terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Coisas de que ainda me lembro – conclusão (IV)

Aqui fui crescendo, Palhaça, alimentando-me da tua seiva. Deste-me a conhecer um léxico próprio, que chamava “camoecas” às bebedeiras, “alveitar” ao veterinário caseiro, “apaijar” a aturar, “burra” à bicicleta”, “bernicoques” aos maneirismos, “choninha” aos sonsos, “corrilhas” às rugas da cara, “enjorcar” a inventar, “endrominar” a mentir, “moinante” ao que não quer trabalhar, “zangarilhar” ao que tremia ou oscilava para os lados. E outras coisas mais, como um “trancanaz” de broa (um grande pedaço), ou um prato cheio “ao caramulo”, por alusão à serra que te vigia e contempla a nascente.

Tudo mudou, Palhaça. Já ninguém te acredita se disseres que os sapos podem cegar uma pessoa, esguichando para os olhos a urina venenosa. Aliás, já não há sapos de boca cosida a anunciar feitiçarias. Vão rir-se de ti se disseres que os cabelos de mulher, mergulhados na água, se transformam em cobras. Já ninguém manda miúdos à farmácia comprar pó de Maio, electricidade em pó, ou “pòzinhos de alembradura”. Já ninguém acredita em ti, se disseres que é pecado apontar o dedo ao céu e que o Senhor ralha...

Já não há cântaros à cabeça nem bilhas de barro a encher ou a quebrar-se na fonte. Desapareceu o ranger da nora sob o peso dos alcatruzes. Ninguém convida os carteiros a matar a sede, ou para dois dedos de conversa, na frescura das adegas, em horas de calor de fornalha (escorropichavam-se sempre dois copos, pois era mau agoiro ficar-se manco). Mal se sente o cheiro que sobrava da fermentação rebelde do mosto, corre pouco o bagaço no alambique. Já não se prova o vinho novo, a onze de Novembro. “Pelo São Martinho, fura-se o vinho” – rezava o adágio popular, que tinha uma outra variante: “Pelo São Martinho, vai à adega e prova o vinho”. O provérbio era levado a preceito, num corrupio de adega em adega, já com as faces a denotar a exaltação do vinho novo. Assim se cumpriam os oito mandamentos da lei de Baco: “o primeiro bebe-se inteiro; o segundo até ao fundo; o terceiro como o primeiro e o quarto como o segundo; o quinto bebe-se todo; o sexto do mesmo modo; o sétimo bebe-se cheio e o oitavo duas vezes meio”.

Em terra de vindimas e adegas nem sempre fartas, com agricultores redondos de alegria quando os pipos estalavam prenhes de vinho, todos conheciam os Dez Mandamentos do Vinho:

1.º - Amarás o vinho de Portugal, água não lhe deitarás para que não te faça mal;
2.º - Não jurarás pela folha da laranjeira, que é ofensa que fazes à sua prima parreira;
3.º - Guardarás pão e vinho na algibeira e com ele beberás quando te der na goteira;
4.º - Honrarás o odre de vinho, o chapéu lhe tirarás se o encontrares no caminho;
5.º - Não matarás, só se for cabra ou bode, a carne lhe comerás e da pele farás um odre;
6.º - Não entornarás, só se for bilha grossa, a boca lhe apararás para que verter se não possa;
7.º - Não furtarás, só se for para beber, porque, se te fores confessar, sempre te hão-de absolver;
8.º - Não levantarás odre deitado, antes te deitarás do outro lado;
9.º - Não desejarás beber por vasilha pequena, desta que bota a espuma fora e lhe fica a cor morena;
10.º - Não cobiçarás a salada do pepino: é muito fresca no verão e muito contrária ao vinho (1).

Quase não se ouve o cuco, ou o canto vespertino e mavioso do rouxinol a trinar entre os salgueirais. Verdelhões, poupas e tentilhões, calhandras, toutinegras e ferreirinhas, quase tudo levou sumiço, a golpes de adubos químicos, pesticidas e herbicidas. Já não se destrava a língua aos gaios, que eram os nossos papagaios caseiros. Onde, a massa a levedar na gamela, com a cruz traçada para proteger do mau olhado? Onde, os teus cabanais para secar milhos e pastos? Quantos restam, para proteger do sol a pique em tardes esbraseadas, ou para encontros furtivos, quando os simples arremedos de namoro eram rigorosamente vigiados? Tinha razão o Cesário (2), quando, montado na bicicleta, se cruzava com um cabanal situado ali para os lados do Bebe-e-Vai-te e costumava dizer: Ah!, se este cabanal falasse...

Não há duas maneiras de te amar, Palhaça, assim como não há duas maneiras de amar a liberdade. Quero-te mais aldeia do que vila – sim, que ganhaste, até agora, em ser vila? – quero-te mais vila que cidade. Não deites fora os ares plácidos e lavados que bordaram o teu rosto de menina. Se puderes, conserva campos de cultivo, o verde-amarelo e o verde-escuro de algumas vinhas e pinhais, umas tantas fontes e carreiros. Não deixes que as silvas cerquem a enxertia. Resiste às investidas galopantes do eucalipto. Evita que os teus cafés virem espaços onde se trocam letras e influências, esgrimem cifrões e taxas de juro. Renega a construção em altura, ao menos no teu largo primitivo. Não coqueteies com arquitectos ou engenheiros a perda da tua identidade e do teu carácter: nada pode substituir a beleza de um céu encaixilhado no teu coreto singelo, encimado pela sentinela cívica que é o nosso padroeiro.

Agora é tudo tão rápido, Palhaça. Foram-se os abraços e beijos das escarpeladelas, sempre que alguém mais afortunado encontrava uma espiga vermelha. Desapareceram os bailes da “mi-careme”, tolerados na terceira semana da Quaresma para aliviar os rigores e a abstinência que ela nos impunha. Vou deixar-te aqui, onde cresci e apesar de tudo fui feliz, mesmo sem ter conhecido a tua Banda Filarmónica - regida por Adelino Ferreira Pinhal - ou a tua Troupe Dramática; mesmo sem ter assistido a festividades em honra do apóstolo Santo André, já no estertor da monarquia, com jantar de bacalhau com batatas às 4 da tarde e sobremesa de castanhas e nozes. O vinho, esse, era tirado do cântaro de 20 litros, servindo de copo a medida de 5 litros (3). Malhavam-lhe bem, os teus homens de antanho. As minhas festas são já as do Mártir S. Sebastião e de Nossa Senhora da Memória. Ajoelhei à passagem dos teus andores e integrei as tuas procissões. Lembro-me bem: numa delas - era dia de comunhão solene - fiz o percurso com as mãos em prece, mas ao chegar à zona dos cafés, apinhada de gente, deu-me a vergonha e coloquei-as atrás das costas. Sei que me perdoas esse vacilar duma fé que parecia indestrutível.
Deixo-te agora (está a custar, sabes?). É preciso voltar a página. Talvez saudades do futuro. Talvez. Hoje, pelo menos, já não morre ninguém à sacholada, por causa da mudança dos marcos, ou do simples desvio de um veio de água. Entre aquilo que de melhor e pior já foste, e o que de melhor e pior possas ainda vir a ser, mon coeur balance.

(1) Alma Popular, 29.01.1937.
(2) Cesário Martins Calafate. Tem nome de rua na fonte de S. Domingos.
(3) O Nauta, n.º 259, 25.11.1909

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