais.
Diz-nos António Capão que a representação dos Magos na aldeia “nasceu de um conjunto de esforços seus”, em resultado da insatisfação que sentia ao assistir a estas representações em povoações vizinhas, ao verificar que “não correspondiam às suas aspirações de verosimilhança com os factos históricos do nascimento de Cristo”.(3)
A Palhaça pode orgulhar-se, aliás, de possuir dois valiosos documentos alusivos a estes autos, ambos fixados em livro. O acima referido, registo de inegável valor etnográfico, e um outro, da autoria de António Capão, no qual se refere ser o auto dos Reis Magos “uma peça de teatro representada ao ar livre” e em que “o palco onde corre a cena é a aldeia inteira”(4). Ambos os trabalhos são merecedores do nosso mais vivo aplauso e da nossa gratidão.
Resta acrescentar que, para lá destes dois nomes, muitos outros continuam gravados na memória dos mais idosos e são dignos do nosso apreço, pelo contributo que ao longo dos anos foram dando para o brilho desta festividade. Entre os já desaparecidos, avultam os nomes de José Teixeira (José Cabreiro), o inesquecível Herodes; José do Nascimento Marques Moura, António Julião, Guilherme Barreto, Isidoro Amaral e o sempre impecável e aprumado doutor da lei António Lourenço.
No domingo, dia 11 de Janeiro, tudo aponta para que as festividades tenham o brilho do costume nesta terra que tem por orago S. Pedro. Estão de volta o velho Semião, o Anjo Anunciador, os Reis do Oriente – os “ilustres estrangeiros”, como lhes chama o astucioso Herodes, para os lisonjear - o escravo Cingo, os Doutores da Lei e outras personagens deste Auto que ainda encanta e resiste enquanto festa com lugar reservado nas comunidades cristãs.
(1) O Democrata, 17.01.1925
(2) Expresso [Revista], 06.01.1990, p. 58
(3) Manuel Simões da Silva, Auto dos Reis Magos da Palhaça. Edição do Museu S. Pedro da Palhaça, 1998, p. 15.
(4) António Capão, “As Janeiras, as Pastoras e os Reis”, in Aveiro e o seu Distrito, n.º 2, 3 e 4. Publicação semestral da Junta Distrital de Aveiro.
Embora a representação do auto dos Reis seja a mais comum, há casos em que se realiza apenas o cortejo das Pastoras. Na Palhaça, a primeira vez que se realizou o auto dos Reis Magos foi no dia 6 de Janeiro de 1925, num tempo em que a I República se encontrava já agonizante e em vésperas de ser derrubada. Essa novidade foi anunciada na imprensa da época como “espalhafatosa cerimónia dos Reis”, à qual não faltaram as pastoras com as suas ofertas.(1)
O Auto dos Reis é uma festividade religiosa que não dispensa o seu lado profano. Por isso se encontra tão entranhado na cultura popular. Curioso é saber-se que em séculos recuados a igreja oficial os tenha combatido e mesmo proibido, em obediência ao espírito de Trento, cujo concílio se iniciou em 1545. Empenhada em lutar contra a degradação dos costumes e o avanço do protestantismo, não admira que a hierarquia eclesiástica tenha feito a vida negra aos vários Autos de feição popular, onde se contam, além do dos Reis, o do Natal, o da Paixão e o da Primavera. Apesar de todos celebrarem o nascimento do Deus cristão, o Tribunal do Santo Ofício não se coibia de atear fogo aos folhetos que os transcreviam.(2)
Anos de chumbo esses, em que os pecados se redimiam através da purificação pelo fogo, tão do agrado dos inquisidores da época. Mas ainda bem que esses Autos chegaram até nós, apesar do combate que lhes moveram. Apenas não se sabe se intactos ou se aquilo a que assistimos hoje não são apenas “restos” do que foi possível recuperar dessas representações de outrora, a que se terão acrescentado alguns “enxertos” saídos da retorta da imaginação popular.
Pode dizer-se que a tradição de representar estes dois autos (ou cortejos) dos Reis e das Pastoras, uma vez que remonta a tempos imemoriais, só recentemente foi recuperada na nossa freguesia. O mérito vai todo para Manuel Simões da Silva, o saudoso Manuel Tomé: um exímio contador de histórias – pícaras ou com laivos moralizantes - um fazedor de amigos e também um amante da natureza. A mata que deixou, ali bem perto da sua casa e da fonte do Bebe-e-Vai-te, era bem o espelho do seu amor à natureza, com quem invariavelmente todos aprendem. Ele sabia da poda das árvores e dos enxertos, do plantar em tempo certo, da preferência emotiva por certas flores e arbustos. Tudo o que era beleza natural derramava-se-lhe na alma. Para além de tudo isso, era ensaiador de teatro – no qual participou também como actor - e gostava de escrever nos jornais.
Diz-nos António Capão que a representação dos Magos na aldeia “nasceu de um conjunto de esforços seus”, em resultado da insatisfação que sentia ao assistir a estas representações em povoações vizinhas, ao verificar que “não correspondiam às suas aspirações de verosimilhança com os factos históricos do nascimento de Cristo”.(3)
A Palhaça pode orgulhar-se, aliás, de possuir dois valiosos documentos alusivos a estes autos, ambos fixados em livro. O acima referido, registo de inegável valor etnográfico, e um outro, da autoria de António Capão, no qual se refere ser o auto dos Reis Magos “uma peça de teatro representada ao ar livre” e em que “o palco onde corre a cena é a aldeia inteira”(4). Ambos os trabalhos são merecedores do nosso mais vivo aplauso e da nossa gratidão.
Resta acrescentar que, para lá destes dois nomes, muitos outros continuam gravados na memória dos mais idosos e são dignos do nosso apreço, pelo contributo que ao longo dos anos foram dando para o brilho desta festividade. Entre os já desaparecidos, avultam os nomes de José Teixeira (José Cabreiro), o inesquecível Herodes; José do Nascimento Marques Moura, António Julião, Guilherme Barreto, Isidoro Amaral e o sempre impecável e aprumado doutor da lei António Lourenço.
No domingo, dia 11 de Janeiro, tudo aponta para que as festividades tenham o brilho do costume nesta terra que tem por orago S. Pedro. Estão de volta o velho Semião, o Anjo Anunciador, os Reis do Oriente – os “ilustres estrangeiros”, como lhes chama o astucioso Herodes, para os lisonjear - o escravo Cingo, os Doutores da Lei e outras personagens deste Auto que ainda encanta e resiste enquanto festa com lugar reservado nas comunidades cristãs.
(1) O Democrata, 17.01.1925
(2) Expresso [Revista], 06.01.1990, p. 58
(3) Manuel Simões da Silva, Auto dos Reis Magos da Palhaça. Edição do Museu S. Pedro da Palhaça, 1998, p. 15.
(4) António Capão, “As Janeiras, as Pastoras e os Reis”, in Aveiro e o seu Distrito, n.º 2, 3 e 4. Publicação semestral da Junta Distrital de Aveiro.
2 comentários:
Obrigado pela História, mais rica do que aparentava, Carlos.
Nunca tinha parado para pensar que a ideia de um teatro ambulante, independentemente das suas variantes na organização, não é uma coisa assim tão comum... Além de um princípio interessante, tem o seu quê de democrático e descentralizador... de fácil e de gratuito acesso.
Como correu, afinal? Mais do mesmo? Houve inovação e revitalização? Vislumbra-se uma potencialização futura do evento, como propôs a Catarina?
Nota: falava do teatro ambulante, às prestações, desdobrado em várias paragens (não estou a pensar no teatro de rua, mais comum e imediato, claro).
Por falar em teatro de rua, será muito complicado trazer o Viv'arte à Palhaça fazer umas oficinas? Haverá interesse público numa actividade do género?
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