Descobri este vídeo no blog Notícias de Bustos. A primeira parte mostra um imitador de figuras conhecidas da opinião pública. A seguir aparece aquilo que realmente interessa: o nosso conterrâneo António da Silva Jacinto, popularizado como o “Camilo”.
E porquê Bustos a trazer para a ribalta o Camilo? Porque a vila vizinha se preocupa em não deixar apagar os registos antigos, e sabe prestar homenagem, mesmo que singela, àqueles que de algum modo ajudaram a dignificar o nome da sua terra. Expliquemo-nos: ao contrário da Palhaça, Bustos é berço de tradições futebolísticas. Antes da União Desportiva de Bustos chegou a ter dois grupos desportivos: Os Canecas e Os Gavetas. Estes últimos evoluíam no espaço onde hoje se desenrola a actual feira do Sobreiro.
Na Palhaça, o pontapé na bola nunca assentou arraiais. Em 1958 tentou criar-se um grupo de futebol e por isso se iniciaram trabalhos de terraplanagem para um campo de jogos. Coisa modestíssima, pois o espaço, na zona onde actualmente se situa a ADREP, era mais quadrado que outra coisa. Foi até criada uma comissão provisória para dirigir os destinos da colectividade, da qual faziam parte, entre outros, o professor primário Henrique Pinto Basto Esteves (que residia em Águas Boas), Mário Marques da Silva (com a profissão de latoeiro e ex-Presidente de Junta) e Anísio Correia da Silva (com a profissão de sapateiro e durante muitos anos o correspondente na Palhaça do Jornal da Bairrada) (1).
É desses idos de 1958 e seguintes que guardo gratas lembranças do homem que procurava manter invioláveis as redes da Palhaça e que os de Bustos conheciam por “Keeper Gato”, popularizado pela sua elegância na baliza, os seus voos e elasticidade. Esse homem era o Camilo. Admirava-o como a um herói, e nele depositava fundadas esperanças de garantir as vitória para a equipa da Palhaça. Mais nele do que em qualquer outro, embora no grupo despontassem alguns talentos como o Alcides, ou o Zé Magalhães, prematuramente falecido.
Coloquei-me muitas vezes atrás da sua baliza, para melhor o admirar. E ainda me lembro bem: nos momentos de aflição, quando um adversário aparecia isolado à sua frente, com a bola dominada, o Keeper Gato, prenunciando o pior, gritava a plenos pulmões: atenção Nuno, há perigo! (referia-se a Nuno Brás, popular comentador desportivo radiofónico, que costumava utilizar essa expressão).
Às vezes a bola acabava por beijar as redes e anichar-se no fundo da baliza. Enquanto ele a retirava para lá da linha fatal, cabisbaixo e desolado, eu via o meu herói lendário tornar-se mais frágil, de carne e osso como todos os humanos. Mas logo a seguir voltava a fazer defesas de espantar e eu recolocava-o novamente no pedestal a que tinha direito.
A valia futebolística do Camilo despertou bem cedo a cobiça dos de Bustos. Contrataram-no (desconhecem-se os montantes envolvidos no negócio...) e começou por alinhar nos júniores, mas creio que também nos seniores, nos anos sessenta do século passado. A sua passagem deixou marcas, o seu talento fechava as redes do Bustos a sete chaves, por isso agora o evocam. Mas o Camilo tinha outros talentos, como o de praticar alguns truques de ilusionismo. Até que, já em fase mais avançada da vida, se tornou exímio na arte de driblar e atrair as câmaras de televisão...
A propósito do vídeo, onde o vemos com manifesto deleite a mandar uns “bitaites” sobre a política, Óscar Santos exarou o seguinte e certeiro comentário: “ O Keeper Gato é uma figura impagável e incontornável no nosso concelho: onde sabe que aparece a TV ou os jornais, lá está ele para a fotografia; e não é só nos congressos partidários que ele se gruda aos repórteres. Não há figura política nacional, incluindo Presidentes da República, ao lado da qual ele não apareça no retrato. Parece que ele tem uma grande colecção de fotos e de recortes dos jornais, onde aparece ao lado dos famosos, sobretudo do mundo da política”.
O Camilo tem de facto fotografias e recortes de imprensa onde aparece ao lado de gente famosa. E até tem este vídeo, que gravei e lhe ofereci com muito prazer, coisa pouca para retribuir as façanhas do herói das balizas que alimentou o meu imaginário infantil. Recordo agora uma foto que me mostrou, onde o podemos ver mergulhado num dos mais belos caudais da história recente da democracia portuguesa: uma gigantesca manifestação de um 1.º de Maio em Lisboa, logo a seguir ao 25 de Abril, festa genuinamente popular ainda não marcada pela divisão do movimento sindical. Lá aparece o Camilo, no meio daquela imensa mole humana, a exibir com garbo um cartaz onde pode ler-se: Palhaça Presente!
Também se empenhou bastante em angariar fundos para a sua terra, metendo os pés a caminho e sabendo insinuar-se nos corredores e gabinetes do poder. Já perdi a conta aos relatos que me fez de uma incursão à Gulbenkian, tentando arranjar dinheiro e material didáctico para a então Telescola, que chegou por essa altura a funcionar nas instalações do Centro Paroquial. Por detrás daquele seu ar rústico e aldeão, de falinhas mansas envoltas em enternecedora simplicidade (que tanto agrada aos poderosos enquanto gesto servil de curvatura à sua “superioridade” imaculada...) estava um verdadeiro predador, capaz de tudo para ter êxito na espinhosa missão de garantir um subsídio que pudesse dar um empurrão aos melhoramentos da Palhaça. Mostrou-se tão hábil e astuto nessas tarefas como antes mantinha invioláveis as redes das balizas que lhe eram confiadas.
O Camilo é ainda hoje um conversador nato. Falem-lhe nestas coisas e vão ver como a conversa flui sem se dar conta do passar do tempo. Que o diga um amigo meu, homem dado ao cultivo das letras e antigo professor na Universidade de Coimbra. Quando o encontrava no café, a conversa esticava e lá se ia a hora do almoço ou do jantar. Chegava a casa a desoras, e para aplacar o desagrado da mulher defendia-se do seguinte modo: o que é que queres? Sabes que sou um especialista em Camilo...
A mim, que não sou grande espingarda na arte da demagogia política, e que também pouco venero o poder ilusório das câmaras dessa ladra do tempo que é a televisão, pouco se me dá que o Camilo ande agora a fazer concorrência ao celebrado emplastro do Futebol Clube do Porto. Ou que tenha enveredado pela mania de enfileirar ao lado dos que se julgam – pobres deles! – poderosos deste mundo. Continuo a guardar no coração um cantinho onde caberá sempre o Keeper Gato da minha meninice. Os seus voos entre os postes são eternos, porque não são deste reino.
Atenção Nuno, há perigo!...
(1) Jornal da Bairrada, n.º 188, 05.07.1958.
Na Palhaça, o pontapé na bola nunca assentou arraiais. Em 1958 tentou criar-se um grupo de futebol e por isso se iniciaram trabalhos de terraplanagem para um campo de jogos. Coisa modestíssima, pois o espaço, na zona onde actualmente se situa a ADREP, era mais quadrado que outra coisa. Foi até criada uma comissão provisória para dirigir os destinos da colectividade, da qual faziam parte, entre outros, o professor primário Henrique Pinto Basto Esteves (que residia em Águas Boas), Mário Marques da Silva (com a profissão de latoeiro e ex-Presidente de Junta) e Anísio Correia da Silva (com a profissão de sapateiro e durante muitos anos o correspondente na Palhaça do Jornal da Bairrada) (1).
É desses idos de 1958 e seguintes que guardo gratas lembranças do homem que procurava manter invioláveis as redes da Palhaça e que os de Bustos conheciam por “Keeper Gato”, popularizado pela sua elegância na baliza, os seus voos e elasticidade. Esse homem era o Camilo. Admirava-o como a um herói, e nele depositava fundadas esperanças de garantir as vitória para a equipa da Palhaça. Mais nele do que em qualquer outro, embora no grupo despontassem alguns talentos como o Alcides, ou o Zé Magalhães, prematuramente falecido.
Coloquei-me muitas vezes atrás da sua baliza, para melhor o admirar. E ainda me lembro bem: nos momentos de aflição, quando um adversário aparecia isolado à sua frente, com a bola dominada, o Keeper Gato, prenunciando o pior, gritava a plenos pulmões: atenção Nuno, há perigo! (referia-se a Nuno Brás, popular comentador desportivo radiofónico, que costumava utilizar essa expressão).
Às vezes a bola acabava por beijar as redes e anichar-se no fundo da baliza. Enquanto ele a retirava para lá da linha fatal, cabisbaixo e desolado, eu via o meu herói lendário tornar-se mais frágil, de carne e osso como todos os humanos. Mas logo a seguir voltava a fazer defesas de espantar e eu recolocava-o novamente no pedestal a que tinha direito.
A valia futebolística do Camilo despertou bem cedo a cobiça dos de Bustos. Contrataram-no (desconhecem-se os montantes envolvidos no negócio...) e começou por alinhar nos júniores, mas creio que também nos seniores, nos anos sessenta do século passado. A sua passagem deixou marcas, o seu talento fechava as redes do Bustos a sete chaves, por isso agora o evocam. Mas o Camilo tinha outros talentos, como o de praticar alguns truques de ilusionismo. Até que, já em fase mais avançada da vida, se tornou exímio na arte de driblar e atrair as câmaras de televisão...
A propósito do vídeo, onde o vemos com manifesto deleite a mandar uns “bitaites” sobre a política, Óscar Santos exarou o seguinte e certeiro comentário: “ O Keeper Gato é uma figura impagável e incontornável no nosso concelho: onde sabe que aparece a TV ou os jornais, lá está ele para a fotografia; e não é só nos congressos partidários que ele se gruda aos repórteres. Não há figura política nacional, incluindo Presidentes da República, ao lado da qual ele não apareça no retrato. Parece que ele tem uma grande colecção de fotos e de recortes dos jornais, onde aparece ao lado dos famosos, sobretudo do mundo da política”.
O Camilo tem de facto fotografias e recortes de imprensa onde aparece ao lado de gente famosa. E até tem este vídeo, que gravei e lhe ofereci com muito prazer, coisa pouca para retribuir as façanhas do herói das balizas que alimentou o meu imaginário infantil. Recordo agora uma foto que me mostrou, onde o podemos ver mergulhado num dos mais belos caudais da história recente da democracia portuguesa: uma gigantesca manifestação de um 1.º de Maio em Lisboa, logo a seguir ao 25 de Abril, festa genuinamente popular ainda não marcada pela divisão do movimento sindical. Lá aparece o Camilo, no meio daquela imensa mole humana, a exibir com garbo um cartaz onde pode ler-se: Palhaça Presente!
Também se empenhou bastante em angariar fundos para a sua terra, metendo os pés a caminho e sabendo insinuar-se nos corredores e gabinetes do poder. Já perdi a conta aos relatos que me fez de uma incursão à Gulbenkian, tentando arranjar dinheiro e material didáctico para a então Telescola, que chegou por essa altura a funcionar nas instalações do Centro Paroquial. Por detrás daquele seu ar rústico e aldeão, de falinhas mansas envoltas em enternecedora simplicidade (que tanto agrada aos poderosos enquanto gesto servil de curvatura à sua “superioridade” imaculada...) estava um verdadeiro predador, capaz de tudo para ter êxito na espinhosa missão de garantir um subsídio que pudesse dar um empurrão aos melhoramentos da Palhaça. Mostrou-se tão hábil e astuto nessas tarefas como antes mantinha invioláveis as redes das balizas que lhe eram confiadas.
O Camilo é ainda hoje um conversador nato. Falem-lhe nestas coisas e vão ver como a conversa flui sem se dar conta do passar do tempo. Que o diga um amigo meu, homem dado ao cultivo das letras e antigo professor na Universidade de Coimbra. Quando o encontrava no café, a conversa esticava e lá se ia a hora do almoço ou do jantar. Chegava a casa a desoras, e para aplacar o desagrado da mulher defendia-se do seguinte modo: o que é que queres? Sabes que sou um especialista em Camilo...
A mim, que não sou grande espingarda na arte da demagogia política, e que também pouco venero o poder ilusório das câmaras dessa ladra do tempo que é a televisão, pouco se me dá que o Camilo ande agora a fazer concorrência ao celebrado emplastro do Futebol Clube do Porto. Ou que tenha enveredado pela mania de enfileirar ao lado dos que se julgam – pobres deles! – poderosos deste mundo. Continuo a guardar no coração um cantinho onde caberá sempre o Keeper Gato da minha meninice. Os seus voos entre os postes são eternos, porque não são deste reino.
Atenção Nuno, há perigo!...
(1) Jornal da Bairrada, n.º 188, 05.07.1958.
3 comentários:
Conheci o Sr. Camilo (com “i” – ele faz questão de sublinhar este”i”) quando a sua casa foi invadida pelas chamas. Nesse verão, em pleno gozo das férias grandes da escola, fizemos uma espécie de voluntariado para reconstruir a vacaria destruída pelo incêndio. Num desses dias, e já depois de ter alguma confiança com a rapaziada, há hora da merenda convidou-nos para comer uma bucha e um tinto na adega. Oferecer um copo de tinto à rapaziada de 13/14 anos era pouco recomendável mas serviu de pretexto para contar passagens da sua história. Afinal era isso que ele queria. Desde a cadeira à cuba qualquer coisa servia para iniciar uma conversa. Foram tantas idas à adega que comecei a gostar de tinto e também a admirar a sua pessoa. Encontro-o quase todas as semanas na esplanada do Capri ou na calçada da Praça. Faço questão de trocar dois dedos de conversa porque gosto dele. Sempre que estamos juntos pergunta pela capa do Jornal Público do verão de 2001.
Tenho a minha frase do Sr. Camilo: “São ideias que funcionam”.
Estas «estórias» são deliciosas.
Sublinho nelas um nome:
- «Keeper Gato», um das alcunhas mais curiosas e «cool» que já ouvi de um guarda-redes, pelos vistos, com potencial (a falta de oportunidades terá realmente matado o Gato?);
E uma ideia louvável, independentemente da cor do partido em que milita:
O facto de conhecer fisicamente Portugal - a história, a geografia, alguma política, a toponímia, à pala de congressos de um partido.
A viagem/ a errância poderão enriquecer, fazer conhecer e/ou compreender melhor os outros, a diferença, a pluralidade... Despertar para uma maior consciência do que é o seu país ou o mundo e do que somos enquanto cidadãos, não?
O resto, concorde-se ou não, controverso ou não, é acessório, neste momento...
Carlos Braga,
Calou fundo o depoimento ao ‘Enfermeiro Adelino’ (in memorium). …
Agora, trazer à Janela Cívica da vizinha Palhaça o «Keeper Gato», guarda-redes da primeira equipa de Juniores da União Desportiva de Bustos, é entrar no imaginário que as gerações anteriores ajudaram a construir.
O Camilo (com i) tem um interessante episódio a relatar, ocorrido quando tentava patentear a sua cidadania através da fixação de um escudo nacional na frontaria da sua casa. Vale a pena ouvir o Camilo. Aliás. É um alfobre de estórias e de histórias.
Um abraço do sérgio micaelo ferreira
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