sábado, 14 de março de 2009

Injúrias parlamentares e duelos no campo da honra



Desavenças por motivos políticos, expressas em palavras consideradas ofensivas, dúvidas sobre a honorabilidade pessoal, eis os ingredientes da recente troca de mimos entre um deputado socialista e outro social-democrata. É só mais um rombo na credibilidade do Parlamento. O insulto na política perde-se na memória dos tempos. Mas o que verdadeiramente põe a democracia de rastos nem é o insulto inteligente; é a linguagem grosseira dos que se colocam em bicos de pés, procurando tapar, com a altura que não têm, a pequenez da estatura que sempre tiveram.

Tempos houve, já depois da implantação da República, em que as ofensas davam lugar a duelos travados no espaço público e não ainda no Parlamento. Apesar de um decreto de 1911 substituir os duelos pelos tribunais de honra, os adversários políticos continuavam a ser desafiados para se bater em duelo. Recusar o desforço pelas armas equivalia a ser considerado covarde, a não querer defender a própria dignidade, a sofrer a excomunhão dos amigos. Correspondia, naquele tempo, a uma desqualificação social pura e simples.

Quando, enfim, o Parlamento passou a ser o “campo da honra”, as coisas não se tornaram mais edificantes. Entre muitos outros, ficou célebre um episódio que mostra bem a personalidade forte de Homem Cristo, o celebrado panfletário de O Povo de Aveiro, a quem Guerra Junqueiro chamava “um brutamontes com ideias”. Corriam os anos vinte. Um discurso duro e impiedoso que proferiu na Câmara dos Deputados contra Leonardo Coimbra – a quem chamava “o Imbra”, por ter perdido o apêndice... – transformou a sessão numa grande algazarra. O grupo de Leonardo, que tinha abandonado a sala quando Homem Cristo discursava, reentra aos poucos no hemiciclo e lança ao orador apartes provocadores. Quando resolvem avançar para a agressão física, dispostos a correr com o orador a pontapés, tendo à frente, ameaçador, o Abade de Penude, Homem Cristo meteu a mão ao bolso, sacou de uma pistola e afrontou corajosamente os adversários:

- O primeiro que avançar, estoiro-lhe os miolos! O Abade deu um salto para trás e todos os outros se detiveram. O orador continuou a falar, a acusar, cada vez mais brutal, cada vez mais cáustico (1).

Em tempos bem mais recentes, ficou célebre o “Breve Manifesto Anti-Portas em Português Suave”, uma catilinária política de Carlos Candal, antigo deputado socialista pelo círculo de Aveiro e homem de língua afiada, que há poucos dias aconselhou o seu partido a responder com “uns chutos” (leia-se: exclusão da lista de deputados) às tropelias sem freio do poeta Manuel Alegre. No Manifesto, Portas é alcunhado de “democrata precário”. Referindo-se a ele e ao “excursionista” Pacheco Pereira, os intrusos lisboetas que no ano de 1995 concorriam às legislativas pelo círculo de Aveiro, terminava assim o Manifesto: “Na noite do próximo dia 1 de Outubro, espero poder pendurar no meu cinto de caça política as tais duas aves de arribação - espécies exóticas lisboetas pouco apreciadas na região cinegética de Aveiro: um garnisé-cantante e um pavão-de-monco-caído” (2).

Enfim, o verbo até pode delirar, ou o adjectivo derrapar. Os portugueses, aliás, esfregam as mãos de contentes por uma boa polémica. Triste é quando o espírito polémico ultrapassa as tiradas do mais fino recorte literário e descamba para certas insânias, como cenas de tiros ou cabeças rachadas. Ou, pior do que isso, para a ofensa ou o palavrão gratuito, como aconteceu agora no Parlamento, onde o deputado laranja José Eduardo Martins resvalou para a indignidade ao lançar um insulto soez ao deputado rosa Afonso Candal.

Enfim, sempre que em política os adversários desprezam o debate de ideias, o que sobressai é a atávica impreparação dos contendores. Ceder à tentação do rótulo excessivo, ou da insinuação malévola sobre valores morais ou costumes, nunca foi a melhor via para ganhar o crédito dos eleitores.

Senhores deputados: não deixem que o insulto empurre ainda mais o nosso desprestigiado Parlamento para as ruas da amargura. O que se vos exige é apenas isto: um pouco mais de cordura. Pode ser?...

(1) Barradas de Carvalho, "Homem Cristo, o dragão de Aveiro", in As Grandes Polémicas Portuguesas, Vitorino Nemésio (dir.), 2.º vol., Lisboa, Editorial Verbo, 1967, pp. 377-399.
(2) Litoral, n.º 1868, 15.09.1995.


3 comentários:

Pedro Carvalho disse...

Infelizmente temos estes episódios que não dignificam nada o parlamento e a política. Não há elevação no debate no Parlamento. São muitos maus momentos seguidos. A qualidade dos deputados desceu e por conseguinte a qualidade do Parlamento. Causa-me impressão os decibéis e o conteúdo das intervenções.

Anónimo disse...

Por acaso, tenho participado num fórum a propósito do palavrão em geral; algumas das reflexões aí feitas podem aplicar-se ao caso, nomeadamente o último texto citado. Para quem estiver interessado: http://groups.google.pt/group/com-versando/browse_thread/thread/ea31f4aff4ebd66d

Paulo Carvalho

TPC disse...

Por razões profissionais, vejo, de há cerca de um ano e meio para cá, regularmente, debates do Parlamento.

Além de propostas que vou ouvindo (umas bem explanadas, outras semi-codificadas) [às vezes penso que as ouvirei melhor do que alguns deputados, que vão saindo e entrando, atendendo telemóveis, dormitando, conversando] -, vou assistindo a algumas tendências, que seriam cómicas, se não estivéssemos a falar de quem está a legislar para e por nós.

Às tantas, subitamente, do debate dos argumentos, do campo das propostas, passa-se/desce-se ao combate de egos, ao ringue das birrinhas e das intrigas pessoais, à vitimização, à defesa cega e intransigente da imagem do seu partido em detrimento do bem comum.

Os momentos mais absurdos acontecem quando alguns deputados começam a arremessar o rótulo de «populista» e «demagógico» a outros. Não se apercebem de que todos partidos - incluindo o que representam - já usaram essas armas e que, ao usarem esse rótulo, estão também eles a serem «demagógicos» e «populistas»?

Enquanto cidadão, não exigo solenidade, mas mais elevação na argumentação, mais trabalho de casa(com o Santana Lopes, notava-se que estavamos no campo da «politiquice» de café, feita em cima do joelho, que safava um «Jota» numa conversa num círculo de amigos, mas não um político com anos de carreira como ele), mais «ouvir» para construir em conjunto.

Acho pouco dignificante que dados macro-económicos libertados sejam alvo para uma troça ou um aproveitamento qualquer (não têm a impressão que alguns partidos ficam contentes com dados do desemprego, para terem mais um contra-argumento e ganharem mais uns pontos?). Instrumentalizam alguns votantes, defendendo-os, para logo a seguir, gozarem com eles. Acho triste, no mínimo.

Gostava que realmente estes senhores soubessem o que é receber 450 euros por mês ou estar a «falsos recibos verdes» para depois falarem com mais seriedade. Esta minha proposta seria demagógica se eu fosse político, mas aí está a diferença: eu não sou e tive/tenho essa experiência.

Não generalizo: há deputados sérios em todos os partidos, mas também muita subserviência, fulanização, «estrategismo», «funcionarismo» e carreirismo a ter lugar no Hemiciclo. E de forma descarada. Daí o descrédito do cidadãos nos partidos, na política. As soluções, por vezes, estão bem longe da AR, nos movimentos civis, nas ONGs, nas instituições de solidariedade social... Sei que têm papeis diferentes, mas a disponibilidade e a proximidade parecem outras.

Apercebi-me de que quem nos pede «maiorias absolutas», alegando o argumento da estabilidade, pede-nos sobretudo aval para rejeitar e chumbar a maioria das propostas da oposição (algumas serão construtivas...).

Tenho pouco memória a propósito da elevação do Parlamento e dos parlamentares. Já teve melhores dias, não?


Tiago