domingo, 22 de março de 2009

Para que não se diga que a poesia não passou por aqui...


Aparentemente, o Dia Mundial da Poesia passou-nos ao lado. Aqui ao pé de nós, em Bustos, a coisa foi diferente: uma conterrânea, de seu nome Marineide Simões dos Santos, teve as suas primícias poéticas com a apresentação da obra Canto e Amanhece. E o blog Notícias de Bustos também guardou um cantinho para a poesia.

A poesia é a língua dos sentimentos e das ideias por excelência. E também serve para comer, como gostava de repetir Natália Correia. Isto para dizer que passei o fim de semana embalado na esperança de ver algum palhacense a deixar aqui qualquer coisa da sua lavra. Ao que parece, as musas continuam arredadas do nosso convívio...

Lanço então um repto: em momentos que considerarmos adequados, podíamos deixar aqui algumas poesias escritas por gente da nossa região, ou até fora dela. Seria uma forma de divulgar o que por cá existe, de não deixar cair no esquecimento o labor poético dos bairradinos ou de gente de outras regiões que nos são próximas.

Deixo-vos dois poemas de que gosto, e que me parecem apropriados ao tempo presente. Porque estamos na Quaresma, um chama-se Cristo; o outro dá pelo nome de Guevara, e curiosamente ambos falam em Cristo e na crucificação. Lembrei-me dele por causa do filme recente «Che: El Argentino», realizado por Steven Soderbergh.

O soneto é de um poeta aveirense quase desconhecido das gerações mais novas e lamentavelmente ignorado em Aveiro. Falo de Luís Regala, o invólucro material de Pedro Zargo, que até tem nome de rua na cidade, mas cuja obra continua por publicar. A Câmara parece esquecer-se que o desprezo a que devota o seu trabalho poético, em grande parte inédito, é uma coisa bem mais aviltante que o esquecimento.

CRISTO

Eis-me também de angústias trespassado
E cuspido de insultos e de pragas!
Eis-me também, Senhor!, nu e esmagado
Do mesmo Teu Amor com que Te esmagas!

Como Tu, tenho o rosto macerado,
A fronte em sangue, o suor caindo em bagas...
E as chagas do meu corpo flagelado
Gritam a mesma dor das Tuas chagas!

E, entre os Dois, que destino Nos separa:
A Ti, uma só vez, Deus solitário,
Pregou-Te em Tua cruz a turba ignara...

Mas eu (eis-me Senhor, mais desgraçado!)
Todos os dias subo o meu Calvário!
Todos os dias sou crucificado!


Agora o poema de um autor consagrado, o médico Adolfo Rocha, conhecido na poesia por Miguel Torga. Podem encontrá-lo no Diário X, pp. 166-67. Foi escrito na morte do Che.


GUEVARA

Não choro, que não quero
Manchar de pranto
Um sudário de força combativa.
Reteso a dor, e canto
A tua morte viva.

A tua morte morta
Pelo próprio terror em que ficaram
À sua frente
Aqueles que te mataram
Sem poderem matar o combatente.

O combatente eterno que ficaste,
Ressuscitado
Na voluntária crucificação.
Herói a conquistar o inconquistado,
Já sem armas na mão.

Quem te abateu, perdeu a guerra santa
Da liberdade.
Fez brilhar na manhã do mundo inteiro
Um sol de redentora claridade:
O teu rosto de Cristo guerrilheiro.

5 comentários:

TPC disse...

Não sei se isto é poesia, mas aqui vai uma resposta à provocação do Carlos Braga:



Big-Ode-Aço (Elefante Enfant)

tenho um bigodaço de aço.
sou electricista e lanço o meu charme quando ligo o alarme.
e sei bem que há rimas que rimam com uma pegada idiotice.
(como esta, aliás)

hoje, quando vinha da casa da Clarisse, encontrei uma ostra.
que se queixava de ser ostracizada pelos demais moluscos.
houve uma lula, contou-me a ostra, que lhe disse inclusive: «és
manhosa, ranhosa».
«retrospectivei», de imediato, os meus tumultuosos anos de «impossible enfant»,
quando, a meio de uma gargalhada, me saltava compulsivamente do nariz
uma série interminável e indeterminável de lulas.
e tudo troçava, troçava, e, eu, em-mim-mesmado, reduzia-me a um caco
invisível em quarteirão pós-terramoto.
(apercebo-me agora prendado com uma memória de elefante)

imagino a brutalidade que seria para uma ostra, ostracizada,
ser esmagada por uma patarrona de um elefante que consigo se cruzava,
enquanto ia morrer longe.
duas mortes: a caminho da morte longínqua,
um elefante com ar cabisbaixo, distraído, não olha para baixo e mata
uma débil ostra.
a ostra grita, o elefante não ouve, mas sente.
e de repente, vê mar.
lança-se a ele, desajeitado.
não sabe nadar.
e morre.
há quem diga que se suicidou.
um indivíduo com intenções duvidosas que andava por ali perto
mergulhou nas águas geladas do mar
e na direcção do gigante nadou.
o homem congelou.
e o marfim do defunto elefante está agora patente no Centro George Pompidou.

TPC disse...

O Sr. Permeável

Era uma vez... o sr. Permeável.
O sr. Permeável era um senhor muito estimável,
Mas era... q.b. permeável.

Formava apenas opinião, depois de sondadas as mais populares opiniões,
Dos mais populares líderes de opinião.
Num grupo de três, quatro, cinco, seis, sete, oito fala-baratos... a coisa passava despercebida.

Era pré-visualizável e expectável, se bem esprimida, a sua vida.
Lida nos lábios dos outros.
Ora conveniente e popular, no grupo.
Ora impotente e de pular, quando a dois.
E depois... era a favor da eutanásia.
E antes... anti.
Avanti, talvez.
Andava ao sabor do grupo, do apupo.
Quando havia alguém a pupular pelos dois,
O sr. Permeável ficava de bico calado.

Ora, um dia «choveu»,
E o sr Permeável,
Des-prevenido,
Des-preventivo,
Permeável, claro,
Primeiro estremeceu,
Depois, padeceu,
E, no fim, triste, o amável senhor Permeável faleceu.

Irónico prémio:
O sr. Permeável coleccionava impermeáveis.
Mas esquecera-se do último que comprara no hall do bar,
De onde fugia, atordoado, envergonhado, à prova dos nove de...
Nove pessoas, com nove fortes convicções, que lhe solicitavam uma fundamentada opinião.
E coisa que o Sr. Permeável não era... era um colete à prova de balas.
Nem de uma, nem de duas... muito menos de nove.

TPC

Pedro Carvalho disse...

Confesso que este fim de semana estive out. Mas a POesia não me passou ao lado.

Na sexta, logo pela manhã, na minha ida matinal à Padaria recebi uma saca de pão patrocinada pela Câmara Municipal. Boa Iniciativa esta da Câmara MUnicipal "Ao sabor da Poesia".

Depois ao almoço tive a companhia do declamador José Fanha. Qem bem me soube a sobremesa. José Fanha participa todos os anos na iniciativa Poesia à Mesa de S. João da Madeira.

Não esperem de mim versos, rimas ou outras coisas, porque para aí não mem viro.

Unknown disse...

Eu tive alguma poesia, quando acordei na Primavera que me entrou manhã dentro, pelas interrogações permanentes de um filho cuja curiosidade se cola a cada gesto, pelas gargalhadas e conversas interrompidas com os amigos num jantar a lembrar o verão. A poesia da vida urbana que tantas vezes se faz sem palavras.

Carlos Braga disse...

Afinal, sempre apareceu alguém que gosta de jogar com as palavras e as manuseia de forma imaginativa. Tiago: o que aqui deixaste, para mim, é poesia. As palavras encantam-nos, são um exercício espiritual e para serem poesia não precisam de carambolar, ou de união entre ritmo e rima. Basta que sejam verdadeiras. E sobretudo que digam. Retoma a bola e joga, pode haver aí um filão por explorar...
Pedro: nem todos podem ser poetas, embora alguns julguem sê-lo só porque rabiscam aqui e ali uns versinhos de água doce, muito apreciados nas capelinhas do elogio mútuo. Mas é possível gostarmos de poesia sem compor poemas, ou de música sem conhecer uma clave de sol ou sem saber trautear uma pauta. Ter o José Fanha por perto é uma grande ajuda. Não é só um excelente "diseur" de poesia: é também um poeta dos que mais aprecio. Como não gostar de "Eu sou português aqui", que ouvi pela primeira vez na televisão poucos anos depois do 25 de Abril, e que termina assim: Eu sou português/aqui/o português sem mestre/mas com jeito/Eu sou português/aqui/ e trago o mês de Abril/a voar/dentro do peito.