Tenho seguido, com curiosidade e particular agrado, esta espécie de romagem ao passado que gente mais nova e dinâmica, com ponto de encontro marcado no Palhaça Cívica, resolveu empreender. Bem hajam por isso, sobretudo por trazerem à cena gente de carne e osso, que uma vez desaparecida do nosso convívio tem permanecido no limbo – bem sei que já não existe limbo... – do esquecimento. É um meritório exercício de memória e de retorno à infância que não esconde algumas saudades daquilo que já não há.
Diz bem o Sérgio Pelicano: “Façamos de conta que todos vivemos tempos de felicidade na Palhaça. Façamos de conta que todos queremos (re)viver esses momentos.” Sejamos então claros: nem todos viveram no passado – refiro-me a muitos dos que neste cantinho têm sido evocados – tempos de felicidade. Há traços característicos dessa época que não podem deixar saudades. Pobreza e miséria eram coisas que abundavam e cresciam como cogumelos. Quase toda a gente vivia curvada ao peso da terra, num tempo em que a agricultura era vista como a arte de empobrecer alegremente.
Do passado que tem sido evocado, há alusão a algumas pessoas com um traço comum, uma espécie de paisagem humana com tonalidades sem contraste: o da miséria extrema, não apenas física mas também, num ou noutro caso, moral. Confesso-vos que a princípio senti alguma relutância em acrescentar mais nomes a esses que também conheci. Porquê? Talvez por me parecer doloroso recordar a via sacra que foi a sua vida terrena. Talvez por escrupuloso respeito por essa gente sem eira nem beira, desprovida das mais elementares rações de afecto, seres humanos para quem a vida foi madrasta e até cruel, sobre os quais ouvi, por uma ou outra vez, juízos menos benevolentes, coisa que me desagrada, por não gostar que se escarneça da miséria. Gente a quem faltou sempre qualquer coisa em pequena: amparo ou berço, escola ou amor.
Após breve hesitação pensei melhor: não, esta gente não foi propriamente marginalizada pelas pessoas da nossa terra. No meio da desgraça teve sempre algum amparo, uma mão amiga, uma côdea de broa ou um caldo para aquecer o estômago. Há exemplos até, muito exaltantes e de dimensão humana inquestionável, de quem lhes tenha dado verdadeira protecção, a troco de nada e de coisa nenhuma. Pelo simples gosto de praticar o bem, apenas isso. Pura dádiva aos outros, pois dar é dar-se. E daí concluí: esta gente merece ser lembrada como qualquer outra. Respeitosamente, como o tem sido até agora. Sem ser preciso apagar registos antigos. Para o bem e para o mal, foi gente da nossa gente. Pobre, às vezes muito pobre, mas séria e digna.
Juntar à morte física uma segunda morte, a do esquecimento e do anonimato destas pessoas, seria, isso sim, algo chocante. “Eu estive aqui e ninguém contará a minha história”, gravou alguém, em apelo dramático, na superfície de uma pedra do campo de extermínio nazi de Bergen Belsen.
Decido então acrescentar alguns pormenores a pessoas que têm desfilado nos últimos textos, gente que também quis ser feliz, teve sonhos, anseios e ambições. Fecho este primeiro texto com elas, é a minha singela homenagem. Pena que só hoje consiga carregar nos pedais da memória e puxar alguns fios soltos de remotas e às vezes delidas lembranças. Então aí vai.
Conheci bem a Sofia e o Zé Pequeno. De ambos retenho algumas recordações. Ela cumprimentava-me sempre (ou eu a ela) quando nos cruzávamos na rua. Raramente parava. Quando o fazia, naquele seu jeito muito peculiar de arrastar a perna, dirigia-se a mim, de forma repentina, e dizia: olá Carlos!, e pespegava-me dois beijos. Era sempre assim quando decilitrava em demasia. Mas nunca foi inconveniente, ou faltou ao respeito a quem quer que fosse, que eu saiba.
O Zé Pequeno, esse, mantive com ele longas e demoradas conversas, quase sempre junto à taberna dos meus tios, na esquina do largo de S. Pedro. Era de uma educação esmerada, valores que lhe tinham sido inculcados na Casa Pia. Orgulhava-se de ter sido um “ganso”, contou-me algumas histórias desse seu tempo juvenil, que infelizmente não retive. Mas do que não me esqueço é da enorme resistência que se desprendia daquele corpo aparentemente tão frágil. Vi-o algumas vezes com sacos de batatas às costas, até o camião ficar carregado, sem nunca desfalecer. A ele e ao Pompeu, também franzino mas resistente, ambos de boina basca na cabeça. Ao Pompeu, já em fase decadente, vi-o algumas vezes correr os miúdos à pedrada. Era a resposta que dava aos que, abeirando-se dele e logo fugindo, gritavam: pum, pum! Do Zé Pequeno guardo ainda a memória de o ver fumar “mata-ratos”, ao mesmo tempo que desenhava, com traço firme e preciso, balizas e guarda-redes a voar para o esférico. Era o publicista de serviço, quando se tratava de anunciar jogos de futebol entre a Palhaça e qualquer outra equipa. Como não havia fotocopiadoras, o Zé Pequeno lá tinha que executar dois ou três esboços muito idênticos, com assinalável qualidade estética, normalmente em papel pardo. Os anúncios eram afixados nas tabernas ou mercearias mais visitadas da freguesia.
Conheci também a mãe do Pompeu, a Maria Zé Caixas. E o António dos Pardais, que vivia isolado e cercado de silêncios. Dele disse a Dra. Dulce Vieira, em prosa da mais fina sensibilidade: "As ovelhas eram suas irmãs, suas amigas as pombas, os gorjeios dos pardais, a música de fundo de uma existência viúva de alegrias"(1). Recordo o Arlindo Gamelas, proveniente não sei bem de que ex-colónia de África, que vivia de esmolas e sempre que me encontrava esboçava um sorriso de dentes bastos e me chamava “menino”, mesmo quando já era crescidote. Lembro, finalmente, a Maria Pita dos meus medos de infância. Morava na Chousa e ao que parece não fazia mal a ninguém, mas os miúdos temiam-na, atribuindo-lhe dotes de bruxaria. Era de tez morena, vestia saias até ao chão e usava, em vez de brincos, alfinetes de segurança a baloiçar-lhe nas orelhas.
(1) Freguesia da Palhaça. Contribuição para a sua Monografia. Publicação do Centro Paroquial da Palhaça, 1977, pp. 58-59.
Diz bem o Sérgio Pelicano: “Façamos de conta que todos vivemos tempos de felicidade na Palhaça. Façamos de conta que todos queremos (re)viver esses momentos.” Sejamos então claros: nem todos viveram no passado – refiro-me a muitos dos que neste cantinho têm sido evocados – tempos de felicidade. Há traços característicos dessa época que não podem deixar saudades. Pobreza e miséria eram coisas que abundavam e cresciam como cogumelos. Quase toda a gente vivia curvada ao peso da terra, num tempo em que a agricultura era vista como a arte de empobrecer alegremente.
Do passado que tem sido evocado, há alusão a algumas pessoas com um traço comum, uma espécie de paisagem humana com tonalidades sem contraste: o da miséria extrema, não apenas física mas também, num ou noutro caso, moral. Confesso-vos que a princípio senti alguma relutância em acrescentar mais nomes a esses que também conheci. Porquê? Talvez por me parecer doloroso recordar a via sacra que foi a sua vida terrena. Talvez por escrupuloso respeito por essa gente sem eira nem beira, desprovida das mais elementares rações de afecto, seres humanos para quem a vida foi madrasta e até cruel, sobre os quais ouvi, por uma ou outra vez, juízos menos benevolentes, coisa que me desagrada, por não gostar que se escarneça da miséria. Gente a quem faltou sempre qualquer coisa em pequena: amparo ou berço, escola ou amor.
Após breve hesitação pensei melhor: não, esta gente não foi propriamente marginalizada pelas pessoas da nossa terra. No meio da desgraça teve sempre algum amparo, uma mão amiga, uma côdea de broa ou um caldo para aquecer o estômago. Há exemplos até, muito exaltantes e de dimensão humana inquestionável, de quem lhes tenha dado verdadeira protecção, a troco de nada e de coisa nenhuma. Pelo simples gosto de praticar o bem, apenas isso. Pura dádiva aos outros, pois dar é dar-se. E daí concluí: esta gente merece ser lembrada como qualquer outra. Respeitosamente, como o tem sido até agora. Sem ser preciso apagar registos antigos. Para o bem e para o mal, foi gente da nossa gente. Pobre, às vezes muito pobre, mas séria e digna.
Juntar à morte física uma segunda morte, a do esquecimento e do anonimato destas pessoas, seria, isso sim, algo chocante. “Eu estive aqui e ninguém contará a minha história”, gravou alguém, em apelo dramático, na superfície de uma pedra do campo de extermínio nazi de Bergen Belsen.
Decido então acrescentar alguns pormenores a pessoas que têm desfilado nos últimos textos, gente que também quis ser feliz, teve sonhos, anseios e ambições. Fecho este primeiro texto com elas, é a minha singela homenagem. Pena que só hoje consiga carregar nos pedais da memória e puxar alguns fios soltos de remotas e às vezes delidas lembranças. Então aí vai.
Conheci bem a Sofia e o Zé Pequeno. De ambos retenho algumas recordações. Ela cumprimentava-me sempre (ou eu a ela) quando nos cruzávamos na rua. Raramente parava. Quando o fazia, naquele seu jeito muito peculiar de arrastar a perna, dirigia-se a mim, de forma repentina, e dizia: olá Carlos!, e pespegava-me dois beijos. Era sempre assim quando decilitrava em demasia. Mas nunca foi inconveniente, ou faltou ao respeito a quem quer que fosse, que eu saiba.
O Zé Pequeno, esse, mantive com ele longas e demoradas conversas, quase sempre junto à taberna dos meus tios, na esquina do largo de S. Pedro. Era de uma educação esmerada, valores que lhe tinham sido inculcados na Casa Pia. Orgulhava-se de ter sido um “ganso”, contou-me algumas histórias desse seu tempo juvenil, que infelizmente não retive. Mas do que não me esqueço é da enorme resistência que se desprendia daquele corpo aparentemente tão frágil. Vi-o algumas vezes com sacos de batatas às costas, até o camião ficar carregado, sem nunca desfalecer. A ele e ao Pompeu, também franzino mas resistente, ambos de boina basca na cabeça. Ao Pompeu, já em fase decadente, vi-o algumas vezes correr os miúdos à pedrada. Era a resposta que dava aos que, abeirando-se dele e logo fugindo, gritavam: pum, pum! Do Zé Pequeno guardo ainda a memória de o ver fumar “mata-ratos”, ao mesmo tempo que desenhava, com traço firme e preciso, balizas e guarda-redes a voar para o esférico. Era o publicista de serviço, quando se tratava de anunciar jogos de futebol entre a Palhaça e qualquer outra equipa. Como não havia fotocopiadoras, o Zé Pequeno lá tinha que executar dois ou três esboços muito idênticos, com assinalável qualidade estética, normalmente em papel pardo. Os anúncios eram afixados nas tabernas ou mercearias mais visitadas da freguesia.
Conheci também a mãe do Pompeu, a Maria Zé Caixas. E o António dos Pardais, que vivia isolado e cercado de silêncios. Dele disse a Dra. Dulce Vieira, em prosa da mais fina sensibilidade: "As ovelhas eram suas irmãs, suas amigas as pombas, os gorjeios dos pardais, a música de fundo de uma existência viúva de alegrias"(1). Recordo o Arlindo Gamelas, proveniente não sei bem de que ex-colónia de África, que vivia de esmolas e sempre que me encontrava esboçava um sorriso de dentes bastos e me chamava “menino”, mesmo quando já era crescidote. Lembro, finalmente, a Maria Pita dos meus medos de infância. Morava na Chousa e ao que parece não fazia mal a ninguém, mas os miúdos temiam-na, atribuindo-lhe dotes de bruxaria. Era de tez morena, vestia saias até ao chão e usava, em vez de brincos, alfinetes de segurança a baloiçar-lhe nas orelhas.
(1) Freguesia da Palhaça. Contribuição para a sua Monografia. Publicação do Centro Paroquial da Palhaça, 1977, pp. 58-59.
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