terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Coisas de que ainda me lembro (III)

Dizem que amigos são os da infância. Que ao caminhar-se para a velhice escasseia o tu-cá-tu-lá das farras e cumplicidades. Entre os que tive e ainda conservo, há um com quem nunca mais falei: o Arrais (1). Morava em frente à Escola e trauteava canções a torto e a direito. Uma delas, muito curiosa, versava sobre pessoas da nossa terra e respectivas profissões. Está incompleta e não sei quem poderá ajudar a recuperá-la por inteiro. Começava assim:

O doutor é Presidente, (2)
Arquitecto, o Manuel Vicente, (3)
O Justino é carpinteiro,
O Mandato faz caixões, (4)
O Zé Feijão é barbeiro, (5)
Faz a barba a dois tostões.

O Camilo assa leitões, (6)
A Aida coze enguias, (7)
O Artur tira fotografias (...) (8)

O Arrais cantarolava uma outra, muito engraçada, de sátira social às sogras, de que também retenho algumas passagens:

Certa noite à média luz,
P’ra jantar fui convidado,
Em casa de minha sogra, (bis)
Era dia de feriado...

Era muito minha amiga,
Fez tudo p’ra me agradar,
É por isso que hoje me lembro, (bis)
Daquele famoso jantar...

Comi canja de galinha,
E arroz de cabidela,
Cebolas à cafreal, (bis)
Com rabinho de vitela...

Fricassé de amendoim,
Com miolos de toupeira,
Uma lagosta a suar, (bis)
Com conhaque da Malveira...

Fumei depois um havano,
E já no fim do jantar,
Comi fruta para um ano, (bis)
Mas faltava terminar...

Bebi café de alcatrão,
Comi torta e fiquei torto,
E depois duma soneca, (bis)
Quando acordei estava morto!

Também me lembro de, na década de 1960, a PIDE - polícia política do Estado Novo - fazer das suas na Palhaça. Fechou tudo quanto era entrada e saída da aldeia e avançou para o Café Capri. Encontrou o que queria, a denúncia não era falsa. Para apanhar o denunciado – que se disse, depois, ser de Salgueiro - partiu tudo o que encontrou pela frente. À saída, enquanto era arrastado e espancado pela polícia, com gente da terra a assistir, uns no largo e outros à janela das próprias casas, o detido gritava, a plenos pulmões: Ó povo da Palhaça! Acudam-me, que eu sou democrata e eles são da PIDE! Ninguém acudiu, ninguém esboçou um gesto de revolta. Quando tudo passou, só se ouvia murmurar: era gente muito educada. Partiram vidros e cadeiras, mas perguntaram quanto era e pagaram tudo...

A PIDE, que não brincava em serviço, incomodou também pessoas da Palhaça, que chegaram a estar presas. Histórias por contar, a merecer que se apanhe o fio à meada. Naquele tempo, não era preciso muito para se ir bater com os costados na cadeia. Um dos detidos foi César Barreto, dono do café que funcionava onde está hoje o Ponto Final. Em Março de 1951, o Presidente da Junta responde a um pedido de esclarecimento do Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro: “sou a responder que de facto o Snr. César Augusto Barreto, desta freguesia, foi preso pela então PVDE, por hostilidades à Casa do Povo”(9). Esta detenção terá ocorrido até 1945 e nunca depois dessa data. Isto porque foi nesse ano que a PVDE [Polícia de Vigilância e Defesa do Estado] passou a chamar-se PIDE [Polícia Internacional de Defesa do Estado].

Outros nomes devem acrescentar-se ao de César Barreto. Aqui vos deixo, para memória futura, os de José Colchete (Areeiro), Fabiano (Albergue), Silvério Cura (Vila Nova) e Manuel Tomé (Roque). Foram todos presos ao mesmo tempo, e como se tratava de gente séria e honrada, a freguesia ficou envolta num manto de profunda tristeza. Era tempo de Páscoa, a anunciar promessas de videiras a abrir pequeninos olhos verdes e viçosos; era o tempo em que os soalhos das salas onde se beijava o Senhor se esfregavam à mão com sabão amarelo, e onde havia sempre, sobre a mesa, um cesto com rendinha branca que servia para transportar as ofertas, às vezes uma simples maçã ou laranja com uma moeda de cinco tostões em cima, que se dizia ser para o sermão.

No salão da velha Casa do Povo, onde mais tarde se realizaram bailes, vimos nascer a televisão a preto e branco. Lá, e no café do Sr. César Barreto – feito na cafeteira e com máquina a petróleo – moravam as duas únicas televisões que a Palhaça se orgulhava de ter. Os sábados à noite eram verdadeiros dias de festa. Que saudades do convívio semanal com o Rintintin e a Lassie, mas sobretudo com o Bonanza: dos quatro heróis desta série de culto, o bom gigante dos murros demolidores, Hoss de seu nome, era o meu favorito. E havia ainda o Mascarilha, a cavalgar na pradaria com o fiel amigo índio, o Tonto. Às vezes, a seguir às barrigadas de western, sucediam-se as barrigadas de ameixas, pela calada da noite, no interior dos muros da Escola, que ficava ali mesmo ao lado.

(1) António Martins Pereira Arrais, filho de Augusto e Rosa Arrais. Morava ao lado do edifício das Escolas Primárias, na estrada que da Palhaça sai para Sosa.
(2) O Presidente de Junta era o médico Manuel Ferreira Rebolo, formado na Universidade de Coimbra em 1935.
(3) Manuel Ferreira Vicente Júnior construtor civil, que construiu o edifício das Escolas Primárias.
(4) Manuel Mandato. Apenas construía caixões pequenos, para os "anjinhos".
(5) José do Nascimento Marques Moura.
(6) Camilo Jacinto, casado com Mabília Cerveira da Silva e pai de António da Silva Jacinto (Camilo), Joaquim Cerveira da Silva, Fernando, Raul e Mabília (Bila).
(7) Conhecida por Aida Feijoa. Vivia, à época, numa casa situada ao lado (para nascente) do actual café Ponto Final. Irmã de Joaquim (alfaiate e com casa de pasto aberta aos dias de feira) e José Feijão.
(8) Artur Lemos Silva, também conhecido por Artur Calcinhas. Chegou a integrar (era "caixa", como então se dizia) a Banda da Mamarrosa.
(9) Ofício n.º 13/51, de 8 de Março de 1951, endereçado pelo Presidente de Junta de Freguesia da Palhaça ao Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro.

Sem comentários: