sábado, 7 de fevereiro de 2009

Idosos: Vozes (cada vez mais) anoitecidas

“Idosos descartáveis” – assim titulou Armor Pires Mota a sua oportuna crónica no Jornal da Bairrada do passado dia 4 de Fevereiro. O mesmo título, embora na interrogativa, colou o escritor Arsénio Mota, da vizinha vila de Bustos, a um post do seu blog em Junho de 2008. Aproveito a embalagem para escrever também sobre um tema que merece séria reflexão.

Lamentavelmente, o abandono dos idosos, a negligência e até os maus tratos a que tantas vezes são sujeitos, devem merecer a nossa melhor atenção e também o nosso mais veemente repúdio.
Para mistificar a realidade, a chamada sociedade pós-moderna transforma, em passes de mágica falaciosa, os idosos em “seniores”, como se a velhice fosse coisa sem sentido, não arrastasse consigo algumas moléstias, como a dependência, o desamparo e a solidão, não prenunciasse o aproximar da morte, ou não suprimisse progressivamente os prazeres que a vida realmente vivida proporciona.

Os eufemismos funcionam, na sociedade actual, como escudo protector e como arte de dissimulação. Exemplos? Tudo se faz para suavizar a nossos olhos a velhice dos outros. Os velhos, além de “seniores”, encerram um paradoxo: a sociedade que exibe a longevidade como valor supremo é a mesma que os trata como um fardo e um problema. Estamos cercados de idosos mas quase não os vemos. Encaixotados em lares de gosto duvidoso, duram tempo demais e dão cabo do erário público. Deixou de fazer sentido a ideia segundo a qual por cada velho que morre é uma biblioteca que desaparece.

Este artifício retórico dos “seniores” podia ser evitado. Bastava que os que a ele recorrem tivessem a percepção do valor e dos benefícios da idade avançada que outras sociedades – países africanos e asiáticos, por exemplo – lhes reconhecem. Se nessas sociedades os velhos são descritos como “aqueles que ganharam sabedoria”, na cultura ocidental esses valores encontram-se em erosão acelerada. O envelhecimento é visto como uma “perturbação” e não como uma oportunidade de utilizar recursos adquiridos ao longo da vida; os idosos representam um fardo, esquecendo-se o apoio que muitas vezes alguns deles ainda podem prestar à família e mesmo à comunidade.

Não é só a sociedade que está em crise. É também a solidariedade, e os valores morais. E por isso falham cada vez mais as respostas do Estado e o modelo tradicional de obrigações filiais. Todos os anos, pelo Natal, assistimos ao espectáculo indecoroso de gente que interna os seus pais ou avós nos hospitais e os deixa por lá, sem a menor ponta de remorso ou o menor estremecimento de desconforto. Entretanto, os idosos têm “alta”, o hospital contacta, mas as famílias não aparecem. Despachado o fardo incómodo, demandam outras paragens onde vão passar o Natal e o Ano Novo, libertos de preocupações, mas atolados no egoísmo e na desumanidade, agindo como se os seus familiares fossem seres desprovidos de direitos.

Estamos a falar de crimes sem castigo. Quem faz isto, ou coloca os seus idosos em lares clandestinos de vão de escada, devia ser acusado de crime de abandono. A indiferença pelos direitos do nosso semelhante é uma forma de cumplicidade no atentado a esses mesmos direitos.

Enquanto as coisas continuarem como estão, estes actos ignóbeis tendem a transformar-se em rotina no quotidiano. A pressa, a ligeireza e o desinteresse (que é desconsideração) pelos outros, são a imagem de marca do nosso tempo. Na sociedade em que o ter se substituiu ao ser, em que cada um já não vale pelo que é mas por aquilo que ostenta, ou pela imagem muitas vezes falsa que retoca e de si dá aos outros, quem assim nos fala não é o ser humano dotado de afectos. É o homem-máquina, um corpo sem alma, um rolo compressor que tudo cilindra à sua passagem.

Dizia Cícero – orador romano que nasceu e viveu antes de Cristo – que a velhice todos a buscam alcançar, mas quando a alcançam, deploram-na. Para ser possível suportar mais facilmente o envelhecimento só parece existir um caminho: devolver a vez e a voz aos idosos.

5 comentários:

anonimo disse...

gostaria de referir que os lares em condições são caríssimos! por um lado, não podemos tomar conta deles, ou não podemos contratar serviços domiciliários permanentes. por outro lado, os lares são muito caros e representam, por vezes, um salário! é complicado lidar com isso! estou sempre a dizer, gostava de poder envelhecer num simpático lar, ao lado das minhas amigas da Palhaça! se calhar não era mal pensado começar a pagar uma quota mensal!!

Carlos Braga disse...

Concordo inteiramente com o que diz a leitora anónima. Os lares com acordo de cooperação (subsidiados pelo Estado) têm listas de espera infindáveis. E muitas vezes essas listas não são respeitadas. Há quem pague "donativos" e jóias às IPSS e com esse argumento passa logo à frente dos que estão inscritos há mais tempo. Esta prática lamentável contraria o disposto no Estatuto das IPSS, que consagra que os interesses dos utentes prevalecem sobre os das instituições.
Como se tudo isto não bastasse, o cálculo das comparticipações familiares a pagar pelos utentes e suas famílias é tudo menos clarificador. Cada IPSS calcula à sua maneira o custo médio real do utente comparticipado: umas incluem no cálculo os custos de outras respostas sociais, o que lhes permite obter um valor inflacionado, outras, ao determinar o rendimento "per capita", adoptam nos Regulamentos Internos conceitos de agregado familiar que contrariam o disposto na legislação em vigor, contabilizando rendimentos de pessoas dos quais o utente supostamente não usufrui, por não viver em economia comum com elas. Enfim, uma barafunda pegada.
Como eu a compreendo, cara leitora. Obrigado pelo seu oportuno comentário. E volte sempre.

TPC disse...

Reflexão/ Sugestões e práticas:

1. "O indivíduo idoso sente-se velho através do outro, sem ter experimentado sérias mutações; interiormente não adere à etiqueta que se cola à ele: não sabe mais quem é". (Simone de Beauvoir, «A velhice»)

2. «Quais os requisitos necessários para a criação de uma UTI (Universidade de Terceira Idade)?

1) Juntar um grupo de seniores, mínimo de 10 pessoas, que estejam interessados no projecto.
2) Encontrar uma associação sem fins lucrativos, que acolha a ideia (pode ser uma Misericórdia, a Paróquia, a autarquia, uma escola ou uma associação recreativa) ou proceder à criação de uma associação.
3) Encontrar uma sala de aulas com capacidade para 20 alunos.
4) Procurar professores que tenham disponibilidade para ministrar uma hora de aulas por semana em regime de voluntariado. .
5) Organizar o funcionamento, em horário laboral, das disciplinas a ministrar na UTI.
6) Angariar apoios ou donativos através das empresas ou proceder à cobrança de mensalidades que não devem ultrapassar a quantia mensal de 12 euros».

+ Info em: http://www.democraciaberta.com/democracia_forum/ver_topico.php?t=250

3. Artigo sobre a relevância das novas tecnologias no envelhecimento de um indivíduo (Comissão Europeia):

http://uniseti.wordpress.com/2008/01/15/novas-tecnologias-ajudam-a-envelhecer-melh

4. Uma experiência de sucesso de uma Universidade Sénior e o interesse dos idosos pelas novas tecnologias:

http://www.jornaldascaldas.com/index.php/2008/09/24/universidade-senior-das-caldas-da-rainha-com-disciplinas-novas/

Andreia disse...

era suposto ter assinado o meu post.. peço desculpa! aqui fica:
Andreia Tavares! :)

Pedro Carvalho disse...

Partilho as mesmas preocupações que o Carlos descreve.

Na cidade onde trabalho há um bom exemplo no que foi devolver a vez e a voz aos idosos. A Associação “É bom Viver” é prova viva que o espírito de iniciativa não tem idade. Tudo começou no meio da água, que ia sendo alimentada por quem frequentava as classes de hidroginástica nas piscinas municipais. Este projecto de hidrosenior (actualmente estão inscritos 520 seniores nas classes de hidroginástica, idades dos 55 aos 91) teve como base a promoção de um estilo de vida saudável. De promoção do estilo de vida saudável passou para um espaço de integração social e de convívio. Entre o mergulho e o balneário surgiu esta Associação onde não há sócios, nem quotas e nem receitas. Apenas há uma convergência de ideias para realizar várias actividades ao longo do ano.
Uma das actividades mais engraçadas vai ao encontro d’ “aqueles que ganharam sabedoria”. Dá-se pelo nome de “Troca de Saberes”. Ao longo do ano estes idosos deslocam-se às escolas para ensinar coisas do seu tempo.

Quis partilhar o exemplo desta Associação, por ser uma boa prática, e também porque sou testemunha diária dos sorrisos quando se deslocam à piscina/pavilhão para realizarem actividade física. Aprecio a forma de viver destes idosos. São activos.
Deixo a declaração de um senior, porque ele não gosta de ser chamado idoso, em declarações a um meio de comunicação social, sobre esta Associação: “Se não se faz mais é porque não dá, porque a vontade é poder aproveitar o máximo de cada dia, porque tenham mesmo a certeza de que assim É BOM VIVER.”