14 de Janeiro, oito da manhã. Encontrei o Adelino – era assim que gostava de o tratar – na estação de Oiã, em amena cavaqueira com o Amílcar Mota. Há meses que não conversávamos. Começou logo por dizer que tinha encontrado, finalmente, o testamento de Manuel de Oliveira a doar os terrenos para a feira, e que ia a Coimbra fazer umas pesquisas, na esperança de encontrar novos documentos. Entretanto, chegou o comboio e entrámos em carruagens diferentes. Ele mais à frente, com o Amílcar; eu na última, cumprindo velhas rotinas com amigos que viajam todos os dias a partir de Aveiro.
O fio da conversa cortou-se ali. Mas, tal como a Nau Catrineta, ele tinha sempre muito que contar. Por isso o convidei para um café mal chegámos a Coimbra. Acedeu de imediato. Falámos, como quase sempre, de livros e jornais da região, de documentos e outras coisas do Museu. O que vinha à baila era sempre aquilo de que gostávamos, embora nem sempre gostássemos das mesmas coisas, ou pensássemos da mesma maneira.
Começou por dizer da vontade em se reformar, daqui a pouco mais de dois anos. Acalentava a esperança de se dedicar mais à Família e aos problemas do Museu. A seguir, falámos sobre o destino a dar ao edifício das Escolas, uma vez desactivado. Depois, mostrou-se entusiasmado com um novo scanner e prometeu digitalizar-me algumas fotografias de procissões antigas de Santa Joana, outras de um congresso da oposição democrática em Aveiro e, creio, também algumas alusivas à campanha presidencial que envolveu Arlindo Vicente e Humberto Delgado. Sentindo-o tão disponível, ousei colocar-lhe uma questão que andava “embrulhada” há uns tempos: a cedência de umas pautas de música que estão na posse do Museu – teriam pertencido a Manuel Simões Alberto, da vizinha freguesia de Nariz e autor da primeira monografia histórica da Palhaça – e que se podem vir a revelar de grande utilidade para a conclusão de um trabalho, sobre literatura popular na freguesia, a que o Paulo Carvalho deitou mãos e ao qual pacientemente se tem dedicado.
Sorriu, e com aquele olhar de rio manso que sempre lhe conhecemos, lá foi dizendo, sem ponta de amargura, que tivera um pequeno desaguisado com o Paulo Carvalho, por causa das ditas pautas. Mas que tudo estava ultrapassado, pois a amizade entre ambos era incomparavelmente maior do que alguns desentendimentos pontuais. Teríamos as pautas digitalizadas, apenas com uma condição: que o Paulo se deslocasse ao Museu para as seleccionar, pois ele não percebia nada de música.
Aprazámos encontro no Museu, num dos próximos sábados à tarde. Prometi levar-lhe também umas colecções incompletas de jornais que andam lá por casa a ocupar espaço em demasia: o Litoral, o Ilhavense, o Companha, o Correio do Vouga, e outras publicações ainda mais avulsas. A conversa durou pouco mais de meia hora. Despedimo-nos, felizes e gratificados pelo convívio, sem que nenhum de nós imaginasse que seria o último. Eram nove e vinte e oito da manhã.
À tarde, no regresso a casa e já depois de termos passado a Mealhada, aparece à minha frente, aturdido, o Amílcar. Acabara de receber a notícia de que o Baptista – como quase todos lhe chamavam – tinha morrido. Ao que parece de maneira fulminante, em Aveiro, nas proximidades do centro comercial Oita. De repente, tudo deixava de fazer sentido. Lá estava o rasgão da morte a mostra-nos que os projectos e sonhos que se constroem não têm, afinal, a importância que lhes atribuímos.
Quando parte alguém que se ama ou de quem se gosta é sempre uma infinita tristeza. A vida não passa de um caminho para a morte, mas nenhuma idade é boa para morrer. E as circunstâncias em que a morte chega quase sempre nos parecem impróprias. O Adelino Baptista desapareceu do nosso convívio há uns dias apenas. Evoco agora os últimos fragmentos da sua vida para suavizar o espanto e a dor, mas também convencido de que sem essa vida a vida cultural dos últimos trinta anos da Palhaça teria sido bem mais pobre e apagada.
Deixou-nos com a delicadeza habitual, de mansinho, sem avisar, depois de prestar inestimáveis serviços à cultura da sua terra e de ter reservado para a minha companhia um dos últimos cafés que saboreou. Sensível e atento, disponível para os outros, foi por certo semear esperanças e acender entusiasmos noutras paragens, divulgar documentos da sua Palhaça nas alamedas da eternidade.
Choca-me a ironia do destino que a 14 de Janeiro o aproximou de mim como há largos meses não acontecia, para poucas horas depois o ceifar impiedosamente, quando carregava ainda no bornal tantos projectos, tantos sonhos por cumprir. Falámos muito, mas ainda tanto ficou por dizer…
Quisera eu acreditar que esta morte não é morte, porque a eternidade, mais do que uma circunstância, é um lugar. Vem serenidade, vem, para que a vida recomece, devagarinho, a recuperar algum sentido.
O fio da conversa cortou-se ali. Mas, tal como a Nau Catrineta, ele tinha sempre muito que contar. Por isso o convidei para um café mal chegámos a Coimbra. Acedeu de imediato. Falámos, como quase sempre, de livros e jornais da região, de documentos e outras coisas do Museu. O que vinha à baila era sempre aquilo de que gostávamos, embora nem sempre gostássemos das mesmas coisas, ou pensássemos da mesma maneira.
Começou por dizer da vontade em se reformar, daqui a pouco mais de dois anos. Acalentava a esperança de se dedicar mais à Família e aos problemas do Museu. A seguir, falámos sobre o destino a dar ao edifício das Escolas, uma vez desactivado. Depois, mostrou-se entusiasmado com um novo scanner e prometeu digitalizar-me algumas fotografias de procissões antigas de Santa Joana, outras de um congresso da oposição democrática em Aveiro e, creio, também algumas alusivas à campanha presidencial que envolveu Arlindo Vicente e Humberto Delgado. Sentindo-o tão disponível, ousei colocar-lhe uma questão que andava “embrulhada” há uns tempos: a cedência de umas pautas de música que estão na posse do Museu – teriam pertencido a Manuel Simões Alberto, da vizinha freguesia de Nariz e autor da primeira monografia histórica da Palhaça – e que se podem vir a revelar de grande utilidade para a conclusão de um trabalho, sobre literatura popular na freguesia, a que o Paulo Carvalho deitou mãos e ao qual pacientemente se tem dedicado.
Sorriu, e com aquele olhar de rio manso que sempre lhe conhecemos, lá foi dizendo, sem ponta de amargura, que tivera um pequeno desaguisado com o Paulo Carvalho, por causa das ditas pautas. Mas que tudo estava ultrapassado, pois a amizade entre ambos era incomparavelmente maior do que alguns desentendimentos pontuais. Teríamos as pautas digitalizadas, apenas com uma condição: que o Paulo se deslocasse ao Museu para as seleccionar, pois ele não percebia nada de música.
Aprazámos encontro no Museu, num dos próximos sábados à tarde. Prometi levar-lhe também umas colecções incompletas de jornais que andam lá por casa a ocupar espaço em demasia: o Litoral, o Ilhavense, o Companha, o Correio do Vouga, e outras publicações ainda mais avulsas. A conversa durou pouco mais de meia hora. Despedimo-nos, felizes e gratificados pelo convívio, sem que nenhum de nós imaginasse que seria o último. Eram nove e vinte e oito da manhã.
À tarde, no regresso a casa e já depois de termos passado a Mealhada, aparece à minha frente, aturdido, o Amílcar. Acabara de receber a notícia de que o Baptista – como quase todos lhe chamavam – tinha morrido. Ao que parece de maneira fulminante, em Aveiro, nas proximidades do centro comercial Oita. De repente, tudo deixava de fazer sentido. Lá estava o rasgão da morte a mostra-nos que os projectos e sonhos que se constroem não têm, afinal, a importância que lhes atribuímos.
Quando parte alguém que se ama ou de quem se gosta é sempre uma infinita tristeza. A vida não passa de um caminho para a morte, mas nenhuma idade é boa para morrer. E as circunstâncias em que a morte chega quase sempre nos parecem impróprias. O Adelino Baptista desapareceu do nosso convívio há uns dias apenas. Evoco agora os últimos fragmentos da sua vida para suavizar o espanto e a dor, mas também convencido de que sem essa vida a vida cultural dos últimos trinta anos da Palhaça teria sido bem mais pobre e apagada.
Deixou-nos com a delicadeza habitual, de mansinho, sem avisar, depois de prestar inestimáveis serviços à cultura da sua terra e de ter reservado para a minha companhia um dos últimos cafés que saboreou. Sensível e atento, disponível para os outros, foi por certo semear esperanças e acender entusiasmos noutras paragens, divulgar documentos da sua Palhaça nas alamedas da eternidade.
Choca-me a ironia do destino que a 14 de Janeiro o aproximou de mim como há largos meses não acontecia, para poucas horas depois o ceifar impiedosamente, quando carregava ainda no bornal tantos projectos, tantos sonhos por cumprir. Falámos muito, mas ainda tanto ficou por dizer…
Quisera eu acreditar que esta morte não é morte, porque a eternidade, mais do que uma circunstância, é um lugar. Vem serenidade, vem, para que a vida recomece, devagarinho, a recuperar algum sentido.
Sem comentários:
Enviar um comentário