sábado, 7 de março de 2009

Dois curtos textos anticlericais


São apenas dois recortes de imprensa. Quem os recortou não teve o cuidado de os datar, nem de anotar a que jornais pertenciam. Certo, é que fazem parte da tradição anticlerical portuguesa; quase certo é tratar-se de textos inseridos na imprensa da Bairrada durante os tempos conturbados da I República. Ambos devem ser lidos nesse contexto. Neles, a Igreja e os padres são os bombos da festa. O primeiro está assinado por um auto--intitulado ex-padre, de seu nome Manuel Pinto dos Santos, e procura retirar crédito à Confissão. O segundo é uma pequena história de conteúdo humorístico, entre muitas outras que enxameavam a imprensa da época com o intuito de rebaixar figuras clericais. As mais conhecidas anedotas versavam a licenciosidade dos padres, que supostamente andariam metidos com uma mulher casada, cujo marido não estava habitualmente em casa. Não queiras potro/Nem mulher de outro era, à época, provérbio habitual de aviso aos padres para não desejarem aquilo que ainda não é, nem o que já não é (1).

Aqui se dão à estampa os dois curtos documentos, sem mais comentários.

I - A Confissão

“A confissão foi instituída no ano de 1215, no auge da perseguição; porque não se instituiu antes? Nunca antes daquela data se julgou precisa a confissão; porém, desde que se atravessava uma época inquisitorial, necessário era buscar um elemento poderoso de subjugação e disciplina.

Vendo Roma que o tribunal da penitência lhe dava bons resultados, decretou a confissão obrigatória a todos os fiéis, sob pena de não salvarem as suas almas. Parece que antes de existir a confissão nenhuma alma se salvou! A confissão é anti-liberal; a adoração a Deus não é. O confessionário é uma escola de imoralidade.

Eu, como já fui padre, já confessei e já disse missa, posso dizer o que de verdadeiro há sobre tal assunto. Não se avaliam facilmente os efeitos perigosos do confessionário, quantos fanatismos promove, quantas discórdias levanta entre as famílias, as suspeitas que gera no coração de duas almas, enfim, uma série de corrupções que tornam cada vez pior o nosso meio social, que tantas podridões já contém.

Para se avaliar dos efeitos do que preceitua a igreja católica, basta dizer-se que o maior patife, o mais terrível dos algozes, desde que se confesse e se finja arrependido, obtém um atestado de bom comportamento; mas se o homem mais digno, caritativo e esmoler se não confessar, é escusado pensar em obter semelhante atestado”.

II – “Ridendo...

“Corre por ai, como verídico, o seguinte: certo prior duma freguesia não muito distante, tido e havido como conquistador afamado, fora, um dia, não sabemos com que propósito, a casa dum seu paroquiano. Este, porém, não estava, mas sua mulher, com a franqueza que caracteriza a gente do campo, ofereceu ao visitante uma caneca de vinho na adega. O sr. padre aceitando, dirigiu entretanto umas palavras menos reverentes à esposa de Pedro – assim se chamava o paroquiano do sr. prior – a qual, indignada, contou ao marido a audaciosa tentativa do D. Juan. Todavia, Pedro continuou, embora aparentemente, de boas relações com o clérigo, até que um dia reuniu em sua casa vários amigos, para uma côdea, tendo comparecido também o sr. prior.

No final da refeição Pedro ofereceu-lhes vinho branco, tendo previamente ordenado que uma garrafa contivesse urina – garrafa cautelosamente dada à mão do sr. prior que, ao provar o néctar, bradou estupefacto:

- Pedro, isto é vinho?!... Tão salgado!!!...

- É, sim, sr. prior, e tirado da pipa que o sr. queria furar...

Ridendo castigat mores.”

(1) Paulo Correia de Melo, Anedotas e outras Expressões de Anticlericalismo na Etnografia Portuguesa, Lisboa, Roma Editora, 2005, p. 198.

5 comentários:

TPC disse...

P: E se Jesus cá voltasse?

R: "Imagino-o em pequeno a questionar os sacerdotes com incómodas redacções escolares. Ou, mais velho, a ressurgir como um blogger feroz, paladino de uma esquerda esclarecida e igualitária num mundo onde essa esquerda deixou de existir. Seria inflexível na defesa de ideais caídos em desuso e nessa medida radicais; no entanto, protegido por uma retórica inteligente e ambígua, mostraria a sua face liberal, e permitiria o livre arbítrio em opções morais de foro privado. Expulsaria os vendilhões do templo (o clero). Incomodaria o império romano (o Governo) e, perante as mãos sempre limpas da justiça, seria mediaticamente crucificado, talvez com acusações torpes que o reduzissem ao silêncio, e o expulsassem da blogosfera. Passados três dias, ressuscitaria, a partir do nada mas no blogue de sempre, para nos deixar a insurrecta mensagem de despedida. Aos 33 anos, desapareceria de cena por desejo próprio, não deixaria para trás número de telemóvel, nem endereço de mail. E, ao fazê-lo, ao optar pela não existência on-line - hoje tão improvável como uma ascensão aos céus -, daria início à lenda."

José Prata, editor da Lua de Papel in Público - 24.12.2008

Anónimo disse...

Carlos, o autor do primeiro texto é bem capaz de ter razão quanto à denúncia da «estratégia vaticana da confissão» e quanto aos efeitos nocivos da mesma para a humanidade. No entanto, Freud veio demonstrar que o homem a sós com as suas pulsões destrutivas não se dá muito bem. Durante séculos, para além daquilo que é denunciado, o padre teve a função de psicólogo e de confidente-psicanalista: a pessoa exorcisava os seus demónios, «limpava-se», descarregava o saco pela quaresma, encontrava alguém que o ouvisse, que lhe adoçasse a solidão por uns minutos. Ou seja: no que toca a autonomia, não avançámos muito mais do que à época em que a maioria do ocidente se confessava. Não fossem hoje os psicólogos tão populares...

(Nota: a expressão «disse missa» leva-me a duvidar, em parte, da autenticidade do estatuto de ex-padre do autor do texto.)

PC

TPC disse...

Paulo, consigo compreender, num certo sentido, essa comparação, mas não haverá uma - pequena ou grande - diferença entre o psicólogo e o padre que confessa (pelo menos os que se cruzaram comigo), no que toca à moral, à consequência, ao eventual julgamento, ao veredicto (x ou y pai-nossos, consoante a gravidade dos pecados)? Para o Vaticano, a masturbação é um pecado, por exemplo... A psicologia não falará em pecados, penso eu de que...

Penso que será regra geral que o homem recorra, por necessidade de progresso, para dar um passo em frente, ao desabafo, à expurgação de «demónios interiores» e à confissão, mas a escolha do interlocutor pode fazer muita diferença na sensação que se segue, não?

Agora acredito que, para um católico que aprecie a confissão, esta com um padre lhe seja mais libertadora do que uma conversa com um psicólogo. Dependerá sempre das necessidades dos «necessitados», dos seus valores, não?


Tiago

Anónimo disse...

Tiago,

sim e não.

Há muitos padres, (ainda) há muita gente que se confesse. Quer disser: depende.

Esta coisa da confissão é muito mais complexa do que à partida parece. É preciso enquadrá-la historicamente. Aquilo que hoje se afigura devassa ou uma forma inaceitável de submissão moral, poderia assumir esse aspecto sem a revoluções que forão a Reforma luterana - o Renascimento - o Iluminismo - ao proclamarem a liberdade de interpretação da bíblia, a liberdade de consciência e a autonomia da razão em relação à fé? E se eu te dissesse que a confissão, nos termos em que a conhecemos hoje, foi um progresso rumo a essas revoluções? É que, no início, nas comunidades do proto-cristianismo, a confissão era pública? És capaz de imaginar o efeito de uma confissão pública do género: «Irmão Hieronimus, perdoa-me: fica sabendo que te meti os cornos com a tua amada Gertrudes, e que ela gostou!». Além do mais, o catolicismo admitiu sempre uma esquizofrenia: embora exija o intermediário - o sacerdote - por se ter tornado (graças ao filho de fariseu S. Paulo) sacerdotal, determina que, em última análise, é Deus quem perdoa e que é possível ao crente comunicar directamente com Deus através da oração. «Fecha-te no quarto e conversa com o Pai», aconselhava Jesus.

Retomando o sim e o não.

«A psicologia não falará em pecados, penso eu de que...», dizes. De facto, não consta do léxico da psicologia o termo «pecado». Pode até tratar da pacatofobia, o medo patológico de pecar ou cometer um crime. É outra abordagem. Que não deixa de ser terapêutica - e é aqui que se aproximam. Mas, se falamos em efeitos, a diferença é e não é muita. O crente pode sentir-se extremamente aliviado; tal como um paciente de psicólogo, após uma consulta. Claro que confissão e consulta têm vantagens e desvantagens: a primeira é gratuita, mas implica uma penitência chata e absurda, uma espécie de reposição pela ladroagem feita ao Senhor da vinha; a segunda não implica retorno moral, mas retorno material, ou seja, exige pagamento em cash. Se calhar, a confissão até mais proveitosa, para quem se quer livrar das chatices da consciência moral. É que ao preço que estão as consultas de psicologia, um tipo vem de lá arrependido, não? E depois há a questão da habituação, da necessidade de delegar no outro as minhas decisões e as suas consequências... há quem seja mais fiel ao seu psicanalista do que alguma vez seria a um padre. E os efeitos não serão muito melhores...

Mais duas notas.

1. Um amigo meu ex-pedre dizia que em tudo o resto se sentia uma coisa impossível, mas na confissão sentia-se humano entre humanos; aí via, dizia ele, a humanidade em todo o seu esplendor e escória.

2. Se te queres esclarecer ou ir mais longe pensado seriamente nisto, aconselho-te vivamente a leitura de O Confessor, um conto inserido em O Jogo das Contas de Vidro, de Hermann Hesse. Verás a confissão noutra perspectiva... muito mais libertadoras do que o Pe. Manuel de Oliveira alguma vez te pôde dar.

PC

TPC disse...

Paulo, antes de mais, agradeço a interessante mini-aula de «História da Confissão». No fundo, vamo-nos completando uns aos outros, com informações ou questões adicionais. Neste caso, não estava a discordar dos teus argumentos, apenas a colocar mais um ou outro tópico numa equação que, como dizes, é complexa.

Se estiveres atento ao que escrevo/digo, saberás que não tenho uma visão ortodoxa nem fechada sobre a confissão (o seu efeito é muito subjectivo, como o das religiões e ideologias).

Repito: a confissão será um sacramento redentor, funcional e libertador para uns; um acto anacrónico, absurdo, de subjugação, de risco de excomunhão, de devassa da privacidade ou de humilhação para outros. Ambas as teses são legítimas. A perspectiva, como dizes, dependerá, dos valores e da interacção dos interlocutores - padre e confessado - e talvez da metodologia.

Acho que muito mais do que as opiniões dos outros, vale o que cada um sente quando sai dali. Isto serve também para a psicologia (se eu estiver a sentir-me constantemente manipulado por um psicólogo, e achar que ele me está alistar mil e um clichés pouco consistentes, dificilmente sairei do consultório com vontade de mudança, de progresso; se eu der crédito ao que ele me diz, talvez a consulta tenha valido a pena - não acontecerá o mesmo com as crenças?).

O que tentei questionar, depois de diagnosticadas algumas semelhanças entre a confissão na Igreja e a expurgação no divã ou no consultório, foi algumas diferenças, que poderão corresponder à realidade ou não.

Não era minha intenção colocar a psicoterapia ou a psicanálise acima da confissão católica, ou vice-versa. Confundem-se às vezes, naquilo que enumeras. Poderão ser complementares, para alguns, até...

Quanto à qualidade e aos efeitos das minha longínquas confissões católicas, Paulo, publicamente não me confesso.

;)

Obrigado pela sugestão.